18 Dezembro 2018
Empresas estabeleceram controle orwelliano sobre necessidades e desejos das populações. Em resposta, busca-se agora a experiência social compartilhada.
O artigo é de William Mebane, ex-diretor do Ente Nacional de Eficiência Energética da Itália, publicado por Other News e reproduzido por Outras Palavras, 14-12-2018. A tradução é de Marianna Braghini.
Os primeiros bens genéricos foram aqueles baseados em um único modelo universal. O modelo preto T, da Ford, é o exemplo clássico. A produção em massa permitiu uma enorme economia de escala e com redução de custos nunca antes realizada. A função básica do transporte rodoviário de pessoas foi satisfeita. Mas empresas temiam que, com produtos genéricos, todas as necessidades seriam logo satisfeitas e pouco restaria para produzir. Um primeiro passo para superar isso foi a introdução de mais escolhas, de acordo com a capacidade de compra. Uma grande diferenciação de produtos foi introduzida por meio das diferenças de preço e qualidade.
Os bens serviam a uma mesma função básica, mas uma média muito superior de preços foi possível pela introdução de bens de luxo (de classe alta). Os psicólogos ensinaram a empresários e marqueteiros como condicionar e manipular as emoções e necessidades de consumidores, conseguindo que eles comprassem coisas de que não precisavam. Os produtos poderiam ser propagandeados como se prometessem maior status social, ou sugestionassem uma ansiedade na mente do consumidor e apresentassem um produto que a aliviassem. As empresas, interagindo com as observações da pirâmide de Maslow, começaram a suprir necessidades mais secundárias por meio de uma variedade de qualidades e preço. Isso seria mais socialmente aceitável se todos tivessem já satisfeito suas necessidades primárias de alimentação, vestimenta, moradia e educação. Obviamente, não era e nem é o caso. Mas com a desculpa de que a maré crescente da economia “levantaria todos os barcos”, foi dada uma atenção limitada ao excesso de bens não primários e serviços que eram produzidos e consumidos. Além disso, as empresas procuravam impulsionar a ascendente mobilidade de bens, passando dos básicos aos extraordinários, como num espelho da mobilidade social crescente. Isso funcionou bem quando de fato existia mobilidade social, do pós-II Guerra Mundial até os anos 1970.
Com o avanço dos processamentos informatizados, e mais tarde da Internet, os hábitos, compras, preferências e psicologia de indivíduos puderam ser identificados, medidos e classificados. Agora, os produtos podiam mirar um indivíduo único, de acordo com suas necessidades particulares e com grande precisão. Ao mesmo tempo, a produção, com a ajuda da automação, pôde introduzir uma ampla variação dentre os próprios produtos. Como as preferências eram extremamente diversas e uma necessidade secundária poderia ser satisfeita de infinitas maneiras, o potencial de demanda explodiu. As empresas não mais temiam um excesso de oferta. Os consumidores cedem seus dados de consumo e aos indivíduos são constantemente fornecidas (bombardeadas) propagandas e produtos que mais se adequam a eles. É difícil resistir à compra, e muitas famílias se envolvem em considerável dívida para que isso se viabilize. O consumismo triunfou, satisfazendo precisamente desejos individuais únicos. É claro que há a importante questão de renda e desigualdade de renda, mas a satisfação de consumo parece tão completa que o problema de salários estagnados do rendimento médio da família trabalhadora veio à baila apenas nas últimas décadas.
Esse novo consumismo evoluiu em favor de uma satisfação instantânea, de curto prazo: exemplos incluem todos os computadores e videogames, entretenimento de todos os tipos que estão disponíveis no Youtube. Há um interesse renovado em séries de TV superdramáticas com uma direção bem profissional, que oferecem episódios curtos (30 minutos) mas satisfatórios, como a NCIS e House of Cards. A própria televisão evoluiu para serviços on demand (sob demanda) e compete com programas e filmes, disponíveis de imediato, ofertados pela Netflix. O interesse em produtos mais difíceis e exigentes — como livros – declinou particularmente na geração mais jovem. Livrarias e pequenos cinemas estão fechando em todos os lugares.
Em vez disso, os armazéns e a entrega rápida da Amazon estão revolucionando o comércio com uma ampla seleção de produtos, preços baixos e entregas em um ou dois dias. O consumo instantâneo é possível. Também a maneira de produção e marketing de produtos da moda evoluiu com a Zara (Inditex), testando o mercado nas lojas e por meio de uma produção acelerada, provendo, em algumas semanas, os modelos aceitos. Finalmente, temos mídias sociais na forma do Facebook, WhatsApp, Instagram e Twitter, que realizam contato instantâneo, envio de mensagens e serviços.
Obviamente, a internet e os celulares revolucionaram as comunicações, tornando as conexões com pessoas, as informações e os produtos/serviços extremamente fáceis. A Nokia, que produziu inicialmente o celular mais vendido, tinha imaginado ofertar apenas serviços essenciais; entretanto, a decisão da Apple, de se abrir para aplicativos de terceiros, desencadeou centenas de milhares de novos serviços online, disponíveis nos smartphones. Isso somado ao ascenso da Amazon, que propôs uma rapidez até então desconhecida de entregas (até no mesmo dia) de milhões de produtos, combinado com a propaganda individualizada, constitui um nível de consumismo sem precedentes e extremamente individualizado.
Ao mesmo tempo, para conseguir mais compradores em potencial, essas mídias tiveram que entreter mais, ser melhor modeladas, chocantes e, em uma única palavra, viciantes. E o futuro de realidade virtual irá nos mergulhar em mundos artificiais convincentes, não necessariamente de nossa escolha. Novamente, o potencial é enorme, sem excluir as novas formas de arte, mas a oportunidade em propaganda é gigantesca, já que esta terá controle da realidade.
Mesmo adultos, não conseguimos ficar fora do telefone dia e noite. Talvez não seja surpreendente que os país que trabalham em empresas de tecnologia do Vale do Silício tenham se tornado mais restritivos ao uso de serviços móveis por seus filhos, numa indicação do excesso. A própria Apple começou a introduzir aplicativos para monitorar e limitar o uso.
Ainda está para ser visto qual tipo de relações de longo prazo entre pessoas este novo sistema irá favorecer. E, mais importante, a questão é qual controle podemos ter – enquanto consumidores e cidadãos – sobre o design dos novos sistemas. Iremos deixá-los, como sempre, sob controle das empresas?
Essa evolução de consumismo ocorreu dentro do contexto de globalização, onde economias de escala extremamente grandes são possíveis para países com grandes mercados internos e portanto com a possibilidade de produzir para estes – e então exportar para o resto do mundo a baixos custos. Até produtos complexos como o iPhone, com mais de 300 componentes, são produzidos por intermédio de terceirização da produção, nas melhores fábricas do mundo todo. Quanto a produtos menos complexos, como painéis solares, quase todos podem ser produzidos e exportados do maior mercado interno, a China. O controle de tecnologia e do acesso aos mega mercados internos dificulta a competição por atores mais limitados, como a indústria italiana. Milhões de postos de trabalho italianos foram perdidos por meio da realocação das fábricas no Oeste Europeu e Ásia. Por consequência da concentração de centros de produção, a partir dos quais se exporta e controla a tecnologia, a globalização definiu um novo conjunto de ganhadores e um grande conjunto de perdedores; criando desemprego em muitos setores e países onde atores minoritários não conseguem competir.
Os maiores perdedores continuam a ser as nações em desenvolvimento, que na verdade não estão se desenvolvendo: a fome aumentou de 460 milhões de pessoas, em 1974, para 800 milhões atualmente e a pobreza é a mesma medida em 1984: aproximadamente 1 bilhão de pessoas sem nenhuma melhora em mais de 35 anos. Quase todos os ganhos na redução da pobreza relativa estiveram em um lugar, a China. Se uma linha mais alta de pobreza for utilizada – a de cinco dólares ao dia –, o número de pessoas pobres chega a 4,3 milhões, ou mais de 60% da humanidade. A saída líquida de recursos financeiros do mundo em desenvolvimento foi negativa em 26,5 trilhões de dólares entre 1980 e 2012, como confirma o relatório de 2016 da Global Financial Integrity and Center for Applied Research na Escola Norueguesa de Economia. Os países desenvolvidos são a rede de devedores das nações em desenvolvimento, o que exacerba bastante a situação de fome e pobreza. Justamente o oposto do que seria de esperar. O modelo de “desenvolvimento” proposto pelos ricos aos pobres na verdade ajuda os ricos. A pobreza tem mais a ver com a relação entre os pobres e os ricos e evoluiu para novas formas desde o passado colonial. Para superar a fome e pobreza no Sul global, este mecanismo precisa ser radicalmente mudado. “Por décadas nos contaram uma história: que a pobreza é um fenômeno natural e será erradicada por meio de ajudas. É um conto confortante, mas ignora as forças políticas mais amplas em jogo. Os países pobres são pobres porque são integrados no sistema global em termos desiguais e as “assistências” apenas ajudam a esconder isso.” Hickel, J. (2017).
Depois de décadas de intensa produção e consumo individualizados, talvez alguns de nós estejamos buscando alguma coisa. Há algo esquecido nas trocas e experiências sociais. É a intensa interação humana, geralmente entre muitas pessoas, que é compartilhada e altamente valorizada. Pode ser, por exemplo, uma viagem a um local primitivo e a chance de conversar e trocar ideias com os que lá vivem. Pode ser um grupo da aula de culinária para norte-americanos na Toscana. A experiência é construída em torno das relações que podem ser estabelecidas localmente. Uma experiência muito importante é o compartilhamento direto de culturas diversas, da música à dança, à arte, à arquitetura, à antropologia. É claro que esta cultura pode ser compartilhada indiretamente e vendida como um produto ou vídeo. Existe um continuum entre a experiência direta e uma experiência indireta menos envolvente. Geralmente, a experiência direta é sentida como mais única, e enriquecida por inúmeros detalhes e acontecimentos locais. Há uma diferença entre subir os degraus da Torre de Pisa e ver a fotografia. Há muita diferença entre experienciar o Palio de Siena e assistir ao vídeo. O turismo é de fato uma área onde a oferta de experiências pode reforçar seu valor. O que é requerido são mais programas locais, atividades e trocas pessoais. Outro exemplo de experiência é a educação colaborativa. Todos somos experts em algo, ou queremos conhecer mais de algo: esta é a base de criar valores por meio de seminários e compartilhar variadas formas de cultura entre amigos e conhecidos.
É claro que a experiência pode envolver muitas contradições e problemas. Geralmente em concertos de música clássica ou sessões de jazz, há uma alegria compartilhada entre os músicos e ouvintes. Este pode não ser sempre o caso; o provedor ou facilitador da experiência compartilhada pode não necessariamente compartilhar da alegria. Ele ou ela deverá ser adequadamente recompensado. No melhores casos, o facilitador da experiência deverá estimular os participantes a um nível profundo de troca, que deverá também ser satisfatório ao facilitador. Isso requer habilidades consideráveis em psicologia. É necessário treinamento para prover um nível alto de experiência. Há também uma parte da psicologia que investiga os picos de experiência dos indivíduos.
Uma característica chave da experiência, é que envolve quase sempre uma troca entre pessoas e portanto nos leva pra longe da forma individualista de consumismo. Outro elemento chave da experiência é que pode ser aplicada a qualquer atividade ou interesse. Isso possui uma variedade de formas, como os produtos individualizados. Significa que o espaço para experiências sociais é também infinito. E, é claro, experiências sociais não são uma novidade cultural e histórica. Os gregos valorizavam-nas bastante por meio de seu amor pela música, dança, histórias épicas, tragédia, comédia, filosofia e sua participação na democracia direta. Ainda que tivessem escravos, a maioria dos gregos não proclamava ou buscava uma acumulação excessiva de riqueza material.
O ponto é que nós podemos substituir consumismo frenético de produtos e serviços individualizados com as experiências criadas em grande parte localmente e com uma pegada ecológica muito mais leve. Isso irá nos beneficiar como indivíduos e globalmente. Podendo ser uma parte essencial da evolução da sustentabilidade.
As experiências e trocas sociais podem ser um antídoto parcial ao globalismo. Não precisam ser produzidas em massa para exportação nos mega mercados. Elas satisfazem um das maiores necessidades da pirâmide de Maslow, ao passo que provêm ocupações e as necessidades primárias de todos os facilitadores locais.
Entretanto, isso requer uma mudança cultural significativa ao reconhecimento da importância fundamental das relações sociais. Um exemplo pode ser encontrado no turismo, que pode ser, e frequentemente é, uma jornada de hotel em hotel, com contato limitado com a população local. “É quinta feira, devemos estar na Bélgica.” Ou pode evoluir, contando com guias locais, diálogo com as populações e hospedagem com famílias locais, para aprender e compartilhar suas culturas.
Nas cidades, isso implica desenvolvimento amplo de oportunidades sociais e habilidades. Pode tomar a forma de amizade, em atividades como clubes de livro, grupos de discussão e viagens coletivas. Pode envolver ativismo político, educação adulta contínua ou trabalho em organizações voluntárias. Implica escutar seu cônjuge, vizinhos, amigos e conhecidos.
A evidência empírica apoia os benefícios de experiências e relações sociais. Nos estudos internacionais sobre felicidade, argumentou-se (Bjornskov 2003; Vermuri and Constanza 2006; Bjornskovet al 2008) que países felizes têm alto capital social e fortes redes de amizade. Um estudo notável por DiTella e MacCulloch (2008) explora o Paradoxo de Easterlin, referindo-se ao fato de que os dados sobre felicidade são tipicamente estáveis, independentemente de aumento considerável de renda. Eles aferiram as respostas sobre felicidade, dadas por aproximadamente 350 mil pessoas vivendo nos países da OCDE. Apesar das vastas mudanças concretas no padrão de vida, entre 1975 e 1997, muito poucas contribuições à felicidade podem ser atribuídas ao aumento na renda. Em compensação, elas estão negativamente correlacionadas com o número médio de horas trabalhadas, degradação ambiental (medida pelas emissões de óxido de enxofre), crime, abertura ao comércio, inflação e desemprego.
O famoso estudo de Harvard sobre Desenvolvimento Adulto, sumarizado por Mineo L. (2017), relata: “a pesquisa, que durou quase 80 anos, provou que abraçar a comunidade nos leva a viver mais e ser mais felizes. As relações próximas, mais do que o dinheiro ou a fama, são o que mantém as pessoas felizes em sua vidas, o estudo revelou. Aqueles laços protegem as pessoas dos descontentamentos da vida, ajudam a atrasar algum declínio físico ou mental e são melhores preditores de vidas longas e felizes do que classe social, nível de QI ou até mesmo genes. Essa descoberta provou-se verdade tanto entre os membros de Harvard quanto entre participantes das cidades do interior”. Em animais, a sociabilidade é uma reação de sobrevivência às pressões da evolução. Talvez o ser humano deva ser considerado um animal sob pressão evolucionária.
A conclusão é que o reconhecimento da importância de experiências e relações sociais pode nos ajudar a refrear o consumismo individualista e permitir que mais recursos sejam dedicados a necessidades primárias e sociais. Os consumidores, empresários e governos precisam ser mais inteligentes e entender as escolhas em jogo, o que pode apoiar uma resposta mais efetiva ao risco das mudanças climáticas.
FECHAR
Comunique à redação erros de português, de informação ou técnicos encontrados nesta página:
Consumismo, pesadelo sem fim? - Instituto Humanitas Unisinos - IHU