27 Junho 2020
"O vírus poderá trazer efeitos significativos à economia, desde o encurtamento das cadeias de abastecimento, o aumento de formas de produção menos intensivas em mão de obra (o que geraria desemprego) e maior dependência de sistemas de produção dotados de inteligência artificial. Em outra esfera, a crise tem exposto a precarização das relações de trabalho, sobretudo dos profissionais que estão em uma linha de frente logística, responsáveis pela não interrupção das cadeias de produção e por sustentar uma dinâmica de consumo que permita a determinadas classes sociais receberem produtos em suas casas, mantendo um estado de artificial normalidade", escreve Rodrigo Maurício Freire Soares, doutorando do Programa de Comunicação e Culturas Contemporâneas da UFBA e professor do curso de Comunicação/Relações Públicas da UNEB, em artigo publicado por Outras Palavras, 25-06-2020.
Nos conceitos de Umberto Eco, chaves para entender a crise civilizatória. Há quem aposte que o capitalismo sairá revigorado; para outros, surge uma rede mundial de solidariedade. De material, população ainda mais desassistida pelo Estado.
Algumas reflexões feitas por pesquisadores sobre os efeitos da pandemia da covid-19 têm buscado compreender o momento atual como um momento de ruptura ou de esgotamento do modelo neoliberal vigente desde a queda do muro de Berlim. Como já visto em outros momentos da história, o sistema capitalista sempre foi capaz de apropriar-se de tudo aquilo que os humanos produziram a partir do seu trabalho. Neste sentido, novas apropriações podem passar a existir a partir de agora, sejam elas o espaço privado do professor “uberizado” dentro da sua residência dando aulas virtuais ou as novas formas de entretenimento, que colocam, por exemplo, as “lives” em um patamar de ilusória sociabilidade. Seguindo essa lógica de apropriação de tudo pelo sistema capitalista, é questionável se, de fato, as infraestruturas que estão a serviço de uma indústria do entretenimento, a exemplo de aeroportos, parques, hotéis e restaurantes, se tornarão um investimento morto no futuro pós-pandemia. É possível que, na lógica de uma ressignificação do capital e de suas formas de apropriação, as cidades utilizem aspectos relacionados à higienização, planejamento, ordenamento urbano e uma estrutura de saúde capaz de atender a visitantes como os novos valores de diferenciação das localidades, ou seja, como os ativos simbólicos dos destinos. Não me surpreenderia se as discussões sobre cidade, outrora voltadas para reflexões acerca da cidade da música, da cidade criativa ou da cidade inteligente passassem a apresentar a “cidade-protegida” ou a “cidade-saudável”, como fenômenos sociais contemporâneos. Uma cidade com uma infraestrutura de saúde sólida e mecanismos de controle sobre a saúde dos cidadãos certamente será uma variável para a escolha dos destinos turísticos: “tem o selo de cidade protegida?”
Em seu artigo a Política Anticapitalista em Tempos de Covid-19[1], David Harvey apresenta as implicações para o sistema capitalista desta crise de abrangência global. O autor aponta questões culturais, políticas e governamentais como decisivas para o aumento da propagação do vírus, que, em um mundo globalizado e de distâncias reduzidas, permitiram uma escalada geográfica sem precedentes. A crise que se iniciou na China teve impactos em cadeias de produção diversas, prejudicando, desde a gigante americana Apple a importantes parceiros comerciais do país asiático, sem distinção. No capitalismo, os insumos e consumidores se desterritorializam e as nações se tornam lugares viáveis ou não para a produção de um chip, uma placa ou uma máscara. As nações, neste contexto, ocupam o lugar de nós de rede da economia global.
O vírus poderá trazer efeitos significativos à economia, desde o encurtamento das cadeias de abastecimento, o aumento de formas de produção menos intensivas em mão de obra (o que geraria desemprego) e maior dependência de sistemas de produção dotados de inteligência artificial. Em outra esfera, a crise tem exposto a precarização das relações de trabalho, sobretudo dos profissionais que estão em uma linha de frente logística, responsáveis pela não interrupção das cadeias de produção e por sustentar uma dinâmica de consumo que permita a determinadas classes sociais receberem produtos em suas casas, mantendo um estado de artificial normalidade. Neste mesmo artigo, Harvey apresenta uma curiosa questão: estaríamos a um passo de nos aproximarmos de uma socialização da economia? Considerando as discussões sobre um “Estado Máximo” e o imperativo fortalecimento de estratégias de proteção e distribuição de renda, essa questão certamente emerge como fundamental nos dias atuais.
Contudo, respondê-la talvez seja um exercício ainda um tanto quanto hipotético, assim como o é supormos quando teremos uma vacina testada, segura e, sobretudo, disponível globalmente. A percepção de esgotamento do modelo capitalista, incapaz de sustentar-se em meio a uma resposta a uma crise de saúde pública, é também trabalhada por Boaventura de Souza Santos em sua mais recente publicação intitulada A Pedagogia do Vírus[2]. No capítulo em que aborda as primeiras lições aprendidas com a pandemia, o autor apresenta seis lições até agora observadas por ele, das quais destaco a terceira: “Enquanto modelo social, o capitalismo não tem futuro.” Assim como Harvey, Santos coaduna com o seu pensamento, afirmando que “o capitalismo poderá subsistir como um dos modelos econômicos de produção, distribuição e consumo, mas não como único e muito menos como o que dita a lógica da ação do Estado e da sociedade” (SANTOS, 2020). Outros autores também têm se referido ao momento presente como indicativo de um novo modelo de organização da sociedade, como sinal de “uma crise civilizatória” (MAFFESOLI, 2020).
Para além destes aspectos de ressignificação do capitalismo, alguns economistas já tem utilizado o termo “reconversão industrial” ao se referir à necessidade de que seja utilizada a capacidade industrial existente para produzir ventiladores mecânicos, equipamentos médicos e de segurança hospitalar. Como afirmou a economista Monica De Bolle “a reconversão industrial gera empregos, impede a paralisia de fábricas, e permite que a indústria continue a funcionar”. Ou seja, ao invés de carros, é possível que essas indústrias passem a produzir máscaras, ou até mesmo algum outro tipo de dispositivo de alto valor monetário que filtre o ar, e que, com isso, acentue ainda mais as desigualdades sociais. Assim como Byung-Chul Han nos chamou atenção em seu artigo O coronavírus de hoje e o mundo de amanhã para uma divisão de classes entre aqueles que têm carro e aqueles que não possuem – indicando que aqueles que possuem estariam mais protegidos pela redução do contato/convívio com outras pessoas no ambiente do transporte público – poderíamos estar na iminência de vermos novos produtos de proteção individual surgirem e acirrarem as desigualdades sociais. Estar mais ou menos protegido pode ser o novo fetiche do capital. Um smartphone com uma função capaz de diagnosticar se o seu dono está infectado, ou, no jargão atual do jornalismo, se “testou positivo”, seria uma nova funcionalidade para as versões premium do dispositivo.
Em termos de crença na ciência, por mais paradoxal que esta expressão signifique, temos um contexto de polarização. Poderíamos fazer algumas correlações com ao que nos trouxe Umberto Eco, nos idos de 1970, sobre a existência de “apocalípticos e integrados” em suas discussões acerca da indústria cultural e da cultura de massa. Ele sinalizou, à época, quanto à existência de correntes distintas que veriam a comunicação a partir de um potencial de alienação (apocalípticos) ou de libertação do indivíduo (integrados). A terminologia utilizada sintetizou um debate que remontava os teóricos críticos da Escola de Frankfurt dos anos de 1930 a 1940 (Adorno e Horkheimer) e os Teóricos de Mídia (McLuhan e Innis) dos anos de 1950 a 1960. Se transpusermos a existência também de vieses e perspectivas em relação ao contexto contemporâneo da pandemia, talvez pudéssemos, de forma similar, pensar na existência dos apocalíticos como aqueles que creem numa ruptura brusca dos modos de vida e de organização social a curto e médio prazo e no esfacelamento do modo de vida atual. No outro oposto, teríamos os “integrados”, que acreditariam que um novo modelo de organização social, advindo desta crise civilizatória estaria por sinalizar uma atuação das nações de forma mais solidária, estando estas dispostas à realização de acordos multilaterais e de cooperação em diversas áreas. Este é mais um sintoma de um mundo complexo que, contraditoriamente, tem buscado soluções binárias e polarizadas para a sua compreensão.
Talvez como assertiva possível neste cenário de incertezas, podemos afirmar que estamos ainda no início de um movimento espiral da história e quaisquer conclusões são de fato precipitadas. Contudo, nossa realidade aparentemente pode indicar a presença daqueles aos quais eu chamaria aqui de (des)integrados, fazendo uma alusão à tipificação de Eco. Uma parcela fragmentada de nosso tecido social, ainda mais desassistida em tempos de isolamento social, desconectados das redes de apoio social comunitário e sem o auxílio social do Estado. Uma nova condição de não-integração social cuja marca seria a alienação ainda mais acirrada da sua própria força produtiva.
[1] HARVEY, David. Política Anticapitalista Em Tempos De Covid-19. In: DAVIS, Mike, et al: Coronavírus e a luta de classes. Terra sem Amos: Brasil, 2020. p 13-23.
[2] SANTOS, Boaventura de Sousa A Cruel Pedagogia do Vírus. Lisboa, Grupo Almedina, 2020.
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Pandemia: os apocalípticos e os desintegrados - Instituto Humanitas Unisinos - IHU