19 Junho 2020
À medida que o Sars-CoV-2 continua se espalhando pelo mundo, alguns Estados estão passando por situações críticas que estão sendo negligenciadas desde março: guerra civil, conflito político, crise humanitária. Destaque para alguns desses “pontos quentes” do mundo.
A reportagem é de Anne Guion, Corine Chabaud e Jordan Pouille, publicada por La Vie, 17-06-2020. A tradução é de André Langer.
Seria a morte da solução de dois Estados e o fim da promessa de um Estado palestino viável. Anunciado pelo Governo de união de Israel em 17 de maio de 2020, o plano de anexar o Vale do Jordão e as colônias israelenses na Cisjordânia deverá ser implementado no dia 1º de julho. Isso retoma os termos do plano de Donald Trump para resolver o conflito israelo-palestino e deve envolver 30% a 40% da Cisjordânia, que estaria então sujeita à soberania israelense. Em resposta, o presidente da Autoridade Palestina, Mahmoud Abbas, anunciou que estava quebrando acordos existentes com israelenses e americanos, incluindo aquele que rege a cooperação militar nos territórios ocupados.
Foto: Deutsche Welle
Mesmo os colonos israelenses na Cisjordânia – que são em torno de 450 mil – não gostam do projeto. Os mais radicais acreditam que isso não vai longe o suficiente e exigem a anexação completa da Cisjordânia. Quanto aos demais, os mais pragmáticos, eles não veem o ponto dessa medida que consideram como “simbólico”, pois, de qualquer forma, os territórios envolvidos já estão integrados ao Estado Hebraico. Na prática, o estatuto real dessas áreas, que já estão sob a administração civil israelense e são consideradas parte de fato de Israel desde 1967, dificilmente mudará. A anexação é apenas a formalização de uma política de assentamentos assumida pelos sucessivos governos israelenses... em total violação do direito internacional.
A duas semanas do prazo, a União Europeia está tentando impedi-lo. No momento, sem nenhum sucesso. Ao mesmo tempo, o caso da Palestina está progredindo no Tribunal Penal Internacional (TPI). Em dezembro de 2019, a procuradora do TPI, Fatou Bensouda, anunciou a abertura de uma investigação sobre a colonização dos territórios palestinos. No entanto, ela pediu aos juízes que confirmassem antecipadamente sua competência legal para investigar possíveis crimes de guerra na Cisjordânia, em Jerusalém e em Gaza. Os tribunais devem tomar sua decisão nas próximas semanas.
No Iraque e na Síria, o Estado Islâmico está pouco a pouco recuperando as forças. A organização jihadista, que perdeu suas raízes territoriais no Iraque em 2017 e depois na Síria em 2019, não desapareceu. As crescentes tensões entre o Irã e os Estados Unidos e as consequências da epidemia da Covid-19 deram-lhe a oportunidade de voltar à cena. Especialmente no Iraque, onde os jihadistas exploram as brechas no aparato de segurança que aumentaram desde o assassinato em Bagdá, em janeiro de 2020, do general iraniano Qassem Soleimani por um ataque americano. Resultado: as operações aumentaram nas últimas semanas. De acordo com o Instituto de Política para o Oriente Médio de Washington, um think tank americano, os jihadistas já realizaram 566 ataques no país durante os primeiros três meses de 2020. Isso é um número claramente maior em relação ao mesmo período de 2019.
Mapa da Síria. (Foto: InfoEscola)
O mesmo fenômeno se dá no lado sírio, embora em menor escala. Em Badiya, uma zona entre Homs e Deir ez-Zor, os jihadistas atacam unidades leais a Bashar al-Assad. Alguns especialistas até acreditam que o Estado Islâmico agora é capaz de recuperar o controle de uma cidade pequena, o que teria um significado simbólico considerável. No vale do Eufrates, o Estado Islâmico mantém muitos apoiadores. Seus combatentes, misturados à população, aproveitam essa situação criada pela pandemia para consolidar sua influência.
Outra preocupação: a segurança das prisões e campos onde vivem as famílias dos jihadistas. No domingo, 3 de maio, um movimento de protesto abalou novamente a prisão de Hassaké na Síria. Com 5 mil prisioneiros, a maioria estrangeiros, este centro de detenção já havia sido palco de um motim em 29 de março. Quanto aos campos onde são mantidas as mulheres estrangeiras de combatentes, algumas das quais ainda estão comprometidas com a causa jihadista, eles se tornaram verdadeiros barris de pólvora.
Desde a queda do regime de Muammar Kadafi em 2011, duas autoridades disputam o poder na Líbia: o Governo do Acordo Nacional (GAN) de Fayez el-Sarraj, reconhecido pelas Nações Unidas, e o Exército Nacional da Líbia (ENL) do Marechal Khalifa Haftar, que detém o leste do país.
Em abril de 2019, o ENL de Haftar atacou o GAN e tentou capturar a capital, Trípoli. Desde então, o conflito continuou a estagnar nos arredores da capital, a ponto de voltar contra as forças atacantes. Até se transformou em um enfrentamento por procuração entre a Turquia – que apoia aberta e massivamente o GAN – e a Rússia que, à frente de uma coalizão de patrocinadores estrangeiros (Emirados Árabes Unidos, Egito e Arábia Saudita), oferece seu apoio ao marechal Haftar.
Mapa da Líbia. (Foto: Wikipédia)
Principal questão do conflito: as reservas de petróleo no leste do país, as maiores da África. Desde 10 de junho, os patrocinadores turcos e russos tentam negociar nos bastidores um cessar-fogo sob a égide das Nações Unidas (ONU). A violência deixou centenas de mortos e mais de 200 mil deslocados.
A situação humanitária no Iêmen é catastrófica, uma das piores do mundo, segundo a ONU. Este país árido com clima desértico – o mais carente da Península Arábica – está em guerra há cinco anos. Combatentes aguerridos das montanhas do norte, os hutis, rebeldes xiitas apoiados pelo Irã, ganharam terreno desde a captura da capital, Sanaa, em janeiro de 2015. Do outro lado, as forças do governo do presidente Abdrabbo Mansour Hadi, exiladas em Riad, são apoiadas por uma coalizão militar liderada pela Arábia Saudita, Estado sunita. Em abril, a coalizão declarou um cessar-fogo unilateral, que rapidamente foi abandonado. Um país gravemente afetado pela pandemia e pela queda dos preços do petróleo, a Arábia Saudita gostaria de pôr um fim a esse conflito que é impossível de ganhar.
Iêmen | Foto: Britannica Escola
Os hutis, que se autodeclaram como um “movimento dos menos favorecidos”, controlam 20% do território, mas 80% da população. Eles se consideram como legítimos à frente do Iêmen. Lar de jihadistas, sujeita a vários perigos separatistas, a nação altamente dividida ameaça se fragmentar. “Infelizmente, as esperanças de paz no Iêmen estão muito distantes”, estimou recentemente Franck Mermier, diretor de pesquisa do CNRS, que está desolado com a destruição provocada pelos atentados, especialmente em dois distritos de Sanaa e em sítios arqueológicos. A coalizão conta com o apoio estratégico dos Estados Unidos, mas também do Reino Unido e da França. Uma investigação jornalística mostrou que o Hexágono [a França] até vendeu navios que participaram do bloqueio.
A população civil do Iêmen está sofrendo o impacto dessa “guerra suja”, que já teria provocado a morte de pelo menos 100 mil pessoas, incluindo muitas crianças. O país também tem milhões de pessoas deslocadas, 94 mil apenas de janeiro para cá. Além disso, devido ao bloqueio aéreo e marítimo de alimentos organizado pela coalizão saudita, 12 milhões de iemenitas sofrem de fome, incluindo 5 milhões de menores (dos 29 milhões no total). Muitas famílias se contentam com apenas uma refeição por dia. O recrutamento de moradores pelas milícias se generalizou: é através dessas redes que as famílias obtêm seus alimentos.
Oficialmente, a Covid-19 causou apenas cem mortes. No entanto, a maioria dos equipamentos de saúde não funciona mais. A dengue e o cólera também são galopantes. A escassez de água potável e a falta de energia se generalizaram. A taxa de pobreza aumentou devido à guerra. O Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD) estima hoje que 75% da população vive na pobreza, em comparação com 47% em 2014. No entanto, a população está resistindo. No início de junho, após o assassinato de um jornalista que trabalhava especialmente para a AFP, a multidão passou a exigir nas ruas mais liberdade de expressão. Assim como fez em massa em 2011, na esteira da Primavera Árabe.
Anteriormente parte do Império Inca, a Bolívia, uma nação andina de 11 milhões de habitantes, passou, no último ano, por uma grave crise política. Eleito em 2006, o presidente Evo Morales, um camponês cocalero originário de uma família Aimara, o primeiro “indígena” a chegar à presidência do país, concorreu ao quarto mandato em outubro de 2019. Mas fez isso sem respeitar o resultado de um referendo que havia rejeitado a possibilidade de sua nova candidatura. Após 21 dias de manifestações por suposta fraude eleitoral, o presidente, de 60 anos, fugiu para o México e depois para a Argentina, onde vive com seus dois filhos e uma grande comunidade de exilados bolivianos. Uma investigação publicada no New York Times em junho pôs fim ao boato de fraude eleitoral.
Mapa da Bolívia (Fonte: Netmaps)
No poder desde janeiro, sem ter sido eleita, Jeanine Añez, 53, senadora e agora presidenta em exercício, tinha duas missões: convocar rapidamente novas eleições e unificar o país. Em nome da crise sanitária provocada pela pandemia, a eleição presidencial prevista para maio foi adiada para 6 de setembro. Em termos ideológicos, o país ficou mais dividido. Luis Arce, atual líder do Mas (Movimento ao Socialismo) e herdeiro político de Evo Morales, lidera as pesquisas, quando Jeanine Añez é apenas a terceira colocada, atrás do candidato centrista Carlos Mesa.
Apesar do confinamento total imposto desde 22 de março, o número de contaminações pelo coronavírus (mais de 18 mil) explodiu no mês passado, especialmente no leste do país e em Santa Cruz, a capital econômica. Neste país, entre os mais pobres do subcontinente latino-americano e onde grande parte da população vive do trabalho informal, diz-se que a quarentena é muito pouco respeitada. Tanto é assim que os prefeitos de La Paz e El Alto decidiram marcar as casas dos doentes com um sinal: “Aqui está a Covid-19!” Muitos acreditam que a crise do coronavírus, que até agora matou cerca de 600 pessoas, está sendo instrumentalizada. Isso permitiria à advogada conservadora no poder perseguir oponentes políticos e limitar a liberdade de expressão. Além disso, eclodiu um escândalo de corrupção vinculado à compra fraudulenta por parte do Estado de 170 respiradores da Espanha: o ministro da Saúde renunciou, o terceiro em três meses!
Somada à crise política e social, a crise da saúde começa a ter efeitos desastrosos na economia boliviana, que já está em dificuldades. À noite, nas janelas, panelaços ensurdecedores denunciam a administração muito improvisada da Presidenta interina. A Igreja também a acusa de colocar seus parentes em cargos das instituições públicas. Seus partidários, por outro lado, pedem para adiar mais uma vez a eleição presidencial, por causa do risco associado à pandemia em setembro.
A crise honconguesa recomeçou após a reunião plenária do Parlamento chinês, no final de maio, em Pequim. Uma nova lei de “segurança nacional” foi aprovada para proibir “a traição, a secessão, a sedição e a subversão” em Hong Kong, em resposta aos protestos massivos da oposição democrática em 2019. Os manifestantes temem que essa lei anuncie o fim de suas liberdades, em um território que ainda goza de grande autonomia em comparação com outras regiões da China.
Mapa de Hong Kong e sua localização na China (Foto: Site A Bordo do Mundo
Em um ano, a polícia de Hong Kong prendeu 8.981 pessoas com alguma vinculação com os protestos. A maioria ainda está sob investigação e se encontra em liberdade condicional. Uma minoria permanece no centro de detenção de Lai Chi Kok, em torno do qual é realizada uma manifestação de solidariedade todas as noites. Na tentativa de manter a atenção dos trumpistas, seus aliados mais poderosos, várias figuras pró-democracia denunciam violentamente as manifestações do Black Lives Matter, que eles acusam de estarem infiltradas pelo Partido Comunista Chinês, já que militantes antifascistas, apressadamente rotulados de comunistas, figuram entre suas fileiras.
De acordo com uma pesquisa realizada pela Câmara de Comércio de Hong Kong, a maioria das empresas apoia a nova lei, esperando que ela tenha um impacto positivo em seus negócios. Ávidas por estabilidade, algumas multinacionais de fato já mudaram sua sede asiática para Cingapura, este centro financeiro híbrido, uma mistura hábil de autoritarismo e de democracia. Se a situação se tornar dramática, Londres disse que estava pronta para facilitar a cidadania britânica para 350 mil honcongueses. Outros poderão obter asilo em Taiwan, que está planejando um vasto programa de integração, com moradia e emprego em jogo.
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Essas zonas de conflito que a Covid-19 (quase) faz esquecer - Instituto Humanitas Unisinos - IHU