11 Mai 2020
Reproduzimos do site dos religiosos e religiosas franceses a mensagem que a presidente, irmã Véronique Margron, enviou a todos religiosos e todas religiosas em 3 de maio. Um convite para entender o tempo da pandemia e o futuro.
A mensagem é publicada por Settimana News, 10-05-2020. A tradução é de Luisa Rabolini.
“Mas Deus escolheu as coisas loucas deste mundo para confundir as sábias; e Deus escolheu as coisas fracas deste mundo para confundir as fortes; E Deus escolheu as coisas vis deste mundo, e as desprezíveis, e as que não são, para aniquilar as que são; Para que nenhuma carne se glorie perante ele" (1 Cor 1, 27-29).
Queridas irmãs, queridos irmãos, queridos padres, queridos amigos,
Com essas perguntas que fermentam dentro de mim, gostaria de encontrar um momento para vocês, enquanto se anuncia uma segunda fase incerta, precária, se não perigosa, em comparação com o que vivemos, indicado como "confinamento". Com o coração pesado e preocupado dos dias atuais pelos nossos, pela manutenção de nossas casas, pelo que é possível garantir e sustentar para o nosso futuro, o que temos ou não entendido? Seremos diferentes?
Silêncio e gratidão. Primeiro entramos no silêncio há seis semanas. O de nossas igrejas e capelas, de nossas celebrações, bem como de nossos corações e de nossas almas abaladas, até mesmo de nossa razão que ficou desprovida de referências.
Tempo da Quaresma, então, na grande Semana, tentamos acompanhar o Filho do homem passo a passo até o túmulo.
Tempo da semana radiante, como a chamam os nossos irmãos ortodoxos, semana da transfiguração do mundo, com a certeza de que a morte foi vencida e o mundo salvo.
Naquelas horas tão caras à nossa fé, tão centrais para nós em nosso desejo de votar a ele a nossa vida, a nossa busca e todo o nosso ser, tivemos que voltar principalmente para o nosso hóspede interior. Com uma força que não é, infelizmente, de todos os cristãos: e poder fazer isso juntos, compartilhando humanidade e fé. Nas comunidades muitas vezes muito criativas em relação à liturgia e às relações humanas nessas circunstâncias sem precedentes.
No vazio do silêncio, na impossibilidade de acolher e celebrar para e com os outros, estava e está em ação uma atividade transbordante, fiel entre os fiéis. Mulheres e homens ocupados em servir o mundo para que permaneça humano. Dedicados aos cuidados de todas as formas, nos hospitais, nas casas de repouso ou nas padarias, dos mais conhecidos aos mais humildes, todos igualmente preciosos ... que dia e noite velaram, cuidaram e muitas vezes salvaram muitas e muitas vidas. Incluindo pessoas próximas a nós, amigos, conhecidos, irmãos e irmãs. Estão em atividade desde o início da tempestade. Para eles, não é o momento da pergunta "por que uma catástrofe tão grande?", mas de combatê-la com as mãos nuas e o corpo indefeso.
Combater é basicamente a única maneira de responder à questão do mal. "O mal é contra o que lutamos; em certo sentido, não temos outras relações com ele senão a de ser contra”. [1] Como Christiane Rancé escreveu muito oportunamente no La Croix, [2] "inúmeras Marta atarefam-se à nossa volta" para que ainda possamos convidar Jesus para as nossas casas e nas nossas vidas e para descansar por alguns instantes. Todos eles estão dando "o máximo de si" pela vida de todos. Amanhã, se sairmos vivos dessa imensa prova pessoal e coletiva, não podemos esquecê-los e devemos repetir nossa gratidão a eles novamente.
Talvez nestes meses tenhamos entendido de novo uma verdadeira Presença, a que é expressa no cuidado de outros, em carne e ossos, em nossa presença uns para com os outros, em oração e intercessão, em presença ativa e amigável, preocupada com os outros e com todos. Apresentar a Jesus o mundo "doente" (Jo 11, 3), "aquele a quem você ama". O despojamento exigido pela crise sanitária, humana, econômica e ecológica aguarda uma nossa resposta sóbria e vibrante, íntima e total em favor dos corpos mais frágeis e preciosos que são a humanidade de cada um e de todos. "O doente pede ar e ajuda em seu nome e em nome de todo o planeta". [3]
Nas últimas semanas, muitos de nós trememos e choramos por amigos, irmãs e irmãos que morreram ou em situações muito críticas, reunindo nossa existência em seu dado elementar, como na fé nua. Amanhã, quando talvez voltarmos a circular, acolher, abrir nossas as nossas comunidades, capelas e igrejas, não será uma questão de retomar a vida de onde paramos, mas de internalizar a agitação causada por esse tempo, de ser mudados por ele. Na fé como nos costumes nos deixaremos visitar, questionar, interrogar pelo que passou, por um evento que perturbou todas as coisas?
Memória e fraternidade. ”Porque eu sei que o meu Redentor vive, e que por fim se levantará sobre a terra. E depois de consumida a minha pele, contudo ainda em minha carne verei a Deus, Vê-lo-ei, por mim mesmo, e os meus olhos, e não outros o contemplarão" (Jó 19,25-27). Sabemos, para nós talvez e para muitos outros, a morte que bateu nas portas de nossas comunidades, famílias e amigos, de nossas cidades e campos, deixa um estado de choque, de estranhamento. Porque para muitos não foi possível visitar, acompanhar e estar presentes, juntos, ao redor do morto, para velá-lo, mas, acima de tudo, para nos acompanharmos uns aos outros, para nos consolarmos. Tudo foi resolvido em um pequeno grupo e rapidamente. Como expressar dívida com aqueles que partiram? Como podemos acreditar em sua morte quando nenhum afeto nos atesta isso?
Haverá muito a esclarecer sobre a necessidade sanitária - ou não - que obrigou a tais desumanidades, a tais crueldades. Discutiremos muito - e será necessário - mais adiante entre Antígona e Creonte. É possível um compromisso quando o "gargalo do ponto de vista", a maneira como cada um dos protagonistas afunda em seu papel sem poder sair dele, os torna eternamente inconciliáveis? [4]
Mas a questão é principalmente esta: como poderemos sustentar a elaboração do luto da perda, uma vez que foi impossível, ou quase, cuidar dos mortos? O que o homem fez desde a noite dos tempos e bem antes de Sófocles (século V a.C.). Motivo de preocupação certamente para os cristãos que não puderam celebrar seus falecidos confiando-o ao Deus de toda misericórdia, mas também para todos os outros porque, diante da dor, da perda, da mistura de sentimentos, do sentimento de culpa por não ter feito o que gostaríamos de fazer, somos todos iguais, todos indefesos. Como a nossa amizade, as nossas liturgias, os salmos, a leitura das Escrituras poderão reatar o fio da humanidade que nos une, vivos e mortos? Que compromisso, que fraternidade nós teremos aqui, uns pelos outros?
A modéstia dos reparadores. A modéstia poderia ser a nova e benevolente bandeira para o nosso país e também para as comunidades, civis e religiosas. O Covid-19 ressaltou como passamos de incerteza para incerteza. “Preste atenção ao inesperado”, escreveu Edgar Morin há alguns dias no Le Monde por ocasião do “festival da incerteza”: [5] a origem do vírus, as mutações que ele sofre ou pode sofrer durante sua propagação, quando a pandemia diminuirá ou se o vírus se tornar endêmico; as consequências psíquicas, familiares e conjugais da quarentena; as consequências políticas, econômicas, nacionais e planetárias do drama. Por fim, ele observava "não sabemos se devemos esperar o pior ou o melhor, ou uma mistura dos dois: vamos rumo a novas incertezas".
Tudo isso requer modéstia de parte de todos. Aos cientistas, aos políticos, aos protagonistas do mundo compartilhado de ontem, como à Igreja e a cada um de nós. Quanto à nossa Igreja Católica, o drama e o escândalo dos abusos e das agressões sexuais já nos levaram, com dor e dificuldade, mas, na verdade - espero - à necessária modéstia que consiste principalmente em aprender com o outro, começando com aqueles e aquelas que foram feridos pelos crimes. Ir para a escola do "reverso" do mundo. Hoje somos convidados com mais força ainda a aprender com os "primeiros atingidos" e com aqueles que estão "na linha de frente".
Renunciar às certezas, às ideias indiscutidas, as pretensões fáceis. Não escorregar facilmente demais para o papel de especialistas de bobagens de Covid-19, do isolamento e do des-isolamento. Tentar esclarecer com modéstia, tateando como todos, abandonando toda presunção, porque se "as coisas continuarem como antes, esta será a catástrofe". [6] Chegará o momento em que, como cidadãos responsáveis deste país, poderemos debater as medidas tomadas ou não tomadas. Mas agora é o tempo da batalha contra a doença e seu cortejo de dramas para as pessoas e para os povos, aqui ou em outro lugar.
Nós que nos colocamos em tradições duradouras, que decidimos colocar nossos passos incertos sobre aqueles do único Senhor da paz, também devemos participar do momento que deve apoiar a paz social indispensável para as provações que virão. O momento atual exacerbou dificuldades, suspeitas, mal-estares generalizados, dores e até ressentimentos. Este não é o momento de amplificá-los. Mas sim de ser modestos construtores de vínculos, de coesão, de gratidão. "A civilização é um bem invisível, porque não diz respeito às coisas, mas aos laços simbólicos que se ligam um ao outro, desta maneira e não de maneira diferente", destacava Antoine de Saint-Exupéry em uma carta terrível e vibrante. [7]
O que se espera de nós é que sejamos "reparadores de brechas". “E os que de ti procederem edificarão as ruínas antigas; e tu levantarás os fundamentos de muitas gerações; e serás chamado reparador da brecha, e restaurador de veredas para morar" (Is 58,12).
Reparar as brechas, recolocar em uso as estradas não significa cuidar apenas de nossas comunidades, de nosso futuro - mesmo que seja necessário -, mas de criar laços que nos unam a todos. Do nosso destino comum, arruinado por muitos dramas e por essa provação coletiva, verdadeira catástrofe.
Reparadores de brechas, isso não significa fazer tudo como antes. Lembremo-nos do jovem medidor em Jerusalém (Zc 2,5). Ele vem medir a cidade para sua reconstrução, em comprimento e largura. Mas um anjo o faz entender que "Jerusalém será habitada como as aldeias sem muros, por causa da multidão dos homens e dos animais que haverá nela" (v. 4). Uma cidade cuja glória é o Senhor.
Não seremos meros reparadores, mas construtores. Não com a pretensão tão falaciosa de fazer tábula rasa da memória. Toda a profundidade da história da vida religiosa, de sua audácia, de sua capacidade de inovação em favor dos abandonados de toda época, bem como dos sedentos de justiça, de beleza e de verdade, do próprio Deus, convida ao risco de uma esperança lúcida para caminhar no futuro.
Os relatos bíblicos, a história da Igreja, a tradição viva de nossas comunidades são testemunhas disso: a novidade pode surgir de onde não se espera. Vamos procurar juntos, qualquer que sejam as nossas forças, o nosso número, a nossa idade, vamos tentar estar à altura do desafio para "falar absolutamente aos homens", como Saint-Exupéry dizia ainda no mesmo texto.
O dom e a comunhão. Durante esse período e para o futuro, nossa preocupação será necessariamente a de proteger a nós mesmos e proteger os outros, especialmente os mais frágeis. É a nossa primeira e insuperável tarefa fraterna. E muitos de nós sentimos a dor de não poder fazer isso para todos.
Um teste, que provém do fundo mais arcaico da percepção da propagação do mal através do contato, nos lembrou dolorosamente que, se pensávamos que éramos definidos por nossos papéis, por nossa vontade, nos rendemos diante de uma passividade essencial, para a nossa fragilidade - que deriva do vulnus, "ferida" - isto é, pela possível alteração do corpo, sua exposição a doenças e sua necessidade de cura e dos outros. Como podemos fazer para que essa vulnerabilidade não nos paralise, não nos amasse, mas nos remeta de volta à nossa responsabilidade pelos outros e para tomar parte das provações comuns? Passando do contato que mata para a comunhão, para a cura, para a fraternidade que renovam e tornam a vida possível e feliz.
Nossas vidas não devem ser preservadas "de qualquer maneira", mas devem ser doadas e colocadas à disposição. Como podemos conciliar as medidas de saúde necessárias para não pôr em risco ninguém com nossa profunda vocação para nos tornar, dia após dia, "ser dom" e "para o dom"? Não por heroísmo. Somente graças à arte de amar na escola do Filho do homem é a única razão para dar hoje a outros o prazer de segui-lo hoje. Um dom e uma comunhão que alimentam nossa preocupação com todos aqueles e aquelas que saem exânimes - pobreza, violência, isolamento, dor ... - desse tempo massacrante.
Retomar a antiga afirmação do velho Simeão ao encontrar o menino - "meus olhos já viram sua salvação" (Lc 2,30) - significa entrar na segurança de que nossa existência em favor de homens e mulheres desta época atormentada, não terá sido em vão. Ser buscadores de um Deus que nos convida a descobrir as Galileias do momento histórico, próximo a todos os afetados direta ou indiretamente pela pandemia, porque "não está aqui" onde era esperado ou onde temos o hábito de encontrá-lo, "para que o amor não interrompa sua afirmação”. [8]
“O que as suas mãos tiverem que fazer, que o façam com toda a sua força” (Ec 9,10). Meus caros, continuemos a ficar próximos uns dos outros, a nos apoiar e encorajar, com toda a nossa amizade fraterna.
[1] P. Ricoeur, em Le scandal du mal, Esprit julho-agosto 1988.
[2] La Croix, 23 de abril de 2020.
[3] Erri de Luca, Le Samedi de la terre, Tracts Gallimard, 19 de março de 2020.
[4] Cf. P. Ricoeur, Vivant jusqu'à la mort, Paris, Seuil 2007.
[5] Le Monde 18-19 abril; «Un festival d'incertitudes» E. Morin; Tract-Gallimard 21 de abril de 2020.
[6] Walter Banjamin, Baudelaire, ed. G. Agamben B. Chitussi – CC Härle, (tradução do alemão de P. Charbonneau, La Fabrique, 2013).
[7] Carta de 30 julho de 1944, escrita ao general X, na véspera de sua morte na costa de Marselha, abril 2020.
[8] J.-L. Chretien, De la fatigue, Paris, Minuit, 1996, p. 164.
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Carta aos consagrados: Seremos diferentes? - Instituto Humanitas Unisinos - IHU