Presentes, mas de longe: a infinita complexidade das noções de presença e distância

Foto: Arquidiocese de Juiz de Fora/Divulgação

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08 Abril 2020

Um dos desafios levantados pelo distanciamento social é como conciliar presença pessoal e distância. A presença é tátil e próxima. Medir a separação prescrita quando as pessoas caminham pelo parque no início da manhã tende a transformar os conhecidos em estranhos, e as saudações em distanciamentos.

O comentário é de Andrew Hamilton, articulista da revista Eureka dos jesuítas da Austrália, publicado por La Croix International, 04-04-2020. A tradução é de Moisés Sbardelotto.

Eis o texto.

Por outro lado, para superar a distância, felizmente contamos com o Zoom e outras tecnologias que nos permitem ver o rosto uns dos outros. Como conciliar essa interação entre distância e presença merece reflexão.

Minha própria reflexão traz as cores da minha católica e foi motivada pelo necessário fechamento das igrejas.

Na tradição católica, a fé é tátil. Em seu cerne, está um Deus que, em Jesus Cristo, se uniu ao nosso mundo, caminhou entre nós e arriscou a própria pele.

Entende-se que Deus está presente em coisas simples e face a face – nas reuniões de amigos e de estranhos, de ricos e de pobres; comendo pão e bebendo vinho, ensinando e ouvindo, brincando e falando sério, derramando água e ungindo com óleo, apertando mãos e abraçando.

O símbolo e o ritual centrais desse entendimento é a Eucaristia dominical, em que as pessoas se reúnem para rezar, comer e beber na crença de que Cristo está realmente ativo naquilo que elas fazem e realmente presente naquilo que comem e bebem.

Visto a partir dessa perspectiva, o fechamento das igrejas e das consequentes reuniões para celebrar a Eucaristia é um assunto sério. Os modos privilegiados pelos quais Deus está presente não podem ser totalmente substituídos por outras formas de presença. O resultado esperado do fechamento das igrejas pode ser o distanciamento de Deus da vida das pessoas.

No entanto, para muitas pessoas, isso parece não acontecer. Elas descobrem que a transmissão televisionada da missa e de outros ritos e o envolvimento com outras expressões de fé eletrônicas superam as barreiras da distância. Explorar por que isso ocorre pode esclarecer questões mais amplas sobre presença e distância na nossa sociedade confinada.

O risco inerente de confiar na presença a distância

Questões sobre presença, distância, realidade e aparência têm sido centrais na reflexão cristã sobre a Eucaristia há um milênio. Ela se centrou na relação entre o que Cristo fez na sua época e o que os católicos fazem na Eucaristia.

Os católicos argumentam que Cristo está presente em cada Eucaristia, tanto na ação que faz memória dele, quanto no pão e no vinho.

Em última análise, a distância entre o que Cristo fez então e agora é ilusória. Quando vista empiricamente, é claro, a distância é grande: o pão e o vinho permanecem pão e vinho; Jesus viveu há 2.000 anos e nós nos reunimos agora. Mas, para os participantes, a distância aparente desaparece.

Esse resumo bruto de um debate complexo pode esclarecer o modo como a distância e a presença são reconciliadas na mídia eletrônica. Quando as pessoas se reúnem no Zoom, elas permanecem empiricamente distantes. Elas não estão sobre a tela, mas apenas as imagens de seus rostos e as projeções de suas vozes.

Mas elas teriam razão em descrever a sua presença umas às outras como uma presença real, não como uma distância. Em termos humanos, as pessoas realmente se encontram face a face, mesmo que um relato empírico da transmissão de imagens possa descrever sua relação como uma relação de distanciamento real.

A qualidade e a realidade da presença eletrônica das pessoas umas em relação às outras dependem da riqueza da sua imaginação. Por imaginação, eu me refiro ao modo pelo qual vemos as qualidades e as conexões detalhadas das nossas vidas e do mundo. A nossa imaginação pode representar coisas e pessoas de um modo turvo ou homogeneizado, ou pode capturar os detalhes táteis e a multiplicidade de facetas presentes em nosso contato face a face.

O risco inerente de confiar na presença a distância é que a imaginação se torna turva pela falta de frescor, de modo que vemos as pessoas de forma estereotipada ou turva. A falta de contato tangível pode fazer com que a nossa imaginação não seja renovada e a sensação de presença tátil seja enfraquecida. A distância vence a presença.

Para manter a intensidade da presença, precisamos enriquecer a imaginação com um hábito de atenção aos detalhes táteis do nosso mundo.

Precisamos atender à infinita complexidade das pessoas às quais estamos fisicamente presentes, à sensação de estar de pés descalços sobre carpetes e tijolos, aos bolsões de ar fresco debaixo da sombra das árvores em um dia quente, à qualidade das flores vermelhas e das folhas verdes do gerânio do lado de fora da nossa janela.

Essa atenção e admiração habituais também alimentarão memórias nítidas de pessoas e eventos na nossa imaginação, fortalecendo, assim, a realidade da presença a distância.

Deixo para que outros, em outra conversa, decidam se essa linha de pensamento tem alguma relevância para a Eucaristia. No entanto, ela pode sugerir que, em um tempo de distanciamento forçado dos católicos, eles podem cultivar com proveito a consciência da presença de Deus nos detalhes tangíveis do mundo ao seu redor.

 

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