26 Março 2020
“O surto de coronavírus está servindo como um exercício de abertura mental. Chegou o momento de buscar soluções que antes eram impensáveis. As dívidas que não podem ser pagas não serão pagas. Um “jubileu” das dívidas é a melhor saída”, escreve Michael Hudson, economista estadunidense, em artigo publicado por The Washington Post e reproduzido por Observatorio de la crisis, 23-03-2020. A tradução é do Cepat.
Antes que surgisse o coronavírus, muitas famílias estadunidenses tinham sérias dificuldades para pagar os cartões de crédito, os empréstimos estudantis, os empréstimos para comprar automóveis e outros tipos de dívidas. A dívida dos Estados Unidos estava colocando seus trabalhadores fora do mercado. Uma crise da dívida era inevitável, a COVID-19 só a adiantou.
O “distanciamento social” com a subsecutiva perda massiva de empregos, a crise da Bolsa e os enormes resgates às corporações, agora, ameaça diretamente uma forte depressão. Mas não há motivo para ser necessariamente assim.
A história nos oferece uma alternativa: declarar um “jubileu” da dívida. Em poucas palavras, isso significa limpar o quadro. Significa reconhecer que quando as dívidas crescem muito, os devedores caem irremediavelmente na pobreza. E, nessas condições, a única maneira de restaurar o equilíbrio econômico é eliminar as dívidas impagáveis, fazer um “Jubileu da dívida”.
A palavra “Jubileu” vem da palavra hebraica “yobel” (trompete) porque, segundo a antiga Lei Mosaica, a cada 50 anos, tocavam-se trompetes para anunciar o Ano do Senhor, o Ano em que as dívidas pessoais tinham que ser eliminadas.
A outra opção era que os pequenos proprietários perdessem suas terras pelas mãos dos credores. Assumindo as tradições de sua época, o profeta Isaías escreveu: “Ai de vocês que acumulam casas e mais casas, campos e mais campos, até que vivam sozinhos na terra”. Mais tarde, quando Jesus fez o seu primeiro sermão, o Evangelho de Lucas o descreve desenrolando um pergaminho com as palavras de Isaías para anunciar o Ano do Jubileu, o ano do fim das dívidas.
Até recentemente, muitos historiadores duvidavam que o cancelamento da dívida tivesse sido colocado em prática na antiguidade. Contudo, as pesquisas dos especialistas em Assíria encontraram documentos que certificam que no Oriente Próximo era normal que os governantes proclamassem uma anistia no momento de aceder ao trono. Em lugar de fazer soar os trompetes, muitos novos reis “levantavam uma tocha sagrada” para indicar que se promulgava uma anistia pelas dívidas.
Esses reis não atuavam de maneira idealista ao perdoar as dívidas. O que buscavam era evitar que as cidades-estado perdessem sua força de trabalho, uma vez que os devedores ao cair na escravidão eram obrigados a trabalhar para prestamistas privados. Muitos devedores também fugiam para outras cidades (assim como os gregos emigraram, após sua recente crise da dívida) e os reinos sem mão de obra ficavam propensos a ser atacados por países rivais.
Os paralelismos com o momento atual são notáveis. A economia dos Estados Unidos se polarizou fortemente desde o crash de 2008. Para muitos, as dívidas deixam poucas receitas disponíveis. Em uma economia em crise, uma nova onda de dívidas absorverá a maior parte da riqueza obtida a partir de 2008 e dividirá ainda mais a nossa sociedade.
Isto já ocorreu na história recente. Após a Primeira Guerra Mundial, o peso das dívidas de guerra fez a Alemanha quebrar, contribuindo com o colapso financeiro mundial de 1929-1931. A Alemanha era insolvente e sua política se polarizou. Todos sabemos como terminou essa história.
A quebra bancária dos Estados Unidos, em 2008, ofereceu uma grande oportunidade para acabar com as hipotecas lixo (muitas fraudulentas) que continuam pesando sobre as famílias de baixa renda. Contudo, isso não aconteceu e milhões de estadunidenses foram desalojados de suas casas.
A única forma de restaurar certo equilíbrio social é uma redução drástica das dívidas. As que contam com maior probabilidade de não serem pagas são as dívidas dos estudantes, as médicas e as dos consumidores em geral. Todas bloqueiam o gasto em bens e serviços, reduzindo a economia “real”. Fazer uma amortização é uma ação pragmática, mas não é uma “solução moral” a favor dos mais necessitados.
De fato, o chamado “milagre econômico alemão” foi um processo iniciado em 1948 com a reforma monetária impulsionada pelas potências aliadas. Naquele ano, introduziu-se o Marco Alemão - em substituição ao Reichsmark -, eliminando-se dessa maneira 90% da dívida pública e privada. A partir daí, a Alemanha emergiu como um país livre de dívidas, com baixos custos de produção e com uma economia moderna.
O dogma econômico dominante sustenta que uma medida deste tipo produzirá um colapso econômico para os credores. Para solucionar a questão, o governo Trump destinou 4,5 trilhões de dólares ao capital financeiro, em vez de absorver as dívidas impagáveis, produto do desemprego massivo.
Para o Banco e os prestamistas privados, só devem ser eliminados os encargos por mora e as multas. Na realidade, estas medidas são uma maneira de subvencionar os empréstimos falidos e favorecer os especuladores que os concederam.
No passado, o politicamente poderoso setor financeiro bloqueou uma anistia que concedesse um respiro às pessoas. Até agora, a ética majoritária foi que as dívidas devem ser pagas religiosamente. É hora de reconhecer que a maioria das dívidas NÃO podem ser pagas. Os devedores não têm, nem devem sentir qualquer culpa frente ao desastre econômico que nos acossa.
O surto de coronavírus está servindo como um exercício de abertura mental. Chegou o momento de buscar soluções que antes eram impensáveis. As dívidas que não podem ser pagas não serão pagas. Um “jubileu” das dívidas é a melhor saída.
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Estados Unidos. Um “jubileu” da dívida é a única maneira de evitar a depressão - Instituto Humanitas Unisinos - IHU