23 Março 2015
Devemos atualizar os conteúdos do Jubileu. Como restituir os bens perdidos ao seu proprietário original? Levando de volta bens e serviços que foram objeto de apropriação privada à sua origem ou função de "bens comuns" – isto é, de todos – a serviço daqueles que foram expropriados deles pelos processos de privatização. E isso vale para os bens materiais, para os serviços, para aqueles bens que vêm ao mundo graças ao trabalho conjunto de milhões de pessoas, tais como os saberes, a cultura, a socialidade.
A opinião é do sociólogo e escritor italiano Guido Viale, em artigo publicado no jornal Il Manifesto, 19-03-2015. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Eis o texto.
No próximo dia 8 de dezembro, o ano vai se tornar "santo". Porque, para essa data, o Papa Francisco convocou um Jubileu, que vai durar até novembro de 2016. Jubileu é uma palavra de origem hebraica, indica um aniversário que caía a cada 50 anos, em que, na Palestina de antigamente, o povo de Israel perdoava as dívidas, libertava os servos e restituía os bens aos proprietários que os tinham perdido.
O Papa Francisco convocou o próximo Jubileu (extraordinário, porque cairá a apenas 16 anos desde o último) no sinal da misericórdia. Uma atitude que a muitos de nós diz pouco; mas acredito que o Jubileu ainda pode abrir um debate: não com "o mundo católico" – termo vazio e ficção de baixa política –, mas com aqueles católicos que realmente acreditam naquilo que professam (um componente importante daqueles que lutam por um mundo diferente). E, se tivermos também a bênção do papa, ainda melhor.
Mas devemos atualizar os conteúdos do Jubileu: em termos gerais, não é difícil fazer isso. Como restituir os bens perdidos ao seu proprietário original? Levando de volta bens e serviços que foram objeto de apropriação privada à sua origem ou função de "bens comuns" – isto é, de todos – a serviço daqueles que foram expropriados deles pelos processos de privatização.
E isso vale tanto para os bens materiais, tais como solos, edifícios e recursos básicos, como água, comida e habitação, quanto para os serviços – em particular, os serviços públicos locais e aqueles de utilidade pública –, quanto para aqueles bens que vêm ao mundo graças ao trabalho conjunto de milhões de pessoas, mas expropriados quase simultaneamente ao seu aparecimento, tais como os saberes, a cultura, a socialidade.
E, depois, encerrando para sempre o capítulo das Grandes Obras: um desperdício (combinado com furtos e malversações contínuas) de recursos comuns para devastar territórios e comunidades.
Quanto à libertação dos servos, hoje essa categoria de trabalhadores não é mais contemplada pelos códigos civis; mas está em curso um processo voltado a reconduzir a uma condição servil o trabalho – seja o assalariado, seja o autônomo, como, aliás, sempre é uma grande parte do trabalho de cuidado – através do desmantelamento completo desses direitos, conquistados com duras lutas e imensos sacrifícios, que, em certa medida, protegiam-no da arbitrariedade do "patrão" (hoje, empregador, contratante ou chefe de família).
Acima de tudo, o Jubileu que liberta os servos não pode coincidir, para os italianos, com a revogação do Jobs Act e com a reintrodução do Artigo 18. Mas nem com muitas outras coisas que caracterizam um trabalho livre, cuja premissa é uma renda universal garantida, condição inalienável para que o trabalho não seja exposto a contínuas chantagens.
O significado, hoje, por fim, da remissão das dívidas não precisa ser buscado por nós muito longe; porque os acontecimentos na Grécia e, antes ainda, os da própria Itália o colocaram no centro do debate político.
A primeira dívida da qual devemos ser libertados é daquela que pesa sobre cada um de nós sem nunca a termos assinado, porque contraíram-na, em nosso nome e por nossa conta, sem estarem autorizados, os nossos governos. E não em relação a uma entidade pública como um banco central (o que, em última instância, significaria ser devedores para consigo mesmos); mas em relação a instituições financeiras, como bancos privados, companhias de seguro e especuladores riquíssimos, que fizeram da dívida chamada "soberana" um instrumento de governo das políticas públicas e que puseram nas suas mãos – para o seu exclusivo interesse – a vida de milhões de cidadãos e de trabalhadores.
Depois, cada um de nós também pode ter se endividado para enfrentar exigências que a sua renda não lhe permitia cumprir: empréstimos, prestações, concessões de crédito, cartões de crédito, "empréstimos de honra". E, por trás dessas dívidas, reencontramos as mesmas instituições.
Tudo isso faz do cidadão das sociedades de hoje um "homem endividado": a condição existencial permanente de um "sujeito" – no sentido de súdito – do qual se poderá extrair valor indefinidamente e ao qual sempre se poderá impor submissão, pelo simples fato de que ele nunca mais estará na condição de se libertar da sua dívida.
Em nenhum caso como esse, a remissão da dívida é a resposta irrenunciável para restituir a um Jubileu o seu sentido autêntico. Depois, interverá a necessidade de articular, modular e cadenciar no tempo esse objetivo: um exercício que vê atualmente comprometido o novo governo grego, sozinho contra todos.
Mas, quando chegar o Jubileu, espera-se que o governo grego tenha conseguido resistir e que outros atores – governos, instituições, movimentos de massa, novas coalizões sociais – se coloquem ao seu lado para conduzir juntos essa sacrossanta batalha.
Mas há outra dívida gigantesca que incumbe sobre todos nós e em comparação com a qual as dívidas públicas de todos os Estados do mundo, submetidos aos caprichos da alta finança. são apenas pequenos galhos levados pelo vento da história. É a dívida que contraímos e continuamos contraindo em relação à Terra, ao vivento, ao ambiente em que habitamos e do qual fazemos parte.
É uma dívida que não merece e não torna possível qualquer remissão, porque, como diz o Papa Francisco, Deus perdoa sempre; o homem, às vezes; mas a natureza não perdoa nunca.
Aquilo que lhe foi tirado e que continua lhe sendo tirado deve ser restituído de algum modo, sob pena do desaparecimento das próprias condições de sobrevivência: nossa, dos nossos filhos, dos nossos netos e daqueles que terão a sorte de nascer depois deles.
Devemos restituir à natureza a possibilidade de "funcionar": de operar do modo que permitiu que a longuíssima série dos nossos progenitores e dos nossos antepassados chegasse a nos colocar no mundo.
Mas essa imensa dívida geral tem muitas facetas e muitos modos para ser saldada. Uma faceta, a principal, é a de começar a nos comportarmos, nos nossos consumos, no nosso estilo de vida, nas nossas escolhas políticas – mas, também, e principalmente, na medida do possível, no nosso trabalho – de modo a ofendê-la o menos possível; de modo a ajudá-la a se recuperar, a reconstituir, pouco a pouco, a pureza da atmosfera e do ar que respiramos, dos mares e da água que bebemos, a fertilidade do solo que nos alimenta e daquilo que ainda sobreviveu da biodiversidade. Uma tarefa nada pequena.
A outra faceta é a dívida ambiental que nós, cidadãos do mundo ocidental de antiga e consolidada industrialização, contraímos em relação aos habitantes do resto do mundo, ocupando por mais de dois séculos, com as nossas emissões de gases de efeito estufa, a atmosfera terrestre, que é um bem comum, talvez o maior deles: ar e espírito, respiração e vida são originalmente sinônimos.
Se não quisermos que o resto do mundo siga – como já está fazendo – o nosso mesmo caminho, multiplicando por três, por cinco, por sete, a ocupação da atmosfera com emissões per capita igualmente nefastas (e com despejos e resíduos poluentes em todos os cantos do planeta) até criar, dentro de poucos anos, uma mudança irreversível do clima e uma poluição da Terra que está tornando-a impossível de se viver, devemos dividir o "espaço carbônico" ainda disponível entre a geração atual e as futuras, e, dentro da geração atual, entre aqueles que já consumiram muito carbono e aqueles que recém-começaram a fazê-lo. E comportarmo-nos de modo semelhante com a retirada de recursos e com os resíduos sólidos e líquidos. Outro objetivo nada pequeno.
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Restituir o sentido de um Jubileu na crise socioambiental. Artigo de Guido Viale - Instituto Humanitas Unisinos - IHU