17 Dezembro 2019
“Estamos ficando para trás, como a reboque, muito tímidos, e a timidez apostólica não corresponde às exigências que surgem de tantas angústias humanas acumuladas no planeta. Este congresso dos 50 anos de Justiça Social e Ecologia foi de muito entusiasmo, insisto, mas repleto de timidez diante do impulso apostólico que os tempos atuais demandam. Não nos colocamos à altura da marca profética do Papa Francisco”, avalia Ismael Moreno (Melo), jesuíta, reconhecido defensor dos direitos humanos e diretor executivo da Rádio Progresso e da Equipe de Reflexão, Investigação e Comunicação (ERIC-SJ), em Honduras, ao avaliar o Congresso Mundial do Apostolado Social da Companhia de Jesus, ocorrido entre os dias 4 e 8 de novembro, em Roma.
O artigo é publicado por CPAL, 09-12-2019. A tradução é do Cepat.
Sem deixar de me surpreender pela inesperada delegação que recebi do Provincial da América Central para participar do Congresso do Secretariado de Justiça Social e Ecologia, realizado de 4 a 8 de novembro passado, em Roma, e mais ainda que os organizadores me incluíssem entre os que compartilharam seus depoimentos, sinto-me com a responsabilidade de devolver minhas impressões gerais sobre este acontecimento, especialmente relevante para a vida apostólica da Companhia de Jesus.
Encantou-me o encontro. Uma diversidade de presenças culturais, étnicas e sociais representadas nos mais de 200 delegados procedentes dos cinco continentes. Uma riqueza extraordinária que só posso agradecer como um presente de Deus e que, por sua vez, dá vitalidade à missão do apostolado social da Companhia.
Fiquei igualmente impressionado com a qualidade humana, intelectual e espiritual dos delegados, ao mesmo tempo, a sintonia com a identidade comum de tantas procedências. A amizade e a simplicidade nas relações humanas, vivências e partilhas me fizeram sentir gratidão por levar esse tesouro como um autêntico presente de Deus.
A riqueza e a variedade de depoimentos, bem como a análise e sistematização das contribuições, registram um serviço apostólico que se sustenta em uma análise profunda, um compromisso com a causa dos pobres e uma fé enraizada na gratuidade do amor de Deus. Sentia-se no ambiente o cheiro da imediatamente anterior experiência do Sínodo da Amazônia, e alguns de seus principais organizadores participaram do Congresso. E essa preocupação em aprofundar o compromisso com a defesa da Mãe Terra banhou todo o Congresso, desde os momentos de oração e discernimento, o trabalho em grupo, as eucaristias, as análises e os depoimentos.
No entanto, o encontro me deixou a sensação de ter sido mais eclipsado pelo entusiasmo do que pelos conteúdos do compromisso. Os organizadores souberam conduzir a tão nutrida assembleia com uma metodologia que conseguiu articular a oração e o discernimento com as plenárias que moldaram a vida do Congresso entre análises e depoimentos. Contudo, os grandes conteúdos que conduzissem a uma amarração que estremecesse o andar seguinte da missão da Companhia de Jesus se diluíram, escaparam como água na mão. Todos os temas necessários foram abordados, da ecologia à Mãe Terra, passando pela discriminação, exclusão, ausência de democracia até a necessidade de impulsionar a missão da Companhia em direção à inserção, maior liderança dos leigos e o desafio de estruturar respostas que comprometam a relação estrutural das universidades com os centros sociais.
Tudo isso foi tratado. Mas, faltou a centelha. Muitíssimo entusiasmo sem que o mesmo tenha correspondido à força que deixa para o futuro. Ainda que se insistiu que não devia ser visto como um evento, receio que não ultrapassou essa barreira, e com o tempo o entusiasmo poderá ir diminuindo até deixar a memória ancorada em um passado cheio de nostalgias, mas com pouca incidência nos desafios apostólicos históricos.
Foi um importante encontro de memória e narrativa dos 50 anos de apostolado social, de uma inspiração profética do Padre Pedro Arrupe em saber situar a missão da Companhia de Jesus em um período efervescente e em uma humanidade da segunda metade do século XX, que estimulavam transformações que afastassem o planeta de uma nova guerra e que estabelecesse pontes de paz, justiça e dignidade para os povos oprimidos da terra.
Cinquenta anos atrás, o Padre Pedro Arrupe acendeu o pavio profético que transtornou apostólica, humana e espiritualmente toda a vida da Companhia da mesma Igreja. Foram tempos convulsos, diante dos quais o Padre Arrupe soube dar respostas audazes e criativas. Foi uma centelha profética muito característica de uma Companhia de Jesus chamada a ser sempre cavalaria ligeira para uma Igreja que procurava historicizar a força que irradiou do Vaticano II. Para a América Latina e o Caribe, o Secretariado de Justiça Social da Companhia de Jesus significou um Sim muito firme a uma Conferência Episcopal Latino-Americana que em Medellín estava formulando, em chave com as comunidades de base e a opção pelos pobres, as grandes opções do Concílio.
Cinquenta anos depois, estamos em um século complexo, com uma tecnologia que nos aproxima de todos os povos da terra, mas com um sistema dirigido pelo capital que nos separa, nos confronta, nos mergulha em polarizações, depreda a Mãe Natureza e demanda da Igreja e da Companhia de Jesus uma voz profética para esses tempos turbulentos. A globalização tem tanta força e pujança que nos vence a partida. Diante do ceticismo de grandes conglomerados humanos, a irrupção das lutas feministas e as relações de suspeita diante de um mundo religioso pelo menos ambíguo, a credibilidade da Igreja e da Companhia de Jesus está em jogo.
O tempo deste século XXI clama por uma centelha profética. O mundo se afunda em distrações tecnológicas e em uma globalização da concentração das riquezas e em uma distribuição massiva de angústia humana. O Papa Francisco deu um passo à frente. Sua palavra, seus sinais de testemunho, sua decisão de confrontar denúncias de abusos por parte de não poucas autoridades eclesiásticas, a vinculação entre o amor aos pobres e à Mãe Natureza, colocam o Papa em posição de testemunho profético.
Estamos ficando para trás, como a reboque, muito tímidos, e a timidez apostólica não corresponde às exigências que surgem de tantas angústias humanas acumuladas no planeta. Este congresso dos 50 anos de Justiça Social e Ecologia foi de muito entusiasmo, insisto, mas repleto de timidez diante do impulso apostólico que os tempos atuais demandam. Não nos colocamos à altura da marca profética do Papa Francisco. Um entusiasmo balizado mais pelas lideranças provenientes dos países do grande norte do que pela força criativa e desestabilizadora provenientes das periferias do planeta.
Penso que foi muito bonito nos encontrarmos em Roma, o centro da Igreja e da Companhia de Jesus, mas foi acertado ter escolhido esse centro para tratar temáticas que se comprometessem com as periferias, em vez de ter escolhido, até por um simbolismo profético, um Sudão, um Mumbai, um Porto Príncipe, um Brasil, ou uma surrada Honduras? Na verdade, foi mais cômodo, facilitou mais as viagens e certamente barateou os custos, mas à custa de centralizar mais algumas decisões, e marginalizar um pouco mais as periferias? São apenas inquietações.
É uma virtude que sigamos um Papa profético, mas não é tanto quando o apostolado social é chamado a ser, de maneira muito especial, a cavalaria ligeira dentro da Companhia de Jesus. E apenas com entusiasmo, o cansaço pode nos vencer a partida. Já a Congregação Geral 36 ficou muito atrás do andar profético do Papa Francisco. É verdade, houve gestos bonitos e proféticos, como a presença de 35% de leigos e leigas, e a reunião que, espontaneamente, as mulheres participantes tiveram com o Padre Geral. Foi especialmente saudável o tempo dedicado à oração e ao discernimento. Contudo, com bem pouca oportunidade para debates autênticos, de onde pudesse surgir uma centelha que estremecesse a vida apostólica para as próximas décadas. Faltou essa centelha. A contribuição para um mundo que exige respostas audazes ficou muito limitada.
O Congresso foi um evento extremamente importante, mas todas as suas tarefas ficam para serem definidas.
O que significa hoje, em um mundo globalizado, a inserção apostólica nas periferias sociais e existenciais da humanidade? Como unimos a fé e a justiça com a luta em defesa das culturas e frente à ameaça predatória da indústria extrativa espalhada por todo o planeta?
Como entendemos a relação autêntica entre jesuítas e leigos comprometidos na missão do apostolado social?
É possível sonhar com comunidades de solidariedade apostolicamente comprometidas e que alimentem a fé e a identidade tanto de jesuítas como de leigos e leigas?
Como assumir o compromisso de integrar autenticamente as mulheres e a juventude em nossa missão apostólica que inclua estruturas de direção?
Poderemos impulsionar uma colaboração estrutural entre universidades e centros sociais para dar respostas mais eficazes à complexidade da missão nestes tempos de depredação ambiental e humana?
Perguntas e perguntas. Inquietações abertas. O apostolado social é chamado a se desprender desse enorme peso de suas estruturas e apontar a riqueza e a ousadia da cavalaria ligeira que a Companhia de Jesus tanto necessita, porque a perdeu em altas doses. Receio que este Congresso esteve muito à altura – muito baixa altura - do impulso da Congregação Geral 36, mas muito atrás da altura do Papa Francisco, e muito, mas muito atrás do que hoje diria e exigiria o Padre Pedro Arrupe.
Contudo, o mesmo Congresso deixou todos os insumos para que a altura apostólica se converta na centelha que traga para a Companhia e a Igreja o impulso profético e confessional que toda a humanidade nos exige. E também receio que com essas minhas dispersas e loucas avaliações, não acredito que um provincial volte a se animar a me conceder uma delegação futura para um novo evento, e ainda que faço isso com muita gratidão e carinho, por outro lado, receio ter causado algum mal-estar, ou um cenho franzido, de um ou outro dos abnegados organizadores do Congresso dos 50 anos do Secretariado de Justiça Social e Ecologia. E bem merecido.
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Ecos do Congresso do Secretariado de Justiça Social e Ecologia. Minhas impressões. Depoimento de Ismael Moreno - Instituto Humanitas Unisinos - IHU