28 Novembro 2016
"Enquanto detalhes sobre os arranjos fúnebres não são anunciados, a Cúria da Companhia de Jesus informou que uma missa especial será celebrada na sexta-feira, 2 de dezembro, na Igreja del Gesù em Roma".
O comentário é de Daniel Cosacchi, pós-doutorando e palestrante na área de estudos religiosos da Fairfield University, nos EUA, coeditor do livro “The Berrigan Letters: Personal Correspondence of Daniel and Philip Berrigan”, sem tradução ao português. James T. Keane contribuiu para o artigo a seguir, publicado por America, 26-11-2016. A tradução é de Isaque Gomes Correa.
Eis o artigo.
Peter-Hans Kolvenbach | Foto: Portal do Vaticano
O padre jesuíta Peter-Hans Kolvenbach, 29º Superior Geral da Companhia de Jesus, que guiou a ordem religiosa em um dos períodos mais tumultuados de sua história, morreu no dia 26-11-2016 em Beirute, no Líbano. Ele tinha 87 anos. Foi jesuíta por 68 anos e padre por 55. Atuou como Superior Geral da Companhia por quase um quarto de século; apenas quatro outros Superiores ficaram no cargo por mais tempo.
Em seus anos como Superior Geral e nos anos posteriores à sua renúncia em 2008, Kolvenbach ficou conhecido por sua simplicidade e moderação. É o que relatou Gerard O’Connell, correspondente da revista America no Vaticano, em uma recente visita feita ao sacerdote: “Ele foi um homem de poucas palavras, mas sempre um alguém gracioso e amável”. Esta reticência característica era, talvez, o maior contraste entre Kolvenbach e seu predecessor, o Pedro Arrupe, SJ. Os dois, entretanto, compartilhavam um amor pela ordem religiosa e pela Igreja universal. Mais do que isso: tinham um compromisso comum com a crença jesuíta no “serviço da fé e na promoção da justiça”.
Peter-Hans Kolvenbach nasceu em 30-11-1928 em Druten, Holanda, perto de Nijmegen. O seu pai era holandês de descendência alemã e sua mãe descendia de italianos. Conforme Kolvenbach disse em entrevista a Jean Lacouture para o livro “Jesuits: A Multibiography”: “Eu me sinto italiano num dia e alemão no outro”. Este conforto em culturas diferentes estendeu-se à vida eclesial, na medida em que Kolvenbach crescera no Rito Armênio e se sentia à vontade nas liturgias católicas orientais e ocidentais.
Aos 19 anos, entrou para a Companhia de Jesus em Mariendaal, nos Países Baixos. Como contou à América em 2007:
“Descobri uma pequena cartilha, que chamou a minha atenção porque continha não só palavras, mas conjuntos de linhas horizontais. Abri e li o princípio fundacional de Inácio. Em toda a agitação e decepção que a guerra havia produzido, a visão de Inácio veio como uma luz”.
Aos 30 anos, ainda no escolasticado Kolvenbach foi designado pela Companhia a ministrar no Líbano. Claro está que a experiência de viver numa terra devastada pela guerra, porém acolhedora, causou-lhe um profundo impacto:
“Quando, em outubro de 1958, chegamos de barco ao porto de Beirute, no Líbano, os combates ainda continuavam. Os 18 diferentes grupos religiosos tentavam dominar uns aos outros, fazendo alianças políticas e militares com a ajuda de países vizinhos. Ainda assim, o Líbano quis manter a mensagem de que povos diversos podem viver, trabalhar e praticar seus credos uns na presença dos outros. As boas-vindas dos libaneses foram inesquecíveis. Mesmo quando a divisão do país piorou, nunca se abandonou a esperança de que o Líbano se tornasse um símbolo de harmonia comunal para todo o Oriente Próximo”.
Kolvenbach ordenou-se padre em Beirute na Festa de São Pedro e São Paulo, em 29-06-1961. Obteve o doutorado em teologia sagrada na Universidade de São José de Beirute, instituição jesuíta, e estudou linguística na Sorbonne e na Universidade de Haia. Ele lecionou linguística na São José e foi vice-provincial da Vice-Província do Oriente Próximo dos Jesuítas, que servia à Companhia de Jesus no Egito, no Líbano e na Síria.
Pe. Pedro Arrupe | Foto: Província dos Jesuítas da França
Depois de quase dois anos como reitor do Instituto Oriental em Roma, Kolvenbach foi eleito pelos delegados da 33ª Congregação Geral (CG) para suceder ao Pe. Pedro Arrupe como líder da ordem e “Papa Negro” (assim chamado por causa da cor da batina que o Superior Geral jesuíta tradicionalmente vestia).
Talvez o legado mais duradouro do Pe. Kolvenbach seja a sua habilidade de aliviar as tensões que surgiram entre o papado e os jesuítas durante o generalato de seu antecessor. O Papa João Paulo II teve preocupações amplamente conhecidas quanto à direção dos jesuítas sob o comando do Pe. Arrupe. Ambos tentaram chegar a acordos no início de 1981, mas dois eventos interromperam esses diálogos. Em 13-05-1981, João Paulo II foi baleado na Praça de São Pedro. Apenas três meses depois, no dia 7 de agosto, Arrupe sofreu uma trombose cerebral debilitante que o impediu de continuar como Superior Geral.
O papa desconsiderou o pedido de Arrupe de nomear o seu vigário geral – o jesuíta americano Vincent O’Keefe – para ser o substituto. Em vez disso, o pontífice nomeou dois jesuítas para ocupar o cargo temporariamente: o padre (mais tarde cardeal) Paolo Dezza, e o padre (mais tarde arcebispo) Giuseppe Pittau. Somente após um período de dois anos é que foi permitida a realização da 33ª Congregação Geral para eleger um sucessor há muito aguardado pelo Pe. Arrupe.
Como disse à America o padre jesuíta Joseph M. McShane, presidente da Fordham University: “A maioria dos jesuítas (se não todos) diriam que a humildade, santidade, integridade e diplomacia esclarecida dele foram o que estabilizou a Companhia depois de um dos períodos mais difíceis da nossa história. Sem a sua serenidade e habilidade, teríamos ficado um tanto perdidos. Devemos a ele mais do que poderemos pagar”.
Em seus quase 25 anos no comando, Kolvenbach foi o pacificador por excelência entre o papado e a Companhia. Tendo entrado no contexto das suspeitas de João Paulo a respeito da ordem, o líder jesuíta holandês deixou clara desde o início a sua lealdade e a de seus confrades.
Numa carta endereçada a toda a Companhia de Jesus um dia depois de ser eleito Superior Geral, Kolvenbach afirmou:
“O Senhor deseja fazer uso de nossa Companhia para anunciar aos homens e às mulheres de hoje – com uma preferência pastoral pelos que sofrem injustiças neste mundo – a Boa Nova do Reino de um jeito que fale à cultura deles e à condição da vida. Ele nos quer neste caminho para servir à Sua Igreja e ao Vigário de Cristo, o Papa João Paulo II”.
De forma rápida e simples, Kolvenbach pôde certificar seus irmãos jesuítas e o papa quanto a esta sua fraternidade e lealdade simultâneas. Isso foi fundamental para a boa relação que ele desfrutou com João Paulo II e seu sucessor, o Papa Bento XVI.
Todavia, o mandato do Pe. Kolvenbach como Superior Geral não aconteceu sem suas polêmicas. Um exemplo notável foi o caso de um jesuíta belga, o padre Jacques Dupuis, que esteve sujeito a uma investigação feita pela Congregação para a Doutrina da Fé – CDF. O livro de 1997 publicado por Dupuis, intitulado “Rumo a uma teologia cristã do pluralismo religioso” (Paulinas), estava sendo analisado por sua ortodoxia na área do diálogo inter-religioso. Gerard O’Connell relembra “a maneira destemida” com que Kolvenbach defendeu Dupuis.
O’Connell escreve: “Kolvenbach desafiou a CDF para que mostrasse onde, no livro, estavam os erros atribuídos”. Depois de uma reunião, quando a CDF divulgou a “Notificação” final a respeito da obra de Dupuis, Kolvenbach publicou uma declaração de apoio público ao Pe. Dupuis para continuar com o seu diálogo inter-religioso.
Para os americanos, o caso do padre jesuíta Thomas Reese é digno de nota. Reese foi removido do cargo de editor-chefe da America a pedido da CDF. Hoje ele relatou que “sempre tive a sensação de que Kolvenbach fez tudo o que pôde para me defender”.
O presidente da Conferência Jesuíta dos Estados Unidos, Timothy P. Kesicki, SJ, refletiu sobre o legado do Kolvenbach na citada revista:
"A primeira vez que conheci o Padre Kolvenbach, ele estava no escolasticado em meados da década de 1980. Durante uma sessão de perguntas e respostas, um membro da província foi ao microfone e disse: “Padre Geral, eu tenho uma pergunta difícil para o senhor”. Kolvenbach respondeu: “Difícil para mim ou difícil para ti?” Ele tinha essa singular habilidade de ir ao cerne da questão com uma confiança e uma inteligência extraordinárias. Ele governou a Companhia por um quarto de século em um período crítico da nossa história. Suas palavras e o seu legado irão inspirar gerações vindouras”.
Pe. Adolfo Nicolás | Foto: Cepal
Aos alunos das escolas secundárias e universidades jesuítas, Kolvenbach talvez seja mais conhecido por levar adiante o modelo do Pe. Arrupe da “fé que faz justiça”. Para muitos deles, os seus discursos são leituras obrigatórias. Estas suas palavras proferidas em 2001 são frequentemente invocadas:
“Quando o coração é tocado pela experiência direta, a mente pode ser desafiada a mudar. O envolvimento pessoal com o sofrimento inocente, com a injustiça que os outros sofrem, é o catalisador da solidariedade, o que então dá lugar à investigação intelectual e à reflexão moral. (…) Os alunos deveriam aprender a perceber, pensar, julgar, escolher e agir pelos direitos dos outros, especialmente os desfavorecidos e oprimidos”.
Depois de sua renúncia como Superior Geral em janeiro de 2008, Kolvenbach praticamente desapareceu da vida pública, não concedendo entrevistas e quase nunca fazendo aparições públicas. Jamais procurou influenciar o trabalho de seu sucessor, o Pe. Adolfo Nicolás, ou falar publicamente sobre um ou outro tema. Em seus últimos anos, foi enviado novamente à Província do Oriente Próximo, onde servia como bibliotecário assistente em sua comunidade jesuíta em Beirute.
Enquanto detalhes sobre os arranjos fúnebres não são anunciados, a Cúria da Companhia de Jesus informou que uma missa especial será celebrada na sexta-feira, 2 de dezembro, na Igreja del Gesù em Roma.
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O legado espiritual de Peter-Hans Kolvenbach - Instituto Humanitas Unisinos - IHU