No 50º aniversário do Secretariado pela Justiça Social e a Ecologia da Companhia de Jesus, jesuítas do mundo inteiro reúnem-se em Roma, de 4 a 8 de novembro, para fazer memória e discernir como continuar o compromisso do apostolado social no futuro. "Por favor, abram o futuro, ou, para usar a expressão de um escritor atual, frequentem o futuro. Abram futuro, suscitem possibilidades, gerem alternativas, ajudem a pensar e atuar de um modo diverso. Cuidem de sua relação diária com o Cristo ressuscitado e glorioso, e sejam trabalhadores da caridade e semeadores de esperança", exortou o papa Francisco, na manhã de quinta-feira, 07-11, ao receber em audiência os 210 participantes do Congresso dos 50 anos. A tradução é de Wagner Fernandes de Azevedo.
"A desigualdade entre países e no interior dos próprios cresce sem que se encontre remédio. Com uma progressão eu diria geométrica", denuncia o papa.
Segundo o papa Francisco, "necessitamos de uma verdadeira 'revolução cultural' (ibid, 114), uma transformação de nosso olhar coletivo, de nossas atitudes, de nossos modos de nos perceber e de nos situar frente ao mundo".
Bom dia e sejam bem-vindos!
A Companhia de Jesus, sabemos todos, desde o princípio foi chamada ao serviço dos pobres, uma vocação que Santo Inácio incorporou à Fórmula de 1550. Os jesuítas se dedicariam “à defesa e propagação da fé e ao proveito das almas na vida e doutrina cristã”, assim como a “reconciliar os desacompanhados, socorrer misericordiosamente e servir aos que se encontram nos cárceres ou nos hospitais e a exercitar todas as demais obras de caridade” [1]. Aquilo não era uma declaração de intenções, mas sim um modo de vida que já haviam experimentado, que os preencheu de consolação, e se sentiram enviados pelo Senhor”.
Essa tradição inaciana chegou até nossos dias. O padre Arrupe teve a intenção de fortalecê-la. Na base de sua vocação se encontrava a experiência de contato com a dor humana. Anos mais tarde escreveria “Vi (a Deus) tão próximo dos que sofrem, dos que choram, dos que naufragam nessa vida de desamparo, que se incendiou em mim o desejo ardente de imitá-lo nesta voluntária proximidade aos descartados do mundo, que a sociedade despreza” [2].
Hoje usamos a palavra “aos descartados”, não? E falamos de cultura do descarte, essa grande maioria de pessoas deixadas no caminho. Para mim, esse texto me toca profundamente é a origem de onde vem. Da oração, não? Arrupe era um homem de oração, um homem que brigava com Deus todos os dias, e daí isso nasce forte. O padre Pedro sempre acreditou que o serviço da fé e a promoção da justiça não podiam se separar: estavam radicalmente unidos. Para ele, todos os ministérios da Companhia tinham que responder, ao mesmo tempo, ao desafio de anunciar a fé e de promover a justiça. O que até então havia sido uma encomenda para alguns jesuítas deveria se converter em uma preocupação de todos.
Papa Francisco durante o discurso aos jesuítas (Foto: Vatican Media)
Cada ano, a liturgia nos convida a contemplar a Deus na sinceridade de uma criança excluída, que vinha aos seus, porém foi rechaçada (cf. Jn 1, 11). Segundo Santo Inácio, uma ancila – ancila, uma pessoa, uma jovem que serve –, ajuda a Sagrada Família [3]. Junto a isso, Inácio nos exorta também a nos introduzirmos, “fazendo-me eu um pobrezinho e escravozito indigno que os observa, os contempla e os serve em suas necessidades, como se presente me achasse” [4]. Isso não é poesia, nem publicidade, isso Inácio sentia. E vivia.
Essa contemplação ativa de Deus, do Deus excluído, nos ajuda a descobrir a beleza de toda pessoa marginalizada. Nenhum serviço substitui a “valorizar o pobre em sua bondade própria, com sua forma de ser, com sua cultura, com seu modo de viver a fé” (Exortação Apostólica Evangelii Gaudium, 199).
Nos pobres, encontraram vocês um lugar privilegiado de encontro com Cristo. Esse é um precioso presente na vida do seguidor de Jesus: receber o dom de se encontrar com ele entre as vítimas e os empobrecidos.
O encontro com Cristo entre seus preferidos acrisola nossa fé. Assim ocorreu no caso da Companhia, cuja experiência com os últimos aprofundou e fortaleceu a fé. “Nossa fé se fez mais pascal, mais compassiva, mais terna, mais evangélica em sua simplicidade” [5], de modo especial, no serviço dos pobres.
Viveram vocês uma verdadeira transformação pessoal e corporativa na contemplação silenciosa da dor de seus irmãos. Uma transformação que é uma conversão, um regresso a olhar o rosto do crucificado, que nos convida a cada dia a permanecer junto a ele e a baixá-lo da cruz.
Não deixem de oferecer essa familiaridade com os mais vulneráveis. Nosso mundo quebrado e dividido precisa construir pontes para que o encontro humano nos permita, a cada um, descobrir nos últimos o belo rosto do irmão, em quem nos reconhecemos, e cuja presença, ainda sem palavras, clama, por suas necessidades, pelo nosso cuidado e nossa solidariedade.
Jesus não tinha “onde reclinar a cabeça” (Mt 8,20), entregue como estava a “proclamar a boa nova do Reino e a curar todo tipo de doenças” (Mt 4, 23). Hoje seu Espírito, vivo entre nós, nos move a segui-lo no serviço aos crucificados de nosso tempo.
Na atualidade abundam as situações de injustiça e de dor humana que todos bem conhecemos. “Talvez se possa falar de uma terceira guerra em “fragmentos”, com crimes, massacres, destruições” (Homilia, Redipuglia, 13-09-2014). Subsiste o tráfico de pessoas, abundam as expressões de xenofobia e a busca egoísta do interesse nacional, a desigualdade entre países e no interior dos próprios cresce sem que se encontre remédio. Com uma progressão eu diria geométrica.
De outra parte, “nunca maltratamos e ferimos a nossa casa comum como nos últimos dois séculos” (Enc. Laudato Si’, 53). Não surpreende que uma vez mais “os efeitos mais graves de todas as agressões ambientais recaem sobre as pessoas mais pobres” (ibid, 48).
Seguir Jesus nessas circunstâncias leva a um conjunto de tarefas. Começa pelo acompanhamento às vítimas, para contemplar nelas o rosto do nosso Senhor crucificado. Continua na atenção às necessidades humanas que surgem, muitas vezes inumeráveis e inabordáveis em seu conjunto. Hoje também é preciso refletir sobre a realidade do mundo, para desmascarar seus males, para descobrir as melhores respostas para gerar a criatividade apostólica e a profundidade que padre Nicolás tanto desejava para a Companhia.
Porém, nossa resposta não pode parar aqui. Necessitamos de uma verdadeira “revolução cultural” (ibid, 114), uma transformação de nosso olhar coletivo, de nossas atitudes, de nossos modos de nos perceber e de nos situar frente ao mundo. Finalmente, os males sociais com frequência se incrustam nas estruturas de uma sociedade, com um potencial de dissolução e de morte (cf. Exort. Apost. Evangelii gaudium, 59). Dali a importância do trabalho lento da transformação das estruturas, por meio da participação no diálogo público, ali onde se tomam as decisões que afetam a vida dos últimos (cf. Encontro com os movimentos populares na Bolívia, Santa Cruz de la Sierra, 09-07-2015).
Alguns de vocês e outros muitos jesuítas que os antecederam puseram em marcha obras de serviço aos mais pobres, obras de educação, de atenção aos refugiados, de defesa dos direitos humanos ou de serviços sociais em uma infinidade de campos. Continuem com esse empenho criativo, necessito sempre de renovação em uma sociedade de mudanças aceleradas. Ajudem a Igreja no discernimento que hoje também temos que fazer sobre nossos apostolados. Não deixem de colaborar em rede entre vocês e com outras organizações eclesiais e civis para ter uma palavra em defesa dos mais desfavorecidos neste mundo cada vez mais globalizado. Com essa globalização que é esférica, que anula as identidades culturais, as identidades religiosas, as identidades pessoais, tudo é igual. A verdadeira globalização deve ser poliédrica, nos unir, porém cada um conservando sua própria peculiaridade.
Na dor de nossos irmãos e de nossa casa comum ameaçada é necessário contemplar o mistério do crucificado para ser capazes de dar a vida até o final, como fizeram tantos companheiros jesuítas desde o ano de 1975. Celebramos este ano o 30º aniversário do martírio dos jesuítas da Universidade Centro-americana de El Salvador, que tanta dor causou ao padre Kolvenbach, e que o fez pedir ajuda de jesuítas de toda a Companhia. Muitos responderam generosamente. A vida e a morte dos mártires são um alento ao nosso serviço aos últimos.
Papa Francisco cumprimenta o pe. Arturo Sosa (Foto: Vatican Media)
Nosso mundo está necessitado de transformações que protejam a vida ameaçada e defendam os mais fracos. Buscamos mudanças e muitas vezes não sabemos quais devem ser, ou não nos sentimos capazes de abordá-las, nos superam.
Nas fronteiras da exclusão corremos o risco de desesperar, se atendermos unicamente à lógica humana. O que impressiona é que muitas vezes as vítimas deste mundo não se deixam levar pela tentação de desistir, mas confiam e abrigam a esperança.
Todo nós somos testemunhas de que “os mais humildes, os explorados, os pobres e excluídos, podem e fazem muito... quando os pobres se organizam, se convertem em autênticos poetas sociais: criadores de trabalho, construtores de casas, produtores de alimentos, sobretudo para os descartados pelo mercado mundial” (Encontro com os movimentos populares na Bolívia, Santa Cruz de la Sierra, 09-07-2015).
O apostolado social não é só para resolver problemas, mas também para promover processos e alentar esperanças. Processos que ajudem as pessoas e as comunidades a crescer, que as levem a ser conscientes de seus direitos, a colocar suas capacidades e a criar seu próprio futuro.
Que vocês trabalhem pela “verdadeira esperança cristã, que procura o Reino escatológico, (e que) gera sempre história” (Evangelii Gaudium, 181). Compartilhem sua esperança onde se encontrem, para alentar, consolar, confortar e reanimar. Por favor, abram o futuro, ou, para usar a expressão de um escritor atual, frequentem o futuro. Abram futuro, suscitem possibilidades, gerem alternativas, ajudem a pensar e atuar de um modo diverso. Cuidem de sua relação diária com o Cristo ressuscitado e glorioso, e sejam trabalhadores da caridade e semeadores de esperança. Caminhem cantando e chorando, que as lutas e preocupações pela vida dos últimos e pela criação ameaçada não lhes tirem a alegria da esperança (cf. Enc. Laudato si’, 244).
Quero terminar com uma imagem – os padres nas paróquias repartem selos para que as pessoas levem uma imagem para casa, uma imagem de nossa família. O testamento de Arrupe, lá na Tailândia, no campo de refugiados, com os descartados, com tudo o que esse homem tinha de simpatia, de padecer com esse povo, com esses jesuítas que estavam abrindo brecha naquele momento em todo esse apostolado, lhes pede uma coisa: não deixem a oração. Foi seu testamento. Deixou a Tailândia nesse dia e no avião teve o derrame. Que esse selo, essa imagem, os acompanhe sempre. Obrigado.
[1] Fórmula do Instituto (21 de julho de 1550), aprovada e confirmada pelo papa Júlio III.
[2] Este Japón increíble. Memorias del P. Arrupe, 4ª ed. Mensajero, Bilbao, 1991, p. 19.
[3] Cf. Exercícios Espirituais, 111, 114.
[4] Ibid.
[5] Congregação Geral 34 da Companhia de Jesus, 1995, d. 2, n. 1.