24 Junho 2014
No ano do bicentenário da Restauração da Companhia de Jesus, a Província Jesuíta da Inglaterra destaca no seu calendário de 2014, o Pe. Pedro Arrupe, "um querido Superior Geral da Companhia de Jesus e fundador do Serviço Jesuíta aos Refugiados".
Pe. Michael Campbell-Johnston, ex-provincial da Província da Inglaterra, por anos trabalhou ao lado do Pe. Arrupe, fornece uma reflexão pessoal sobre o “fundador da moderna Companhia de Jesus”. O depoimento foi publicado por Jesuit Restoration, 05-02-2014. A tradução é de Isaque Gomes Correa.
Eis o artigo.
Pedro Arrupe provavelmente teve mais influência na Igreja Católica no século XX do que qualquer outro religioso – incluindo os papas. O Serviço Jesuíta aos Refugiados foi um de seus grandes legados, mas eu não acho que tenha sido o maior deles. Foi a última coisa importante que ele fez, mas eu diria que o seu maior legado foi a convocação da 32ª Congregação Geral (CG 32), o organismo mais importante que os jesuítas podem constituir, evento que deu uma nova identidade e um novo propósito bem como redefiniu o papel dos jesuítas na idade moderna. Algumas pessoas consideram-no, e com razão, o “fundador da moderna Companhia de Jesus”.
Não se pode subestimar a importância da CG 32, que Arrupe convocou em 1974 e que iria começar no ano seguinte. Este evento colocou os jesuítas na idade moderna. Até então, assim como muitas outras ordens religiosas, a Companhia de Jesus não havia assumido por completo o Concílio Vaticano II. Arrupe percebeu que a sua principal tarefa era ajudar os jesuítas de todo o mundo a se renovarem segundo o Concílio e foi isso o que ele se propôs a fazer. Nesse sentido, teve uma enorme influência em quase todas as demais ordens religiosas também. Durante cinco períodos de três anos se elegeu presidente das Congregações Religiosas, de Roma, e muitos dos superiores gerais destas congregações costumavam ir visitá-lo na Cúria. A renovação promovida nos jesuítas influenciou tantas outras ordens que, até então, estavam sem contato com o mundo exterior.
O Pe. Arrupe conduziu a Companhia num novo caminho que a colocou em contato muito mais próximo com os problemas e as necessidades do mundo de hoje. A sua relevância advém do fato de que estas necessidades não diminuíram, e sim aumentaram desde a sua morte. A redefinição da Companhia foi expressa especialmente no famoso Decreto 4 da CG 32, que afirma: “A Missão da Companhia de Jesus, hoje, é o serviço da fé, do qual a promoção da justiça constitui uma exigência absoluta”. Este foi um novo desafio que até mesmo levou a uma nova descrição do que é ser um jesuíta: “E que significa ser companheiro de Jesus nos dias de hoje? É alistar-se, sob o estandarte da Cruz, na luta crucial do nosso tempo: no combate pela fé e no combate pela justiça, que neles se inclui”.
Vincent O’Keefe, um dos colaboradores mais próximos do Pe. Arrupe que se tornou o vigário geral da Companhia depois do acidente vascular cerebral, afirma que “em 1974 Pedro Arrupe chegou a uma forte convicção que nunca o deixaria: a de que a fé religiosa, para ser verdadeiramente evangélica, tinha que ser forte na promoção da justiça e na oposição à injustiça, à opressão e aos males sociais tais como a pobreza, fome e todas as formas de discriminação racial”.
No livro “Arrupe: Witness of the 20th century, prophet of the 21st” [Arrupe: Testemunho do século XX, profeta do século XXI], Pedro Miguel Lamet escreve que a “importância da decisão tomada em 1975, em Roma, tornar-se-ia manifesta anos mais tarde em muitas ações e opções, no martírio de mais de 90 jesuítas mortos nos países de terceiro mundo, nas atividades dos seus membros ao lado dos refugiados, dos pobres e pessoas marginalizadas da sociedade, na defesa resultante de seus direitos. Por causa de suas consequências eclesiásticas e sociais”, conlui Lamet, “esta Congregação Geral 32 foi, talvez, o passo mais importante e decisivo entre aqueles tomados durante toda a vida do Pe. Arrupe”.
A primeira coleção dos escritos do Pe. Arrupe – intitulada “A Planet to Heal” [Um planeta para curar] – foi compilada por John Harriott e publicada em 1977. Nela, Harriot descreve Arrupe como “provavelmente um dos Superiores Gerais mais genuinamente amados e admirados na história jesuíta”. Escreve sobre a sua forma “direta, sincera e despretensiosa” de ser bem como comentou que “poucas pessoas podem deixar [a presença do Pe. Arrupe] sem se sentir um pouco mais leve”. Durante os 23 anos em que conheci e trabalhei com o Pe. Arrupe, descobri que ele fazia as pessoas se sentirem entusiasmadas. Ele era uma “pessoa do povo” e qualquer um que lidava com ele ficava impressionado não só com o homem que ele era, mas também com o seu espírito.
Arrupe era um homem muito amigo, muito ativo e muito inteligente. Com certeza foi um homem de ideias. O seu sucessor, o superior geral Peter-Hans Kolvenbach, afirmou que ele estava “entre os homens que não precisavam de palavras para se comunicar; a sua simples presença proclamava a mensagem de um homem enviado pelo Senhor para ajudar a Companhia a se renovar no espírito do Concílio Vaticano (...). Ele quis que a Companhia fosse transformada num instrumento apostólico pelo espírito de renovação, com todas as provações e erros, críticas e mal-entendidos que esta renovação implicava”.
Em 1938, depois que ele tinha sido ordenado, enviaram Arrupe para o Japão, experiência que teve uma influência profunda em sua vida. Enquanto esteve lá, tentou entender não apenas a língua como também a cultura do povo com o qual trabalhava: a sua ênfase na inculturação foi uma de suas principais contribuições para a Companhia. Ele reconheceu a importância de os missionários aprenderem não apenas a língua, mas as culturas e as formas de pensamento das pessoas com as quais trabalhavam como missionários. E ele mesmo deu um exemplo muito bom disso. Ele “se tornou japonês”.
Ele igualmente foi um homem de oração. Um homem santo. Foi um homem de profunda oração e isso ficava claro quando se estava conversando com ele. Lembro quando ele estava falando sobre o retiro de que recentemente tinha participado antes de ser nomeado Superior Geral em 1965, e eu fiquei muito impressionado na época. Ele deixou bastante claro como, em seu retiro, tinha se esforçado para ouvir a voz de Deus e como iria seguir isso em sua vida para fazer um bom trabalho como Superior. Ele era de fato um homem de profunda oração e isso teve uma enorme influência na forma como fazia as coisas e como aceitava a tarefa de ser líder da Companhia.
Eu estava na Cúria, em Roma, na época dos refugiados vietnamitas. Os assessores do Superior Geral lhe disseram: “Precisamos fazer algo". E Arrupe concordou. Enquanto discutiam sobre um barco para os vietnamitas, a reação direta do Arrupe foi: “Se Santo Inácio estivesse vivo hoje, o que ele faria?” Foi quando fui convocado. Ele me deu a tarefa de escrever uma carta para toda a Companhia de Jesus a qual ele assinou, com praticamente nenhuma alteração. Com ela estabeleceu-se o Serviço Jesuíta aos Refugiados – SJR. Então, foi ele que me deu a tarefa e eu escrevi a carta. Esta teve um efeito importante na Companhia: os provinciais responderam de uma maneira muito positiva à carta, oferecendo homens, oferecendo-se para receberem refugiados, fazendo todo tipo de esforços. E, depois, evidentemente, a carta teve um impacto mundial, com muitas outras congregações religiosas se inspirando no Serviço Jesuíta aos Refugiados, cujo trabalho continua até hoje e cada vez cresce mais. Arrupe deixou-se profundamente se influenciar por Santo Inácio e sua espiritualidade. Ele sabia os escritos de Santo Inácio de cor, conhecia como a palma de sua mão. E isso influenciava tudo o que dizia e fazia.
Pe. Arrupe passou 10 anos em nossa pequena enfermaria em Roma. Antes de perder completamente o controle e não mais conseguir se expressar, a muitas pessoas contou que tinha aceitado a situação em que se encontrava e que estava preparado para a morte: era isso o que Deus queria que ele fizesse, e ele foi um exemplo extraordinário.
Foi um privilégio para mim presidir aquela que veio a ser a última reunião do Pe. Arrupe como Superior Geral, ocorrida em Bangkok na festa da Transfiguração, em 1981. No final, ele fez uma importante fala de improviso, que felizmente foi gravada por um jesuíta indiano. Só escutando a fita no dia seguinte após o seu acidente vascular no aeroporto de Roma é que percebemos o significado de sua insistência na necessidade de rezar, o que ele declarou ser o seu “canto do cisne para a Companhia”. Lembro que ele usou uma expressão espanhola “canción de cisne”, que tivemos de traduzir para ele. Nos perguntamos se ele havia tido uma premonição do que iria acontecer no dia seguinte.
Na Congregação Geral 33 – a última em que ele falou –, Arrupe descreveu a sua própria experiência na Cúria de quando ele ainda estava doente. Fez esta fala marcante, escrita em espanhol e lida por ele. Trata-se de um documento bastante comovente que veio diretamente do Pe. Arrupe. Aí ele diz: “Gostaria de me expressar para vocês em melhores condições”, e em seguida falou da experiência de sua doença. Ele com certeza aceitou a sua enfermidade como a vontade de Deus para ele e a Companhia.
Padre Arrupe passou 10 anos na enfermaria da Cúria, morrendo lentamente. No começo, não sabíamos o quão grave era a sua enfermidade e até mesmo esperávamos por sua recuperação. Eu trabalhei como tradutor intérprete para ele nos encontros, incluindo um com Son Sann, ex-primeiro-ministro do Camboja. Este tinha vindo para agradecer pelo trabalho dos jesuítas nos acampamentos de refugiados ao longo da fronteira tailandesa. A autoridade falava em francês e Arrupe em espanhol, ao que eu traduzia. Mas logo se tornou claro que suas palavras não faziam o menor sentido e eu precisei inventar com base no que pensava que ele gostaria de dizer, na esperança de não exagerar nas ideias!
Uma coisa que o Pe. Arrupe apreciava nos primeiros dias de sua enfermidade era visitar os refugiados da Eritreia que estávamos tentando ajudar no Centro Astalli, do Serviço Jesuíta aos Refugiados em Roma, que fica sob os antigos aposentos de Santo Inácio. Eu o levei até lá várias vezes bem como a um acampamento que montamos numa das favelas da cidade, sempre acompanhados por seu fiel enfermeiro.
O Pe. Arrupe teve um efeito enorme em minha vida pessoal. Foi ele quem me enviou para a América Latina, foi ele quem me enviou para a Guiana. Depois; foi ele quem me chamou para ir a Roma, onde trabalhamos lado a lado. O meu sentimento primeiro de quando penso nele é o de gratidão. Não posso agradecê-lo o suficiente pelo grande efeito que ele teve no que eu fiz como jesuíta e pela grande influência que ele, como Superior Geral, exerceu nos jesuítas. Ele foi, de fato, o fundador da moderna Companhia de Jesus!
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Pedro Arrupe. Fundador da moderna Companhia de Jesus. Um depoimento - Instituto Humanitas Unisinos - IHU