28 Novembro 2016
No dia 24 de outubro de 2016, o Papa Francisco se encontrou com os jesuítas reunidos na sua 36ª Congregação Geral. Alguns minutos antes das 9h, ele chegou a bordo de um carro popular. Depois de cumprimentar o Padre Geral e os outros que estavam com ele a esperá-lo, ele se dirigiu à Aula da Congregação, onde se recolheu em oração com todos os delegados. Em seguida, fez um discurso. Depois de uma pausa, permaneceu para um diálogo aberto e cordial com os delegados, que lhe fizeram espontaneamente algumas perguntas. O papa não quis que elas fossem previamente selecionadas, nem quis conhecê-las antes. Assim, deu origem a um encontro extremamente familiar, que durou cerca de uma hora e meia. No fim, Francisco cumprimentou um por um a todos os presentes.
Aqui, a seguir, são recolhidas as perguntas e as respostas. Na Aula, por praticidade, as perguntas foram feitas em grupos de três. O texto a seguir reproduz as respostas do pontífice na sua integralidade e, por comodidade de leitura, separa as perguntas, que foram reproduzidas de forma essencial. O texto mantém o tom e o significado da conversa oral.
O diálogo foi publicado na revista La Civiltà Cattolica, n. 3.995, 10-12-2016. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Santo Padre, o senhor é um exemplo vivo de audácia profética. Como faz para expressá-la com tanto eficácia? Como nós também podemos fazer isso?
A coragem não está somente em fazer barulho, mas também em saber fazê-lo e saber quando fazê-lo e como fazê-lo. E, de fato, antes de qualquer coisa, deve-se discernir se se deve fazer barulho ou não. A coragem é constitutiva de qualquer ação apostólica. E, hoje mais do que nunca, é necessário ter coragem e audácia profética. É preciso uma parrésia [1] atualizada, a audácia profética de não ter medo. É singular que essa foi a primeira coisa que São João Paulo II disse quando foi eleito papa: “Não tenham medo”. Ele lembrou todos os problemas dos países do Leste, e a audácia levou-o a enfrentar todos eles.
Que audácia profética nos é pedida hoje? Sobre isso, é preciso fazer discernimento. Isto é, onde se deve canalizar essa audácia profética? É uma atitude que nasce do magis [2]. E o magis é parrésia! O magis se fundamenta no Deus sempre Maior. E, então, olhando para esse Deus sempre Maior, o discernimento se aprofunda em busca dos lugares onde a audácia deve ser canalizada. Eu acho que este é o trabalho de vocês nesta Congregação: discernir “aonde” direcionar precisamente o magis, a audácia profética, a parrésia.
Às vezes, a audácia profética se desposa com a diplomacia, com uma certa obra de convicção e, ao mesmo tempo, também com sinais fortes. Por exemplo, a audácia profética é chamada para atacar a corrupção, muito difundida em alguns países. Uma corrupção para a qual, por exemplo, quando se esgotam os períodos constitucionais de mandato, logo se tenta reformar a Constituição, para ficar ainda. Eu acho que aqui a Companhia, no seu trabalho de ensino e de sensibilização social, deve fazer um bom trabalho audaz, para convencer que um país não pode crescer se não forem respeitados os fundamentos legais que esse mesmo país tinha assumido para a própria governabilidade futura.
Padre, o modo pelo qual os colonizadores trataram os povos indígenas foi uma questão séria. A apropriação das terras por parte dos colonizadores foi um fato grave e ainda hoje faz sentir as suas repercussões. O que o senhor pensa a respeito?
Em primeiro lugar, é preciso dizer que, hoje, temos mais consciência do que significa a riqueza dos povos indígenas, justamente na época em que, sob o aspecto político quanto sob o aspecto cultural, quer-se cada vez mais anulá-los por meio da globalização, concebida como uma “esfera”, ou seja, uma globalização em que tudo é uniformizado. Então, hoje, a nossa audácia profética, a nossa consciência deve se orientar para o lado da inculturação. E a nossa figura da globalização não deve ser a esfera, mas sim o poliedro. Eu gosto da forma geométrica do poliedro, porque é um, mas tem faces diferentes. Pois bem, a unidade se faz conservando as identidades dos povos, das pessoas, das culturas. Eis que riqueza hoje devemos dar ao processo de globalização, que, caso contrário, é uniformizante e destrutivo.
No processo de globalização uniformizante e destrutivo, insere-se a destruição das culturas indígenas, que, ao contrário, devem ser recuperadas. E é preciso recuperá-las com a hermenêutica correta, que nos facilita na tarefa. Essa hermenêutica não é a mesma que havia na época colonial. A hermenêutica daquela época consistia em buscar a conversão dos povos, ampliar a Igreja... e, portanto, as independências indígenas eram anuladas. Era uma hermenêutica de tipo centralista, em que o império dominador, de algum modo, impunha a sua fé e a sua cultura. É compreensível que, naquela época, se pensasse assim, mas hoje é absolutamente necessária uma hermenêutica radicalmente diferente. Devemos interpretar as coisas de outro modo, isto é, valorizando cada povo, a sua cultura, a sua língua. Deve nos ajudar nisso o processo de inculturação, que foi assumindo importância cada vez maior a partir do Concílio Vaticano II.
De todos os modos, quero fazer referência a tentativas de inculturação que existiram nos primeiros tempos das missões. Tentativas que já nascem de uma experiência como a de Paulo com os “gentios”. O Espírito Santo os havia inspirado claramente que o Evangelho devia ser inculturado entre os povos gentios. A mesma coisa se repete na época da expansão missionária. Pensemos, por exemplo, na experiência de Matteo Ricci e de Roberto de Nobili [3]. Eles foram pioneiros, mas uma concepção hegemônica do centralismo romano freou essa experiência, a interrompeu. Impediu um diálogo em que as culturas fossem respeitadas. E isso aconteceu porque, por exemplo, alguns costumes sociais eram interpretados com uma hermenêutica religiosa. Até se confundiam o respeito pelos mortos com a idolatria. Aqui, as hermenêuticas desempenham um papel central. Neste momento, eu acho que é importante – com a consciência mais plena que temos hoje em relação aos povos indígenas – apoiar a expressão, a cultura de cada um deles e a própria evangelização, que também afeta a liturgia e chega até a expressão do culto. E a Congregação para o Culto Divino a aceita.
Encerro com uma recordação que, em vez disso, diz respeito à moral. Quando eu era estudante de teologia, pediram-me para ser o bibliotecário. Resenhando um texto mexicano, mais ou menos do século XVIII, sobre a moral, organizado com perguntas e respostas, me deparei com uma pergunta: “Se é pecado mortal a união sexual entre o espanhol e a indígena”. A resposta do moralista me fez rir: “A matéria é grave, portanto é pecado grave segundo a matéria, mas, como a consequência desse ato seria outro cristão para engrandecer o reino de Deus, não é tão grave quanto se fosse na Europa”.
No seu discurso, o senhor nos propôs claramente uma moral que se fundamenta no discernimento. Como nos sugere para proceder no campo moral em relação a essa dinâmica de discernimento das situações morais? Parece-me que não é possível nos deter em uma interpretação de aplicação subsuntiva da norma que se limita a ver as situações particulares como casos da norma geral…
O discernimento, a capacidade de discernir, é o elemento-chave. E estou notando justamente a carência do discernimento na formação dos sacerdotes. De fato, corremos o risco de nos habituarmos com o “branco ou preto” e com aquilo que é legal. Estamos bastante fechados, em princípio, ao discernimento. Uma coisa é clara: hoje, em uma certa quantidade de seminários, voltou a se instaurar uma rigidez que não está perto de um discernimento das situações. E é uma coisa perigosa, porque pode nos levar a uma concepção da moral que tem um sentido casuístico. Embora com formulações diferentes, estaria sempre nessa mesma linha. Isso me dá muito medo. Eu já disse isso em uma reunião com os jesuítas em Cracóvia, durante a Jornada Mundial da Juventude. Lá, os jesuítas me perguntaram o que a Companhia podia fazer, e eu respondi que uma tarefa importante dela é a de formar os seminaristas e os sacerdotes ao discernimento.
Eu e os da minha geração – talvez não os mais jovens, mas a minha geração e algumas das posteriores – fomos educados numa escolástica decadente. Estudávamos com um manual a teologia e também a filosofia. Era uma escolástica decadente. Por exemplo, para explicar o “contínuo metafísico” - eu rio toda vez que me lembro disso –, nos ensinavam a teoria dos puncta inflata [4]. Quando a grande escolástica começou a perder espaço, sobreveio essa escolástica decadente com que ao menos a minha geração e outras estudaram.
Foi essa escolástica decadente que provocou a atitude casuística. E é curioso: para ensinar a matéria “Sacramento da penitência”, na faculdade de teologia, geralmente – mas não por toda a parte – havia professores de moral sacramental. Todo o âmbito moral era restrito ao “se pode”, “não se pode”, “até aqui sim e até aqui não”. Em um exame ad audiendas [5], um companheiro meu, ao qual foi feita uma pergunta bastante intrincada, disse com muita simplicidade: “Mas, padre, por favor, essas coisas não acontecem na realidade!”. E o examinador respondeu: “Mas estão nos livros!”.
Era uma moral muito estranha ao discernimento. Naquela época, havia el cuco [6], o fantasma da moral da situação... Eu acredito que Bernard Häring [7] foi o primeiro que começou a buscar uma nova maneira para fazer reflorescer a teologia moral. Obviamente, nos nossos dias, a teologia moral fez muitos progressos nas suas reflexões e na sua maturidade, já não é mais uma “casuística”.
No campo moral, é preciso avançar sem cair no situacionismo; mas, por outro lado, deve ser redespertada aquela grande riqueza contida na dimensão do discernimento; e isso é próprio da grande escolástica. Notemos uma coisa: São Tomás e São Boaventura afirmam que o princípio geral vale para todos, mas – eles dizem isto explicitamente –, na medida em que se desce aos detalhes, a questão se diversifica e assume nuances sem que o princípio deva mudar. Esse método escolástico tem a sua validade. É o método moral que o Catecismo da Igreja Católica usou. E é o método que se utilizou na última exortação apostólica, Amoris laetitia, depois do discernimento feito por toda a Igreja através dos dois Sínodos. A moral usada na Amoris laetitia é tomista, mas a do grande São Tomás, não a do autor dos puncta inflata.
É evidente que, no campo moral, é preciso proceder com rigor científico e com amor à Igreja e discernimento. Há certos pontos da moral sobre os quais apenas na oração é possível ter a luz suficiente para conseguir proceder refletindo teologicamente. E, quanto a isso, permito-me repeti-lo, deve-se fazer “teologia de joelhos”. Não se pode fazer teologia sem oração. É um ponto-chave e é preciso fazer assim.
Em torno da Companhia, circulam muitas lendas: positivas, de quem nos quer bem, e uma lenda um pouco obscura de que não nos quer bem. Para o senhor, que nos quer bem e nos conhece bem, dirijo esta pergunta: a que coisas o senhor gostaria que prestássemos atenção?
É um pouco difícil para mim responder, porque é preciso ver de onde vêm as críticas. É difícil porque, na minha situação e no ambiente em que eu me movo, as críticas à Companhia, predominantemente, têm um sabor de tipo restauracionista. Isto é, são críticas que sonham com uma restauração, a de uma Companhia que talvez uma vez atraísse, porque aqueles eram os seus tempos, mas que não é desejável nos nossos dias, porque o tempo de Deus para a Companhia hoje não é mais aquele. Por trás das críticas, existe esse tipo de raciocínio. Mas a Companhia, a esse respeito, deve ser fiel ao que o Espírito lhe diz.
Quanto às críticas, no entanto, depende também de quem as faz. Ou seja, é preciso discernir de onde vêm. Eu acho que, às vezes, até mesmo o pior dos mal-intencionados pode fazer uma crítica que me ajuda. É preciso escutá-las todas e discerni-las. E não devemos fechar a porta a nenhuma crítica, porque corremos o risco de nos acostumarmos a fechar portas. E isso não é bom. Depois de um discernimento, pode-se dizer: “Essa crítica não tem nenhum fundamento”, e descartá-la. Mas devemos submeter toda crítica que ouvimos a um discernimento, eu diria, cotidiano, doméstico, mas sempre com boa vontade, com abertura de coração e diante do Senhor.
Vivemos em um mundo caracterizado pelas polarizações políticas e religiosas. O senhor, de fato, viveu experiências de sinal diferente na sua vida, como provincial e como arcebispo de Buenos Aires. O que nos sugere, a partir da sua experiência, para enfrentar essas situações de polarização, especialmente quando elas têm irmãos nossos envolvidos?
Eu acredito que a política em geral, a grande política, está cada vez mais degradada na pequena política. Não somente na política partidária de cada país, mas mas políticas setoriais dentro de um mesmo continente. Sobre esse tema específico, eu quis responder – porque me tinha sido perguntado – com os três discursos sobre a Europa, os dois de Estrasburgo e o do Prêmio “Carlos Magno”. Os bispos franceses acabaram de publicar uma declaração sobre a política que retoma ou segue uma de cerca de 15 ou 20 anos atrás, Réhabiliter la politique, que era muito importante. Essa declaração fez história: deu força à política, à política como trabalho artesanal para construir a unidade dos povos e a unidade de um povo em todas as diversidades que existem em seu interior. Em geral, a opinião de que eu ouço é que os políticos caíram baixo. Faltam aqueles grandes políticos que eram capazes de se colocar a sério em jogo pelos seus ideais e não temiam nem o diálogo nem a luta, mas iam em frente, com inteligência e com o carisma próprio da política. A política é uma das formas mais altas da caridade. A grande política. E sobre isso eu acredito que as polarizações não ajudam: ao contrário, o que ajuda, na política, é o diálogo.
Qual é a sua experiência com os irmãos na Companhia, no que diz respeito ao seu papel e a como eles podem atrair vocações de irmãos para a Companhia?
A minha experiência com os irmãos sempre foi muito positiva. Os irmãos com os quais me coube viver, nos meus tempos de estudante, eram homens sábios, muito sábios. Tinham uma sabedoria diferente daquela dos escolásticos ou dos sacerdotes. No entanto, mesmo irmãos que estudaram muito e que têm postos de direção nas instituições têm um “não sei o quê” de diferente dos sacerdotes. E eu acho que isso deve ser conservado. Aquela sabedoria, aquela algo de sapiencial que vem do fato de ser irmão.
Mais ainda, eu, nos irmãos mais velhos que conheci, ficava impressionado com o faro que tinham, quando diziam, por exemplo: “Fique de olho naquele padre. Parece que ele precisa de uma ajuda especial...”. Os irmãos que eu conheci muitas vezes tinham uma grandíssima discrição. E ajudavam! O irmão se dava conta antes que os outros companheiros de comunidade do que acontecia. Eu não sei como expressar isso, eu acho que há uma graça específica. É preciso buscar qual é a vontade de Deus sobre o irmão neste momento e é preciso buscar como expressar isso.
Eu gostaria que o senhor nos dissesse quando vai se realizar a profecia de Isaías: “Transformarão as suas espadas em arados”... No meu continente, a África, já temos meios capazes de matar dez vezes cada um de nós.
Trabalhar pela paz é urgente. Eu disse, há mais de um ano e meio, que nos encontramos na terceira guerra mundial, em pedaços. Agora, os pedaços vão se reunindo cada vez mais. Estamos em guerra. Não se deve ser ingênuo. O mundo está em guerra, e quem paga o preço são alguns países. Pensemos no Oriente Médio, na África: lá, há uma situação de guerra contínua. Guerras que derivam de toda uma história de colonização e de exploração. É claro, há países que possuem a independência, mas às vezes o país que lhes deu a independência reservou o subsolo para si. A África continua sendo um alvo da exploração pelas riquezas que possui. Até mesmo por parte de países que, até tempos atrás, nem pensavam nesse continente. A África sempre é olhada na ótica da exploração. E, claramente, isso provoca guerras.
Além disso, em alguns países, há o problema da ideologização, que provoca graves fraturas. Acredito que trabalhar pela paz nessas circunstâncias, além de ser uma das bem-aventuranças, é prioritário. Quando virá a paz? Eu não sei se ela vai vir antes da vinda do Filho do homem, mas eu sei, em compensação, que devemos trabalhar o máximo possível pela paz, seja através da política, seja através da convivência. É possível. É possível. Com as atitudes cristãs que o Senhor nos indica no Evangelho, pode-se fazer muito, e se faz muito, e se vai em frente. Às vezes, pagamos um preço altíssimo, em primeira pessoa. Pois bem, vai-se em frente assim mesmo. O martírio faz parte da nossa vocação.
É possível se salvar sozinho? Que relação existe entre salvação comunitária e salvação pessoal?
Ninguém se salva sozinho. Acredito que esse princípio deve ficar muito claro: a salvação é para o povo de Deus Ninguém se salva sozinho. Quem pretende se salvar sozinho, através do próprio percurso de realização, vai acabar naquele adjetivo que Jesus usa tantas vezes: hipócrita. Acaba na hipocrisia. Salvar-se sozinho, pretender se salvar sozinho, com atitude elitista, é uma hipocrisia. O Senhor veio para salvar a todos.
É bom estudar teologia em um contexto de vida vivida real?
O meu conselho é que tudo aquilo que os jovens estudam e experimentam no seu contato nos diversos contextos de vida também seja submetido a um discernimento pessoal e comunitário e que seja levado à oração. Deve haver estudos acadêmicos, contato com realidades não apenas periféricas, mas também limítrofes na periferia, oração e discernimento pessoal e comunitário. Se uma comunidade de estudantes faz tudo isso, eu fico tranquilo. Quando falta alguma dessas coisas, eu começo a me preocupar. Se falta o estudo, nesse caso é possível que se digam bobagens ou que se idealizem situações de modo muito simplista. Se falta o contexto real e objetivo, acompanhado por quem conhece o ambiente e ajuda, podem ocorrer idealismos tolos. Se faltam oração e discernimento, sem dúvida poderemos ser ótimos sociólogos ou cientistas políticos, mas vamos ficar sem a audácia evangélica e a cruz evangélica que devemos portar, como eu disse no início.
Depois da 35ª Congregação Geral, a Companhia percorreu um caminho na compreensão dos desafios ambientais. Acolhemos com alegria a encíclica Laudato si’. Sentimos que o papa nos abriu portas para o diálogo com as instituições. O que podemos fazer para continuar nos sentindo envolvidos nesse tema?
A Laudato si’ é uma encíclica na qual muitos trabalharam, e tinha sido pedido que os cientistas que nela trabalharam dissessem coisas bem fundamentadas e não simples hipóteses. Muitas pessoas trabalharam nela. O meu trabalho, com efeito, foi o de dar as orientações, fazer esta ou aquela correção e, depois, elaborar a redação conclusiva: isso sim, com o meu estilo e retomando algumas coisas. E acredito que é preciso continuar trabalhando, através de movimentos, acadêmica e também politicamente. De fato, é evidente que o mundo está sofrendo, não só pelo aquecimento global, mas também pelo mau uso das coisas e porque a natureza é maltratada...
É preciso ter em mente, na interpretação da Laudato si’, que ela não é uma “encíclica verde”. É uma encíclica social. Parte da realidade deste momento, que é ecológica, mas é uma encíclica social. É evidente que quem sofre as consequências disso são os mais pobres, aqueles que são descartados. É uma encíclica que enfrenta essa cultura do descarte das pessoas. É preciso trabalhar muito sobre a parte social da encíclica, porque os teólogos que nela trabalharam se preocuparam muito em ver que repercussão social têm fatos ecológicos. E isso é de grande ajuda: ela deve ser vista como uma encíclica social.
Papa Francisco, o senhor deseja uma Companhia pobre para os pobres. Que conselho nos dá para caminhar nessa direção?
Acredito que, sobre esse ponto da pobreza, Santo Inácio nos superou muito. Quando lemos como ele concebia a pobreza, e o voto de não mudar a pobreza, senão para torná-la mais rigorosa, devemos refletir. A atitude de Inácio não é apenas ascética, como se ele fosse me beliscar para me fazer mais mal, mas é um amor pela pobreza como estilo de vida, como caminho de salvação, caminho eclesial. Porque, para Inácio – e estas são as duas palavras-chave que ele usa –, a pobreza é mãe e muro. A pobreza gera, é mãe, gera vida espiritual, vida de santidade, vida apostólica. E é muro, defende. Quantos desastres eclesiais começaram por falta de pobreza: mesmo fora da Companhia, refiro-me a toda a Igreja em geral. Quantos escândalos, dos quais, infelizmente, eu devo ser informado, dado o lugar onde me encontro, nascem do dinheiro. Eu acredito que Santo Inácio realmente teve uma grande intuição. Na visão inaciana da pobreza, temos uma fonte de inspiração que nos será de ajuda.
O clericalismo, que é um dos males mais sérios na Igreja, se distancia da pobreza. O clericalismo é rico. E, se não é rico em dinheiro, é rico em soberba. Mas é rico: há um apego à posse. Não se deixa gerar pela pobreza, não se deixa guardar pelo muro pobreza. O clericalismo é uma das formas de riqueza mais graves de que hoje em dia se sofre na Igreja. Ao menos em alguns lugares da Igreja. Até mesmo nas experiências mais cotidianas. A Igreja pobre para os pobres é a do Evangelho, a do Sermão da Montanha, do Evangelho de Mateus, e a do Sermão da Planície, do Evangelho de Lucas, assim como o “protocolo”, segundo o qual seremos julgado: Mateus 25. Eu acredito que, sobre isso, o Evangelho é muito claro, e é preciso ir nessa direção. Mas eu também insistiria no fato de que seria bom se a Companhia pudesse ajudar a aprofundar a visão de Inácio sobre a pobreza, porque eu acho que é uma visão para toda a Igreja. Algo que pode ajudar a todos nós.
O senhor falou muito bem da importância da consolação. Quando o senhor reflete no fim de cada dia, que coisas lhe dão consolação e quais lhe tiram a consolação?
Estou falando em família e, portanto, posso dizer: eu sou bastante pessimista, sempre! Não estou dizendo que sou depressivo, porque não é verdade. Mas é verdade que eu sempre tendo a olhar para a parte que não funcionou. E, portanto, para mim, a consolação é o melhor antidepressivo que encontrei! Eu a encontro quando me ponho diante do Senhor e deixo que Ele manifeste aquilo que Ele fez durante o dia. Quando, no fim do dia, me dou conta de que sou guiado, quando me dou conta de que, apesar da minha resistência, houve um guia, como uma onda que me empurrou para a frente, então isso me consola. É como ouvir: “Ele está aqui”. Em relação ao meu pontificado, consola-me ouvir interiormente: “Tudo bem, o que me fez entrar neste baile não foi uma convergência de votos, mas tem a ver com Ele”. Isso me consola muito. E quando eu noto as vezes em que as minhas resistências venceram, eu fico mal, e isso me leva a pedir perdão. E é um fato bastante frequente... E me faz bem. Dar-se conta, como diz Santo Inácio, que eu sou “todo um impedimento”, reconhecer que eu tenho as minhas resistências, que todos os dias eu as vivo e que, às vezes, eu as venço e, às vezes, não. Essa experiência faz com que não nos creiamos sabe-se lá quem. Isso ajuda. Essa é a minha experiência pessoal, nos termos mais simples possíveis.
A exortação apostólica Evangelii gaudium é de grande inspiração e nos exorta a conversar sobre o tema da evangelização. O que o senhor quer dizer com as últimas palavras da exortação, quando convida a continuar o debate?
Um dos perigos dos escritos do papa é que eles criam um pouco de entusiasmo, mas, depois, chegam outros, e os anteriores vão para o arquivo. Por isso, acho que é importante continuar trabalhando, aquela indicação conclusiva em que se deseja que se façam reuniões e se aprofunde a mensagem da Evangelii gaudium: lá, de fato, há todo um modo de abordar diversos problemas eclesiais e a própria evangelização da vida cristã. Eu acho que você se refere a uma exortação que se encontra no fim e que provém do documento de Aparecida. Naquela passagem, quisemos recorrer à Evangelii nuntiandi, que conserva a atualidade mais cheia de frescor, tanto quanto tinha quando foi publicada, e para mim ainda continua sendo o documento pastoral mais importante escrito depois do Vaticano II. No entanto, ela não é mencionada, não é citada. Pois bem, pode acontecer a mesma coisa com a Evangelii gaudium. Dias atrás, eu lia que seria preciso retomar da Evangelii gaudium o ponto sobre a homilia, porque passou em silêncio. Lá, encontra-se algo que a Igreja deve corrigir na sua pregação e que, além disso, a despoja de um aspecto clerical. Eu acredito que a Evangelii gaudium deve ser aprofundada, que se deve trabalhar sobre ela nos grupos de leigos, de sacerdotes, nos seminários, porque é o ar evangelizador que a Igreja hoje quer ter. Sobre isso, é preciso ir em frente. Não é algo concluído, como se disséssemos: ela já foi, agora cabe à Laudato si’. E depois: ela já foi, agora temos a Amoris laetitia... Nada disso. Eu lhes recomendo a Evangelii gaudium, que é um marco. Não é original, sobre isso eu quero ser muito claro. Ela reúne a Evangelii nuntiandi e o documento de Aparecida. Embora tendo vindo depois do Sínodo sobre a evangelização, a força da Evangelii gaudium foi a de retomar esses dois documentos e de refrescá-los para voltar a oferecê-los em um prato novo. A Evangelii gaudium é o marco apostólico da Igreja de hoje.
A Igreja experimenta uma queda de vocações, especialmente em lugares onde fomos relutantes em promover vocações locais.
Aconteceu-me em Buenos Aires, como bispo, que padres muito bons, mais de uma vez, conversando, dissessem: “Na paróquia, eu tenho um leigo que ‘vale ouro’!”. E me retratavam-no como um leigo de “primeira categoria”. E, depois, me perguntavam: “O que lhe parece se o fizermos diácono?”. Eis o problema: o leigo que vale, nós logo o queremos fazer diácono, queremos clericalizá-lo. Em uma carta que eu enviei recentemente ao cardeal Ouellet, eu escrevia que, na América Latina, a única coisa que mais ou menos se salvou do clericalismo é a piedade popular. De fato, como a piedade popular é uma daquelas coisas das pessoas em que os padres não acreditavam, os leigos foram criativos. Talvez foi necessário corrigir algumas coisas, mas a piedade popular se salvou porque os padres não tinham nada a ver. O clericalismo não deixa crescer, não deixa crescer a força do batismo. É a graça do batismo que possui a força e a graça evangelizadora da expressão missionária. E o clericalismo disciplina mal essa graça e induz dependências que, às vezes, mantêm povos inteiros em um forte estado de imaturidade. Lembro-me quantos confrontos houve quando, enquanto eu era estudante de teologia ou jovem padre, apareceram as comunidades eclesiais de base. Por quê? Porque, justamente lá, os leigos começaram a ter um papel um pouco forte de protagonistas, e os primeiros a se sentirem inseguros foram alguns padres. Estou generalizando demais, mas faço isso de propósito: se eu “caricaturizo” o problema, é porque o problema do clericalismo é muito sério.
Em relação às vocações locais, eu digo que, sobre a redução das vocações, se tratará no no próximo Sínodo. Eu acredito que as vocações existem, simplesmente é preciso saber como são propostas e que cuidados recebem. Se o padre está sempre com pressa, se está imerso em mil questões administrativas, se não nos convencemos de que a direção espiritual é um carisma não clerical, mas laical (que também pode ser desenvolvido pelo padre), e se não colocamos e convocamos os leigos no discernimento vocacional, é evidente que não teremos vocações.
Os jovens precisam ser escutados; e os jovens se cansam. Continuam voltando com as mesmas coisas e devem ser escutados. E, certamente, para fazer isso, é preciso ter paciência, sentar-se e escutar. E também criatividade, para colocá-los no trabalho concreto. Hoje, as habituais “reuniões” já não têm mais muito sentido, não são fecundas. É preciso lançar os jovens em atividades de tipo missionário, catequético ou de tipo social. Isso faz muito bem.
Uma vez, eu fui a uma paróquia da periferia, em uma villa miseria. O padre tinha me dito que estava construindo uma sala para encontros, na parte de trás. Como aquele sacerdote também lecionava na universidade estadual como assistente, ele tinha despertado em meninos e meninas um entusiasmo e uma vontade de participar. Eu apareci lá em um sábado, e eles estavam sendo pedreiros: o engenheiro que dirigia tudo era judeu, uma das jovens era ateia, e o outro, não sei o quê, mas estavam unidos em um trabalho comum. Isso faz surgir a pergunta: eu posso fazer alguma coisa pelos outros e com os outros? É preciso colocar os jovens no trabalho e é preciso escutá-los. Essas duas coisas são necessárias, na minha opinião.
Não promover vocações locais é um suicídio, significa, nem mais nem menos, esterilizar a Igreja, porque a Igreja é mãe. Não promover vocações locais é uma ligadura das trompas eclesiais. É não deixar que essa mãe tenha seus próprios filhos. E isso é grave.
A digitalização é o traço típico desta época moderna. Cria velocidade, tensão, crise. Qual é o seu impacto na sociedade de hoje? Como fazer para ter velocidade e profundidade?
Os holandeses, há 30 anos ou mais já, inventaram uma palavra: “rapidação”. Ou seja, a progressão geométrica em termos de velocidade; e é essa “rapidação” que transforma o mundo digital em uma possível ameaça. Eu não falo aqui dos seus aspectos positivos, porque todos os conhecemos. Evidencio também o problema da liquidez, que pode anular o concreto. Alguém, há algum tempo, me contou sobre um bispo europeu que foi se encontrar com um amigo empresário. Este lhe mostrou como, em 10 minutos, conseguia fazer uma operação que produzia um certo ganho. De Los Angeles, ele vendeu gado para Hong Kong e, em poucos minutos, obteve um lucro que lhe foi imediatamente creditado. A liquidez da economia, a liquidez do trabalho: tudo isso provoca desemprego. É o mundo líquido. Sente-se invocar um “retorno”, embora a palavra não me agrade, porque é bastante nostálgica. “Volver” é o título de um tango argentino! Há o desejo de recuperar a dimensão concreta do trabalho. Na Itália, 40% dos jovens de 25 anos de idade ou menos estão desempregados; na Espanha, 50%; na Croácia, 47%. É um sinal de alerta que mostra essa liquidez que cria desemprego.
Agradeço pelas perguntas e pela vivacidade, e desculpem-me se deixei a língua andar…
* * *
O Pe. Arturo Sosa, prepósito geral da Companhia de Jesus, no fim do diálogo, saudou o papa com estas palavras:
“Santo Padre, no fim destas duas densas sessões, em nome de todos os companheiros reunidos na 36ª Congregação Geral, quero agradecer-lhe de coração pela sua fraterna presença entre nós e porque..., graças a Deus, deixou a língua andar! Obrigado pela sua contribuição para o nosso discernimento!
“Agradecemos-lhe por nos ter confirmado o convite a viver a fundo o nosso carisma, caminhando junto à Igreja e a tantos homens e mulheres de boa vontade, movidos pela compaixão, comprometidos a consolar reconciliando, sensíveis a discernir os sinais dos tempos.
“Caminhar sem ceder à tentação de nos determos em alguns daqueles cantos amenos que encontramos ao longo da estrada. Caminhar movidos pela liberdade dos filhos de Deus que nos torna disponíveis para sermos enviados a qualquer parte, ao encontro da humanidade sofredora, seguindo a dinâmica da encarnação do Senhor Jesus, aliviando tantos irmãos e irmãs, como Ele, postos na cruz.
“Caminharemos juntos, de acordo com o nosso modo de agir, sem dissolver as tensões entre fé e justiça, diálogo e reconciliação, contemplação e ação... Caminho que nos leve ao encontro profundo com a riqueza humana expressada na variedade cultural. Prosseguiremos os nossos esforços de inculturação para anunciar melhor o Evangelho e para que resplandeça o rosto intercultural de nosso Pai comum.
“Seguiremos fielmente o seu conselho de nos unirmos à sua oração incessante para receber a consolação que faça de cada jesuíta, e de todos os homens e mulheres com quem compartilhamos a missão de Cristo, servidores da alegre notícia do Evangelho.
“Com o coração agradecido, agora queremos cumprimentá-la pessoalmente...”
1. Parrésia é uma palavra grega, frequente no texto grego do Novo Testamento, em que indica a coragem e a sinceridade do testemunho. Foi muito usada na tradição cristã, especialmente no início, também como o contrário de “hipocrisia”.
2. O magis (demais, maior) na tradição inaciana vem do célebre lema ad maiorem Dei gloriam (para a maior glória de Deus) e resume um forte impulso espiritual. O agir do jesuíta é caracterizado por esse magis, uma tensão viva que nos lembra que é sempre possível dar um passo à frente em relação a onde chegamos, porque o nosso caminhar corresponde à manifestação cada vez mais explícita da glória de Deus. Com o discernimento dos espíritos, aprendemos a reconhecer o bem que habita em cada situação e a escolher aquela que leva a um bem maior.
3. Os jesuítas Matteo Ricci (1552-1610) e Roberto de Nobili (1577-1656) foram verdadeiros pioneiros. Missionários, respectivamente, na China e na Índia, buscaram adequar o anúncio do Evangelho à cultura e aos cultos locais. Mas isso preocupou alguns, e na Igreja levantaram-se vozes contrárias ao espírito dessas atitudes, como se envolvessem uma contaminação da mensagem cristã.
4. O papa aqui se refere a teorias e debates do início do século XVII, em que também estavam envolvidos jesuítas como Rodrigo de Arriaga.
5. Trata-se de um exame, em uso na Companhia de Jesus, que serve para verificar a capacidade de um candidato ao sacerdócio de escutar as confissões.
6. El cuco, em português, seria o “bicho-papão”.
7. Bernhard Häring (1912-1998), religioso redentorista, foi um teólogo moralista alemão e um dos fundadores da Academia Alfonsiana. A sua obra teve uma influência significativa na preparação e no desenvolvimento do Concílio Vaticano II.
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"Ter coragem e audácia profética." A íntegra do diálogo do Papa Francisco com os jesuítas reunidos na 36ª Congregação Geral - Instituto Humanitas Unisinos - IHU