29 Novembro 2019
A derrubada de Zelaya tinha como objetivo expresso abortar um processo que tinha provocado uma rejeição crescente da oligarquia e do imperialismo estadunidense. Durante o primeiro ano de seu mandato (2006), não houve nenhuma mudança relevante, mas a partir de 2007 ocorreu uma mudança, com a aproximação com a Venezuela e com a entrada da Petrocaribe.
A reportagem é de Luismi Uharte, publicada por El Salto, 27-11-2019. A tradução é do Cepat.
O ano de 2008 foi fundamental, porque Zelaya adere à ALBA, além de aumentar o salário mínimo em mais de 60% e negociar com o movimento camponês um decreto para legalizar as terras ocupadas. A proposta de consulta popular, em 2009, para promover uma Assembleia Constituinte foi a gota d’água que encheu o copo e justificou o golpe.
Zelaya, além de “traidor de classe” para as elites do país, tentou redefinir o papel geopolítico historicamente atribuído a Honduras (ser uma plataforma contrarrevolucionária contra os países vizinhos, principalmente Nicarágua e El Salvador), sendo assim, o Pentágono planejou sua queda.
O golpe não teve um cuidado especial com a forma: Zelaya foi sequestrado em plena madrugada pelos militares, transferido para a base estrangeira de Palmerola (ao lado de Tegucigalpa) e enviado de avião para a Costa Rica. No dia seguinte, o parlamento queria legitimar o golpe apresentando uma suposta carta de renúncia do presidente, que este mesmo denunciou como falsa.
O regime que, há uma década, se impôs em Honduras é uma combinação de autoritarismo político e ultraliberalismo econômico, de modo que o termo “liberal” se esvazia da equação política, mas se radicaliza no plano econômico. É um exemplo do novo tipo de regime que está sendo ensaiado em algumas regiões do planeta, no qual se articula um capitalismo cada vez mais extremo com sistemas políticos não literalmente ditatoriais, mas, sim, em transição para um pós-Estado de Direito. Em síntese, uma amostra do laboratório de distopias do século XXI.
O novo regime político pós-liberal se expressa na hibridização de um modelo de eleição fraudulento com um modelo de administração do poder cada vez mais coercitivo. Por um lado, as duas últimas eleições presidenciais (2013 e 2017) foram vencidas pela oposição de centro-esquerda (Partido Liberdade e Refundação - LIBRE e aliados), mas a direita golpista continuou a governar (Partido Nacional) através de uma fraude endossada pelas potências ocidentais. O modelo eleitoral, portanto, permite eleições multipartidárias, mas a presidência não é ocupada por quem realmente vence, mas quem convém que governe, suprimindo abruptamente um dos princípios básicos do liberalismo eleitoral. Em resumo, se garante o direito de se apresentar (‘não é uma ditadura tradicional’), mas se torna inviável o direito de governar.
O segundo pilar do novo regime é um modelo de administração do governo no qual o ‘poder coercitivo’ tem cada vez mais peso contra o ‘poder persuasivo’. A geração de consenso é cada vez menos importante, de modo que a coerção é priorizada, sendo exercida pela combinação de instrumentos legais e ilegais.
A repressão “legal” está se materializando através de três vias principais: militarização, judicialização e encarceramento. A COFADEH (Comitê de Parentes dos Desaparecidos em Honduras), uma das organizações de direitos humanos mais prestigiadas do país, denunciou a crescente militarização, com a criação de uma polícia militar e a destinação das Forças Armadas para o trabalho policial, além da crescente presença de MOSSAD (serviço secreto de Israel), do DAS e obviamente da CIA. O atual ministro da Segurança é uma das figuras da repressão dos anos 1980 e desde 2011 o governo impõe uma “taxa de segurança” para financiar a escalada repressiva.
A judicialização é outro instrumento privilegiado da repressão, uma vez que existe um uso perverso de figuras penais muito duras (terrorismo, usurpação) para impor penalidades desproporcionais aos líderes do movimento popular. Além disso, em novembro, o Congresso pretende aprovar um novo código penal altamente repressivo. O anterior se complementa com um acréscimo substancial do número de presos políticos e a criação de prisões de segurança máxima (formalmente para narcotraficantes, mas de fato para defensores da terra e do território).
O regime articula a repressão legal com o uso de instrumentos ilegais de todos os tipos. Por um lado, o movimento camponês e indígena denuncia a infiltração para gerar divisão nas comunidades. Por outro lado, destacam as campanhas de criminalização, caracterizando líderes sociais como membros de gangues, traficantes de drogas e terroristas, a fim de legitimar ações contra eles. Por sua vez, as ameaças e a segregação obrigaram um grande número de líderes populares a viver com fortes medidas de segurança e, em alguns casos, em regimes de semiclandestinidade. Por fim, as agressões e assassinatos estão na ordem do dia, com um forte aumento de feminicídios, aponta Suyapa Martínez, do Centro de Estudos da Mulher. Isso em um contexto de impunidade para mais de 90% dos crimes. Para Berta Oliva, diretora da COFADEH, “não estamos no Estado de Direito, ao contrário, em um de Lixo”.
Um dos principais objetivos do golpe foi a restituição do modelo neoliberal e, por sua vez, uma radicalização dele. Os pilares do modelo atual são: intensificação do extrativismo e do agronegócio, contrarreforma agrária, redução abrupta dos salários e privatizações.
Por meio da chamada “diarreia legislativa” (Nova Lei da Mineração de 2013, etc.), foi favorecida a entrega massiva de território a projetos transnacionais de mineração e energia. A mineração aumentou 100%, mas se somarmos os projetos pendentes, o aumento é de 450%. Pela Via Campesina de Honduras denunciam que é habitual a entrega irregular de licenças ambientais.
Os impactos de todos esses projetos nas comunidades rurais e indígenas que habitam e vivem perto dos territórios concessionados são múltiplos. Um dos mais destacados pela Via Campesina é a restrição de acesso à água devido à privatização de bacias hidrográficas, desvio de canais e poluição dos aquíferos. Também destacam a restrição de acesso aos recursos florestais devido à extração massiva de madeira.
A contrarreforma agrária que vem dos anos 1990 (Lei da ‘modernização agrária’) se intensificou com a expansão do modelo agroindustrial e a consequente expulsão de massas de camponeses de suas terras. A concentração de terra acelerou em torno dos produtos “estrelas” de exportação: café, banana, óleo de palma e cana-de-açúcar. Paralelamente, a importação de alimentos básicos acelerou, aumentando os níveis de insegurança alimentar.
Rafael Alegría, dirigente histórico camponês, ressalta que o movimento camponês continua solicitando terras ao INA (Instituto Nacional Agrário), mas como não cumpre sua função, as famílias são forçadas a ocupar ('recuperar' o roubo histórico) e então o Estado ativa o protocolo de despejo, gerando um alto nível de conflito e repressão. Na última década, mais de 8.000 camponeses foram detidos, após despejos.
A redução do salário das classes trabalhadoras foi implementada através da Lei do Emprego por Hora de 2014, que permite pagar menos que o salário mínimo. Quanto às privatizações, além das vias terrestres, o governo tentou privatizar, em 2019, a saúde e a educação, mas não conseguiu por conta da mobilização popular. Por outro lado, o principal projeto da década foi o ZEDES (Zonas Especiais de Desenvolvimento Econômico), popularmente conhecidas como “cidades modelo”, onde não apenas o território é entregue ao capital transnacional, mas também se autogoverna e dispõem de policiais e administração de justiça própria. Em síntese, supressão radical da soberania nacional.
As consequências sociais deste laboratório de distopia são dramáticas, pois levaram o país a uma situação de evidente “emergência social”. No entanto, o apagão midiático global torna essa realidade invisível. Atualmente, duas em cada três pessoas são pobres e mais de 40% sofrem pobreza extrema. Ao mesmo tempo, a emigração disparou. Segundo Eugenio Sosa, sociólogo e professor da Universidade Nacional Autônoma de Honduras, 40% da população planeja migrar e 20% não descarta essa hipótese.
Apesar desta radiografia dramática, Sosa destaca uma série de elementos que mostram que existe uma resistência importante ao modelo. Afirma que ao longo desses dez anos se desenvolveu uma luta constante e que houve um processo de forte politização nos setores populares. Destaca uma série de lutas que simbolizaram uma década de resistência: a longa luta, de muitos meses, contra o golpe de Estado, a luta diária contra o extrativismo em todo o país, o renascimento do movimento estudantil, o grande movimento contra a fraude eleitoral de 2017 e a mobilização mais recente (bem-sucedida) contra a tentativa de privatizar a saúde e a educação. Conclui prevendo uma intensificação do conflito e da disputa entre o bloco golpista do poder e o bloco de popular da mudança.
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Honduras. Radiografia atual, a dez anos do golpe - Instituto Humanitas Unisinos - IHU