29 Novembro 2018
Todos os restaurantes do Dunkin' Donuts em Honduras têm um segurança armado. Quando se entra numa farmácia, um guarda com uma espingarda fará a gentileza de segurar sua arma enquanto a receita é preenchida. Nos feriados, não há fogos de artifício, apenas alguns tiros e foguetes ilegais explodindo no céu da noite. Na véspera de Natal, do Ano Novo, do Dia da Independência, em todos os bairros do país, há ecos de tiros no escuro como se uma gangue estivesse saindo do velho oeste a galope.
O depoimento é de Patrick Gothman, publicado por America, 27-11-2018. A tradução é de Luísa Flores Somavilla.
Cinco anos atrás, eu saí dos Estados Unidos e fui trabalhar como voluntário, com outros estadunidenses e nicaraguenses, em um orfanato na costa norte de Honduras que atendia crianças órfãs e que não podiam mais viver com suas famílias pela pobreza extrema, por abuso ou por ambos. Aprendemos na prática que o paraíso e o inferno moram lado a lado, e que se pode ouvir os tiros de ambos os lugares à noite.
A primeira vez que apontaram uma arma para mim foi quando eu estava esperando um táxi antes do amanhecer no bairro de San Pedro Sula, um riquíssimo centro industrial do país e, na época, a capital mundial dos "assassinatos". O segurança me viu do lado de fora do seminário onde eu havia passado a noite. Ele desceu da pequena torre, que ficava na esquina, e se aproximou de mim com uma machete em uma mão e um revólver levantado na outra.
"O que você está fazendo aqui?" Ele estava caindo de sono.
"Estou só esperando um táxi. Estou indo para o aeroporto", disse.
"E por que estava esperando aqui na rua?", ele perguntou. "A essa hora da noite não acontece nada de bom por aqui." Ao nosso redor havia casas consideradas mansões mesmo para os padrões dos EUA. Eu queria voltar para dentro do seminário, mas o portão de quase cinco metros de altura fechou atrás de mim, e eu não tinha como abrir novamente sem acordar todas as freiras, os padres e os seminaristas que estavam lá dentro.
"Vou esperar em outra quadra", ofereci. "Meu táxi está a 5 minutos de distância."
"Não!", ele respondeu com firmeza. "Espere aí. Não se mexa. Só espere."
Quando finalmente meu táxi chegou, ele guardou a arma e pediu desculpas, mas não fiquei ali mais muito tempo.
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Antes de me mudar para Honduras, eu visitei o país. Por uma semana, eu ajudei a coordenar um grupo de estudantes do ensino médio de todas as escolas católicas da Diocese de Dallas que queriam fazer algum trabalho manual e oferecer suprimentos à nossa "diocese irmã". Diante de uma enorme montanha, trabalhamos para reconstruir e pintar uma escola lotada onde o nosso guia, Luis, e sua esposa eram professores. Luis era a figura mais próxima à de um prefeito na cidadezinha. Ele coordenava a escola, ajudava a resolver disputas, liderava o estudo bíblico da comunidade e a missa de domingo e, como era um dos únicos moradores que tinha carro, também fazia o serviço de ambulância.
Uma manhã ele chegou e nos cumprimentou com os olhos vermelhos e olheiras profundas. Ele tinha levado um vizinho com dor de estômago para o hospital no meio da noite — mais de uma hora de ida e outra de volta, no outro lado da montanha. Ele só chegou a tempo para tomar café da manhã, fazer a oração e nos receber na escola.
Luis e sua esposa eram grandes exemplos do que era possível mesmo em meio à extrema pobreza. Com determinação e um bom coração, era possível ser um pilar para a comunidade — uma comunidade em que valia a pena permanecer. Uma vez perguntei a ele se muitos jovens da cidade acabavam indo para os Estados Unidos. "Todos", ele disse. Não havia vergonha em sua voz; era simplesmente um fato. Quando eu perguntei se ele já tinha pensado em ir, ele balançou a cabeça. Ele tinha uma esposa e um filho, um bom emprego, uma comunidade onde fazia a diferença: não podia se imaginar saindo.
Anos depois, quando me mudei para outra cidade, do outro lado da montanha, peguei o ônibus para visitar Luis e sua família. Ele ficou emocionado de me ver novamente, mas me avisou que não deveria pegar o ônibus de novo, dizendo apenas que "não é seguro".
Durante os meus dois anos em Honduras, aprendi a amar as crianças do abrigo como se fossem meus filhos. Nosso objetivo era prepará-los para uma vida saudável e produtiva em Honduras, apesar da infância terrível e desoladora que viveram. Se apenas pudéssemos oferecer amor, estabilidade e paz em meio à tempestade do presente e do passado das crianças, talvez elas teriam uma chance de lutar - era no que acreditávamos.
No entanto, a violência não emite avisos, e não leva em consideração a fé mais sincera. Eu tinha acabado de chegar da aula de inglês quando soube que uma das voluntárias e o diretor executivo, que tinha vindo dos Estados Unidos para visitar, haviam sido atacados na praia ao lado. A cerca de 180 metros da casa, nosso santuário, haviam colocado machetes no pescoço deles, e a voluntária havia sido estuprada. "Nós sabemos de onde vocês são", disseram quando os soltaram. "Se vocês contarem para alguém, vamos voltar e matar vocês e todas as crianças."
Depois de ir ao hospital e depor à polícia, minha amiga passou a noite conosco, no chão, vários de nós com facões do lado e todos sem conseguir dormir. Pela manhã, pediram que ela saísse do país, e os diretores perguntaram se os outros queriam sair também. De repente, a escolha amaldiçoada de fugir do país que tantos vizinhos hondurenhos tinham tido que tomar tornou-se a minha própria decisão. Os homens responsáveis ainda não tinham sido pegos, e nossa comunidade já limitada de voluntários estava diminuindo rapidamente, pois muitos já não se sentiam seguros para continuar trabalhando. No dia seguinte, todos nós saímos também.
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Alguns anos depois, entrei em contato com Luis pelo WhatsApp. Ele e sua família tinham escapado da cidadezinha no meio da noite. Uma gangue havia exigido que ele pagasse para ter "proteção", Luis recusou e eles ameaçaram matar toda a família. Eles fugiram para uma cidade maior, mas ele e a esposa não conseguiram encontrar emprego como professores e ainda tinham medo que a gangue os encontrasse. Ele perguntou se eu poderia ajudá-lo a pedir asilo nos Estados Unidos.
Entrei em contato com alguns advogados da área da imigração, que me disseram que Luis teria de chegar à fronteira dos EUA com o México e pedir asilo lá. Mas mesmo que ele conseguisse chegar lá, tive que informá-lo que dificilmente sua família conseguiria asilo. Luis estava desolado. Ele disse que precisava proteger a família, e a melhor forma era ir embora e dar uma vida para eles. Nós podíamos nos casar, mesmo que fosse só no papel, ele propôs, com sinceridade. Realmente, esse tipo de união tinha passado a ser legal aqui nos Estados Unidos, expliquei, mas eu não podia simplesmente casar com ele para ele ganhar a cidadania. Apesar da sugestão absurda, foi duro digitar a resposta, sabendo que minha decisão era uma questão de vida ou morte.
Ainda recebo mensagens de Luis me implorando para ajudá-lo, mas para ser honesto não tenho mais coragem de abrir. Tornou-se demais para mim ser lembrado constantemente do desespero. Eu sei que é errado ignorá-lo. Sei que tenho o privilégio de poder me desligar da violência de Honduras e fingir que não moro no país que criou o desespero de Luis, que também é o país que poderia ajudar a corrigir essa situação.
Pelo que sei, Luis pode fazer parte da caravana infame, esperando do outro lado da fronteira para pedir asilo. É o tipo de coisa que um amigo de verdade deve saber. É importante saber quem são essas pessoas e que o que elas estão fazendo é legal. É impossível pedir asilo dentro do país de origem. Pressupor que os que se apresentam pacificamente nos portos de entrada infringiram alguma lei americana simplesmente não é verdade.
Quando conheci o Luis, achei que era possível ter educação, trabalho e tornar-se financeiramente estável em Honduras a ponto de nunca precisar sair. Mas a imagem na minha cabeça da “Honduras virtuosa" se mostrou uma ilusão quando até mesmo Luis teve que fugir da violência inflexível e da pobreza da América Central. Se queremos acabar com o ciclo de famílias que fogem e chegam à fronteira dos EUA durante a noite, antes de qualquer coisa, é preciso entender por que suas noites tornaram-se tão aterrorizantes.
As armas que afligem suas ruas saíram daqui. A corrupção que infesta seus governos é resultado direto dos golpes e da instabilidade que os Estados Unidos constantemente realizaram ou aceitaram por mais de um século. As pessoas usavam a expressão desdenhosa “república das bananas” para designar um país que se tornava totalmente dependente de uma economia de fora mais poderosa. Era meramente uma versão atualizada do colonialismo, e Honduras foi a vítima original.
A pobreza e a violência, as causas desses grupos migratórios, são doenças com que infectamos esses países. Ficar bravo com os imigrantes é como os conquistadores brancos das fronteiras se questionarem por que os povos nativos americanos estavam sempre doentes.
Quem mora ao norte da fronteira mexicana tem que aprender o quanto os territórios são entrelaçados e por que nossos vizinhos ao sul ainda ouvem tiros à noite. Eu próprio fugi de um lado e fui para o outro e presenciei em vão todas as pessoas de quem eu gostava tentando seguir o mesmo rumo. Mas ter nascido no paraíso não é motivo para condenar os que ainda estão presos no inferno.
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Eu fui missionário estadunidense em Honduras. Eu testemunhei a violência que sofrem - Instituto Humanitas Unisinos - IHU