18 Setembro 2019
Escolhido para a Entrevista do Mês dos Aliados da Pública, o economista Ladislau Dowbor alerta: na era do capitalismo improdutivo, caminhamos em ritmo acelerado para um desastre.
A reportagem é de Caio Costa e Thiago Domenici, publicada por Agência Pública, 12-09-2019.
O diagnóstico é grave, mas Ladislau Dowbor nega ser pessimista. Brinca: “O pessimista é o otimista bem informado”, repetindo uma frase do economista Ignacy Sachs, com quem compartilha trabalhos e a origem polonesa. Para melhorar o cenário, Dowbor tem feito reuniões em um grupo que vai apresentar propostas no Economia de Francisco, evento convocado pelo Papa Francisco para discutir uma “economia diferente, que faz viver e não mata, inclui e não exclui, humaniza e não desumaniza, cuida da criação e não a depreda”, nas palavras do comunicado do pontífice. O encontro será realizado em março de 2020 em Assis, na Itália. “Por isso o nome Economia de Francisco, de São Francisco de Assis”, explica o professor.
Grande crítico da financeirização, Dowbor estudou economia na Suíça, “com os melhores banqueiros”, e na Polônia. Foi consultor do secretário-geral da ONU (1980-1981) e atuou, pelas Nações Unidas ou assessorando governos, em países como Guiné-Bissau, Costa Rica, Nicarágua, Guiné Equatorial, Equador e África do Sul. Foi secretário da gestão Erundina em São Paulo e colaborou com o projeto Comunidade Solidária, do governo FHC, a convite da então primeira-dama Ruth Cardoso.
Anos antes, na ditadura, participou da luta armada, foi preso e torturado. Virou símbolo internacional da violência do Estado brasileiro ao denunciar, durante exílio na Argélia, ao lado de Miguel Arraes, as marcas da tortura que traz na pele até hoje. Diante de um presidente que ora nega essas práticas, ora exalta os que as praticavam, ele hesita, diz ficar “à procura de termos”. “É um boçal que encontrou um filão para mamar nos recursos públicos e que nunca fez porra nenhuma em termos de trabalho na vida”, conclui.
Sua maior preocupação, no entanto, são outros agentes “mamando” recursos em ritmo acelerado. Não por salários, mas pelo endividamento do Estado, das empresas e das famílias, como detalha em A era do capital improdutivo (2017), sua última obra. Ele aponta a financeirização como um problema global, mas afirma que no Brasil “atingiu níveis grotescos”, com grande influência na crise dos últimos anos. E vê no enfrentamento dos beneficiários desse fenômeno a raiz do impeachment de Dilma Rousseff.
Em longa entrevista, apontou exemplos de medidas que considera positivos nos mais variados países: China, Suécia, Suíça, Alemanha, Coreia, Inglaterra. No Brasil, criticou, entre outras coisas, as privatizações e a PEC do Teto de Gastos, e disse não ver “descontinuidade” entre os governos Temer e Bolsonaro. “A mudança é no discurso político”. Ele também tem duras críticas à Operação Lava Jato, para ele, “essencialmente uma alavanca política”, e defende que o verdadeiro combate à corrupção depende principalmente da maior transparência dos bancos.
Começando por sua trajetória de estudante, militante contra a ditadura até chegar a economista, professor, escritor…
A minha área, essencialmente, é linguística. Mas eu decidi ir para a economia simplesmente para entender o que acontece. Esse sentimento de que há coisas que não se aceitam. E eu estudei na Suíça, com bons banqueiros, como se deve, mas quando voltei ao Brasil vi que eu estava na lista de procurados [pela ditadura] porque fiz um curso de russo em uma associação Brasil-União Soviética. Na mesma época, eu estava assistindo curso de literatura americana no Roosevelt Institute, mas eu era procurado porque era prova da ameaça soviética contra a qual os militares nos defenderiam e coisa do gênero. As coisas se enroscam.
Que idade o senhor tinha?
Eu entro na luta armada com 27 anos, mas já tinha estudado economia, já tinha entendido o que é desigualdade, já tinha visto que pode ser diferente. A gente não sabe como as coisas se acumulam – e o momento em que as coisas rompem. Na época, tinha luta armada por toda parte: em toda a América Latina, a Guerra do Vietnã, que, para a minha geração, foi um negócio… Ver aquele bombardeamento químico que eles faziam com agente laranja. Era uma barbárie. E o golpe aqui, o papel eminente dos Estados Unidos. Na juventude, às vezes, quando você sente uma coisa escandalosa, você reage. O pessoal me contatou em Paris, vim aqui para a Vila Leopoldina e fui preso depois de dois meses em um negócio besta porque a gente precisava de carro – inclusive, devolvia [depois] porque era só para fazer uma operação. Mas, em uma dessa, fui preso pelo que viria a ser o Esquadrão da Morte, o departamento de automóveis, no Deic [Departamento Estadual de Investigações Criminais]. Éramos quatro, fomos massacrados de um jeito impressionante. É desumano. O impacto de longo prazo é o seguinte: você tem uma das coisas mais preciosas que é preservar os seus companheiros e você tem a dor absolutamente… Eles são profissionais, tem aparelhos elétricos, esse choque é um negócio… Eu inventei que tinha um buraco no [viaduto] Santa Ifigênia, que [por ali] eu recebia mensagens, coisas assim, e [fomos lá com] o Deic, na época tinha aqueles fusquinhas. A gente desceu porque eu ia mostrar para eles onde eu escondia as coisas, mas eu já tinha essa ideia, tentei me jogar em cima da Brigadeiro Tobias. Mas eles tinham me amarrado com uma corda, enrosquei, fiquei preso. É banal. Mas a morte é muito preferível àquilo que você passa.
O senhor diz que a morte é preferível a ser torturado?
Sem dúvida. Junta-se a dor e junta-se o pavor de você entregar outra pessoa. Muita gente, dos torturados, tem dificuldade de superar esse processo. Na época, através de uma grana que passaram para um delegado de polícia, o Milton Dias, a gente depois conseguiu sair, ele liberou a gente. O Exército não chegou a saber. Aí eu voltei para a luta. Você diz: “Ah, o pessoal entrou na luta armada”. Bom, frente ao que eles estão fazendo você faz o quê? Abaixa a cabeça e aceita? Muita gente simplesmente não aceitava. Quando você tem mais de 10 mil pessoas que colocam a sua vida para tentar mudar as coisas, é muito amplo, é um processo. Levei dois anos de luta até ser preso de novo e depois ser trocado pelo embaixador alemão. E [na tortura] tive o serviço completo porque eles achavam que eu sabia onde estava o dinheiro, e, para enfraquecer a organização, era esse processo. Quando a gente saiu da prisão, denunciava a tortura e o governo dizia: “Não existe tortura no Brasil”. Aí saiu uma foto minha em uma revista alemã que mostrava um buraco de terceiro grau na minha canela – com o tempo de choque que você leva, os fios elétricos são enrolados em algodão e molhados em água para não deixar marca, e o tecido começa a se deteriorar. Esse buraco levou uns dez anos para se reconstituir. Isso é real.
Depois, na Argélia, quando eu conheci Miguel Arraes, a gente passou a fazer todo um trabalho de denúncia da ditadura. Aí a gente foi chamado pela Cruz Vermelha Internacional, fui pra Genebra junto com Apolônio de Carvalho, porque eles estavam interessados em promover, da mesma maneira que tem um direito do preso militar, um direito do prisioneiro político. Acabou não dando em grande coisa, mas ali… não é todo dia que sai de uma prisão um cara com feridas, com sangue escorrendo, mostrando: “Olha, é assim que a coisa funciona”. Então a gente tinha o Le Monde, Tribune de Genève, as televisões, e os militares [brasileiros] mandavam ministros lá para a Suíça para exigir que a gente fosse expulso. Fomos chamados pelo presidente do cantão de Genebra e fomos, eu e o Jean Ziegler, que depois escreveu A Suíça lava mais branco – e não é roupa, um baita de um livro, é um cara muito corajoso. E o presidente do Cantão disse pra gente: “Olha, é o seguinte: eu recebi a instrução de Genebra que eu devo expulsar vocês. Só que vocês vieram aqui a convite da Cruz Vermelha internacional. São convidados do cantão de Genebra. Eu respeito essa tradição e portanto eu peço a compreensão de vocês pelo seguinte: eu não vou encontrar vocês”. A gente esperou mais de uma semana até expirar o visto dando entrevista, passando na televisão que a polícia não encontrava a gente. Quando viajamos de volta para a Argélia, o escândalo era tamanho, naquela altura, que tinha um monte de jornalistas internacionais para receber a gente.
Ladislau Dowbor entrou na luta armada aos 27 anos, durante o regime militar. (Foto: José Cícero da Silva/Agência Pública)
Como o senhor vê hoje o revisionismo do presidente Bolsonaro em relação a esse período que o senhor viveu, foi torturado. Qual a percepção?
Eu acho uma bestialidade. É difícil, a gente fica à procura de termos. É um boçal, um boyzão, um cara que encontrou um filão para mamar nos recursos públicos, tem 26 anos de deputado e, agora presidente, nunca fez porra nenhuma em termos de trabalho na vida. Vive desse bate-boca. “Vou fazer”, “Vou acontecer”. E quando chega à Presidência está constatando que não funciona. Para o país não funciona e para o grosso da população não funciona. Eu acho que essa eleição é legal, mas não é legítima. O artigo 1o da nossa Constituição diz que o poder emana do povo. Ou seja, a representatividade está no centro. Isso é cláusula pétrea. Ele nunca teria sido eleito se o Lula tivesse concorrendo, se não o tivessem impedido dois meses antes da eleição. Ninguém no mundo acredita na corrupção do Lula, e ele nunca teria sido eleito se não fosse a facada.
Agora, uma coisa é personagem; outra é que para um conjunto de forças interessa muito ter um presidente fraco. Deixa ele falar da mulher do Macron, falar qualquer besteira, mas estão se apropriando do petróleo. Estão se apropriando da Amazônia. Estão se apropriando da terra. Estão se apropriando da Embraer, o que é um escândalo. Curiosamente, aqui você se apropriar de recursos públicos que estão dando lucro, vender por uma merreca, chama privatização. Eu bato tua carteira, eu sou um ladrão; o cara com grande recurso se apropria do negócio pagando menos do que o lucro de um ano e você chama de privatização. Mas aí há muito interesse. Interesse americano em torno do petróleo. Você não tem um país com petróleo que não esteja em situação ameaçada. Eu estive agora em Angola, a pedido deles [angolanos], e um deles me falou da maldição do petróleo porque, no país de frágil governança, o sistema de interesses internacionais é muito grande. E nós estamos aí, em nome da pátria amada, entregando o país a interesses internacionais, os mais escandalosos. Não é só uns bestas que se reúnem lá no Congresso. Ter acesso à soja barata, madeira barata e carne barata, isso está na mão, em particular no Brasil, do Blackstone. O Blackstone é o maior grupo de traders do mundo. Dizer que é nossa soberania e entregar esse negócio para os traders internacionais…
Trazendo para o senhor o que disse o leitor que sugeriu o seu nome na enquete: “Eu quero ouvir a opinião do professor sobre a relação entre a desigualdade, o avanço do setor financeiro e o crescimento desses governos de ultradireita”. O senhor pode comentar?
Em julho agora [fui] chamado para uma reunião na Europa com 23 pessoas, tinha Harvard, Stanford, Oxford, London School of Economics, Paris, Sydney, Estocolmo. Pegaram a nata. Obviamente, também interessados no fenômeno Bolsonaro porque estavam estudando a loucura que é o governo da Polônia, o fundamentalismo religioso em um país que, em termos econômicos, ia bem, 16 anos de crescimento 4% ao ano. Você pega Erdogan na Turquia, pega Duterte nas Filipinas, pega na Argentina… a discussão básica era o seguinte: no que foi a democracia liberal não se atingiu os grandes interesses, mas se conseguia uma classe média razoavelmente à vontade, não se esquecia uma metade lá embaixo. Então, eu vejo muito uma ligação de uma base da sociedade que sabe perfeitamente que poderia ter uma clínica decente para a mulher dele parir, poderia ter uma escola decente pro filho, e que não está aceitando mais as coisas. E aí há uma rejeição da política, mas [ao mesmo tempo] você tem uma indústria de opinião pública que entendeu que é muito mais produtivo, em termos eleitorais, mobilizar o ódio do que discutir programas. A gente vem com discussões na cabeça e os outros vão para o estômago, para o fígado. Em uma das apresentações [na Europa], uma das pessoas dizia: “Quando você gera insegurança e desinformação na base da sociedade, isso muito rapidamente se transforma em ódio. Você vê que não há racionalidade política, nem na eleição do Trump, nem no Brexit, nem na Hungria, e é compreensível. Todos esses são eleitos como antipolítica, e curiosamente o denominador comum é a pátria, Jesus e a família. Só que isso foi transformado, hoje, em uma indústria de marketing político extremamente poderosa. Não é só o Cambridge Analytica, é o negócio que atinge um nível de manipulação em que não há legitimidade, porque nós não podemos dizer que o presidente eleito representa o país. Você não tem essa base que é o objetivo do artigo 1o [da Constituição]. Eu acho que é uma deformação fundamental no processo de ter reduzido a democracia ao fato de ter eleições. Isso não é democrático.
A democracia brasileira foi reduzida às eleições?
Para dar um exemplo, o sueco médio participa de quatro organizações comunitárias em seu país; da totalidade dos recursos públicos, uma carga tributária elevada a mais de 50%, 72% vão para o local. O governo central é pequeno, cuida de relações internacionais, políticas tecnológicas de longo prazo, coisas do gênero. A democracia é de rédea curta. Você tem regularmente reuniões da comunidade, consultas. Veja as consultas na Suíça. Então, você tem uma democracia no cotidiano. Não é o show eleitoral uma vez a cada quatro anos. Você tem que dar espaço para que os interesses da população se manifestem efetivamente. Estive três vezes na China – eles me chamaram para traduzir livros –, e a China é ainda mais descentralizada que a Suécia. O governo central é pequeno e com grande capacidade de força política de orientação geral. Cada cidade resolve-se através de um sistema muito complexo de consultas. O sistema brasileiro é centralizado. O dinheiro que chega aos municípios, que é de espaço de decisão dos municípios, é de cerca de 13%. Você vai ter um ministro com uma fila de prefeitos tentando conseguir alguma coisa na antessala. Depois ele vai ver o deputado da região pra ver se o cara usa a emenda parlamentar, que é assim um negócio de corrupção escandaloso, pra ver se o cara vai dar o quê pra ele? Um viaduto porque ele está interessado na empreiteira que financiou [sua campanha]. São 5.570 municípios diversificados, como o ministro vai saber do que [cada um] precisa? Em termos de função management é disfuncional. Pega Coreia, pega China, Alemanha, por exemplo. Na Alemanha, o sistema financeiro é local, caixa de poupança local. Você junta com o fato de que grande parte dos recursos federais é repassada diretamente para os municípios com as poupanças, que também servem ao município. Você tem uma coincidência entre a democracia econômica e a democracia política. E funciona. As pessoas se sentem donas do seu destino. Isso aqui não tem como funcionar.
Você falou que lá funciona porque a democracia econômica, a democracia política são descentralizadas e atendem aos municípios. E aqui é o contrário? As duas coisas são centralizadas, a parte com o sistema financeiro…
As duas coisas são centralizadas. Porque, se você não tem o acesso ao recurso financeiro, você é obrigado a ir buscar recursos, e, quando você é obrigado a ir buscar recursos no centro, você vai comer na mão de quem tem a grana. É um problema estrutural tamanho! Veja que nos Estados Unidos, durante muito tempo [a descentralização], funcionou. A riqueza dos Estados Unidos não é à toa. Os Estados Unidos eram extremamente descentralizados. Os bancos eram locais. Coisa que a gente via nos [filmes] bang-bang: todo mundo assalta um banco local. Um banquinho local ali, de qualquer parte do Texas, em que o cara tem as poupanças da população local e decide: “Não, vou aplicar lá em não sei onde”. A área financeira não é um setor, nem uma área. É uma dimensão que te permite decidir se você faz saúde ou abre uma estrada. Que dizer, você segura a decisão, o conjunto das decisões.
Nesse exato momento, está sendo discutida a questão do teto de gastos, que o senhor já criticou bastante. Como o teto de gastos brasileiro seria encarado nesses países que têm esse modelo democrático de que o senhor falou? Isso seria cabível?
Esse teto de gastos é visto como uma aberração jurídica. É um crime em termos sociais e é uma aberração econômica. Tem um negócio básico e simples de entender que é o seguinte: o país que funciona não precisa de cálculos complexos, prioriza o bem-estar da família. Você pega a China, o Canadá, a Alemanha, a Suécia. Esse é o eixo. Primeiro você assegura que, enquanto cresce a produtividade, você tem aumento de rendimento da população. E um sistema tributário que traz bastante dinheiro para baixo. Quando você aumenta a capacidade de compra das famílias – porque o grande pacto é o bem-estar das famílias, mas não só –, você aumenta o mercado das empresas. A empresa não precisa de discurso ideológico, precisa de mercado para quem vender e crédito barato para poder comprar as máquinas. No Brasil, não tem nem uma coisa nem outra. Hoje, no modelo atual. Mas, quando você tem essa dinâmica que parte do consumo das famílias, a ordem de grandeza é 60% da economia. Esse motor dinamiza as atividades empresariais, que geram mais emprego. Por exemplo, passamos de 12% de desemprego em 2002, baixamos para 4,8%, alguma coisa assim, em 2010. E você tem imposto sobre o consumo, gera receita para o Estado. No Brasil, as empresas vão trabalhando com 65%, 70% da capacidade, você tem aí uma imensa capacidade ociosa. Então não gera inflação. Porque, quando você tem demanda, você tem imediatamente a resposta. Você gerou receita sobre a produção para o Estado e receita sobre o consumo, a conta fecha. Se você olha a conta pública, em nenhum desses anos que o Banco Mundial chamou de “Golden Decade” tem déficit. Você tem, pelo contrário, superávit. O superávit, por sua vez, permite uma outra dinâmica, que é o Estado – aqui é mais ou menos um terço da economia que o Estado financia – [financiar] o consumo público, que a gente chama de salário indireto: SUS, educação, as universidades federais etc. Melhora muito o bem-estar das famílias; portanto, ele se soma com aquele negócio da renda. E do outro lado você tem como financiar infraestrutura, que melhora a produtividade das empresas. Então, o sistema que funciona é isso aí. Aqui o pessoal entende pouco, ou não quer entender, fala sempre de como estão os preços das commodities. O fato é que, com um país do tamanho do Brasil, que exporta 200 bilhões, isso [exportação de commodities], aqui, é uma merreca. Dá 11% do PIB; 89% do PIB no Brasil é mercado interno. Então, [a exportação de commodities] ajuda, mas não é decisivo. Por que funcionou durante a tal da Golden Decade? Porque isso funciona. Funciona na China, funciona na Coreia, funciona em Taiwan, com diversidade política profunda, mas a mecânica é essa. Aqui se enforcou as famílias basicamente pelo endividamento. Se enforcou as empresas pelo endividamento. Eu tive uma conversa com o Lula e ele dizia: “Não, Ladislau, a empresa vai entrar no rotativo do cartão?”. Bom, não soube responder, eu ia chutar. Voltei pra casa, olhei, consultei no Banco Central como entra o rotativo do cartão pagando, na época, 485%. Aqui não funciona. Quando o [Benjamin] Steinbruch vem pro Estadão e escreve ali “não dá pra fazer funcionar uma economia pagando 300% [de juros].
Por que você põe um teto de gastos? Para manter o fluxo da parte dos impostos que é transferida para os bancos. Juros sobre a dívida pública. Que chegou, por exemplo, em 2015, a R$ 500 bilhões. Lembre que o Bolsa Família, que tirou 56 milhões de pessoas do buraco, custa R$ 30 bi. Agora, claro, você tem que somar as outras coisas. A evasão fiscal está na parte de R$ 600 bi. Isso dá 20 [programas] Bolsa Família. O dinheiro lá fora, o tal dos US$ 520 bilhões, dá R$ 2 trilhões, dá um terço do PIB quase, 30%. Isso aqui é aritmética, não tem mistério nenhum. Não tem ideologia nenhuma. Eu fiz esse cálculo para vários países pela ONU. Você tem grandes títulos nos jornais: “Os juros subiram”. Que juros? [A taxa] de juros básica é completamente diferente da [taxa] de juros que você vai cobrar das famílias, que você vai cobrar dos crediários.
No seu trabalho, você fala justamente desse setor financeiro drenando cada vez mais o Estado, as famílias e as empresas. Quem exatamente ganha com isso e por que você chamaria de capital improdutivo?
A chave é o seguinte: o PIB mundial aumenta em média 2,5% ao ano porque tem que produzir bens e serviço, dá trabalho. O rendimento financeiro nos últimos 20 anos está entre 7% e 9%. Onde o cara vai colocar o seu dinheiro? Você vê a quantidade de empresas industriais e pode ter um diretor de produção no conselho de administração que diz: “Vamos comprar máquinas e abrir mais não sei o quê”, e o diretor financeiro diz: “Meu amigo, vamos ganhar dinheiro? Comprar título do governo?”. Quando se torna mais interessante para os agentes econômicos fazer aplicações financeiras do que investir, você tem um problema.
Na realidade, o que está acontecendo no planeta é o seguinte: o dinheiro, a partir dos anos 1990, deixa de ser uma coisa que você imprime e passa a ser uma coisa que o banco emite – qualquer banco privado emite dinheiro. E com alavancagem podem emitir muito mais do que têm em reservas. Quando o dinheiro vira apenas o sinal magnético que gira na velocidade da luz, as capacidades de controle do governo e o Banco Central, de um Ministério da Fazenda e coisa do gênero ficam extremamente limitadas.
A gente está com nove meses de governo Bolsonaro, de Posto Ipiranga, no caso, o Paulo Guedes. Como o senhor caracterizaria a política econômica do governo Bolsonaro?
Você tem um sistema que hoje está funcionando dessa maneira em muitos países, o que a gente chama de financeirização. Não é só o Brasil. Mas no Brasil atingiu um nível grotesco. Na realidade, essa política consiste essencialmente em favorecer os grandes grupos financeiros, os bancos, as pessoas que têm grandes aplicações financeiras. Nós somos acostumados a pensar a desigualdade e a exploração através da exploração salarial – o que todo mundo leu –, mais-valia etc. Agora, à medida que foi se passando dinheiro – 2004, 2005, 2006 – para o andar de baixo, eles foram aumentando as taxas de juros e chupando isso de volta. Então, você tem um sistema de exploração, através do endividamento e através de taxas de juros, que vai atingir justamente as famílias, as empresas e o Estado. Eu vejo a crise, a mudança radical das políticas a partir de 2014, e não a partir de 2016. Portanto, são cinco anos de uma política que “estão consertando”. Eu não vejo descontinuidade entre Temer e Bolsonaro; é uma descontinuidade política, no sentido de tipo de discurso, mas veja que interessante: o Temer governa dois anos fazendo teto de gastos, fazendo um monte de coisas pavorosas para o futuro do país, e não teve nenhum problema de governar com 4% de apoio. Ou seja, a máquina superior, que pega um segmento desse Congresso, um segmento do Judiciário, o apoio da mídia e o apoio dessa classe média alta e classes dirigentes, que essencialmente vivem de rentismo financeiro, tem uma força que o apoio popular… O Temer governou dois anos com 4% de apoio.
O senhor está dizendo que o sistema financeiro era o que segurava o Temer no poder?
Sem dúvida.
Quem era o principal interessado em medidas como o teto de gastos?
Em 2015, dos impostos que a gente pagou para o Estado, R$ 500 bilhões foram essencialmente juros pagos sobre a dívida pública. Para você transferir tanto dinheiro público para os interesses financeiros, você não pode ao mesmo tempo financiar o SUS. Então você faz o teto de gastos. Você está trancando um conjunto de gastos porque você tem que satisfazer [o setor financeiro]… Aí você vai ver os detentores da dívida. Essencialmente os bancos, mas nunca é só o banco, porque eu conversei com gente de classe média ou classe média alta que diz: “Meu, mas eu tenho dinheiro aplicado. Se baixar os juros, eu tô ferrado”. Por que você divide a sociedade, não só quem é patrão, burguês ou quem é operário, enfim, a visão século 19 ou 20 ou o que seja. Mas você tem a parte da sociedade que tem interesse em juros altos, porque ganha sobre o dinheiro, e a parte que está ferrada com os juros altos. Então, isso envolve não só os bancos, mas os grandes aplicadores financeiros, inclusive os fundos de pensão. A diferença básica é que o rico tem dinheiro aplicado, e esse dinheiro rende e a fortuna dele se multiplica. O pobre não consegue fechar o mês e, em geral, está endividado. Essa política gera uma transferência de uma massa de recursos de 1 trilhão; 1 trilhão de reais dá 16% do PIB. Eu acrescento 6% do PIB, que é juros sobre a dívida pública, dá 22%. O que nesse sistema financeiro retorna à economia real é de 10%. É uma economia que está vazando e você tem um desestímulo à produção. Eu vi recentemente a citação de um empresário importante, não lembro o nome: “Tá certo que tá mais barato eu contratar, mas para que eu vou contratar se eu não tenho para quem vender?”. Simples assim.
O economista Ladislau Dowbor foi escolhido pelos Aliados da Pública para a Entrevista do Mês. (Foto: José Cícero da Silva/Agência Pública)
O senhor pode falar mais das medidas tomadas até aqui pelo governo Bolsonaro?
A lógica básica dos mais variados projetos que eu acompanhei – eu também não estou assim pendurado nas últimas besteiras que fazem – é essa. Você segue o dinheiro. No Brasil, dezenas de milhões já pagaram três, quatro vezes a dívida e continuam ferrados, [o banco] continua mamando. Zygmunt Bauman escreve: “O banco detesta bom pagador”. Bom é ter um cara que está ferrado e que está passando 25%, 30% do seu salário todo mês para o banco, gerando uma dívida que não acaba. Você pega a Inglaterra, por exemplo, que fez uma lei antiagiotagem em janeiro de 2015 que [determina] que de ninguém se pode exigir pagar mais do dobro daquilo que pegou [de empréstimo]. O cara pegou mil libras, pagou as mil libras, mas tem os juros e porque atrasou tem uma multa… pode, mas chegou a 2 mil está liberado.
E o senhor defende que esse endividamento da população está nas raízes da crise econômica, certo? Por causa das famílias endividadas, o consumo cai e isso gera a crise econômica que a gente observou no Brasil nos últimos anos.
Isso aprofunda. Em março de 2003, o estoque de juro de dívida das famílias era tipo 18%, ou seja, 18% da renda era a dívida que eles tinham. Quando você chega a 2012, está passando de 40%. Durante os governos Lula e Dilma, há um aumento sistemático das diversas formas de recuperação do dinheiro transferido [para as camadas mais pobres] através do cartão de crédito, através dos juros sobre os crediários, através das diversas formas de juros. Então, isso foi paralisando a economia. O Guido Mantega é um cara extremamente competente, não é nenhuma besta, e fez o negócio funcionar. O drama foi político; na realidade, porque quando, em 2012, o [endividamento das famílias] começa a travar a economia, o que faz a Dilma? A Dilma vai pra luta. Baixa a taxa Selic, vai pra 7,5%. Baixa os juros no Banco do Brasil, na Caixa Econômica Federal. E há uma migração [para os bancos públicos]. Você entrou em guerra com um setor que tava mamando que é uma beleza. E ela não tinha força política correspondente porque não é só o banco, é também os que estavam [lucrando], a classe média alta – e esses juízes têm gordura grande, também estão ganhando com isso [dívida pública]. Então, para eles, ela está quebrando a economia.
Você acha que é isso [enfrentar os bancos] que fez a Dilma cair?
Não tenho nem dúvida. Ela baixa esses juros de 2012 para 2013. Em junho, você tem as gigantescas manifestações. Ela é reeleita em 2014, como eles disseram, “pode ser reeleita, mas não vai governar”. E não governou.
E a partir daí ela toma medidas para tentar agradar a esses setores?
Exatamente. Ela tenta… porque é uma relação de força. Você, presidente, não tem controle do Congresso, não tem o controle da mídia, não tem o controle do Judiciário. Você tem um segmento do Executivo, porque no próprio Executivo, para você fazer alguma coisa no Congresso, você tem que ter nomeado gente das diversas áreas. Então, se tivesse uma mídia forte, uma BBC ou um New York Times da vida, você tinha uma força explicativa na sociedade.
Teve erros de trajetória econômica?
Olha, eu acho que a derrubada vai por partes, porque é um processo. Começa em 2013 e termina em 2016, ou seja, é um negócio longo. Tem o processo de manifestações, boicotes, um conjunto de travamentos por toda parte. Você tem a Lava Jato, que desestrutura uma série de atividades econômicas, em particular as infraestruturas. Você tem a Odebrecht. Eu aprecio muito os trabalhos do Jessé [Souza] quando ele pega a dimensão, digamos subjetiva, de geração do ódio, das madames que se sentem indignadas – de repente elas têm que registrar a empregada. É um negócio importante, o Brasil tem esses 7 milhões de empregadas domésticas. Toda essa classe média brasileira está educada em um sistema assim. A herança, o sentimento de superioridade, isso é muito forte… Claro que, quando você atinge um bolso do pessoal que tava mamando sem produzir, você abriu a porteira. Mas todo o sistema, inclusive, hoje, a indústria da opinião pública, navega nisso.
O senhor está falando da opinião pública e eu queria pegar um tópico que tem a ver com a questão das privatizações, porque na época do Fernando Henrique Cardoso era um debate público muito forte, e isso também aparece nos governos Lula. O privatista e o não privatista. Como isso é retomado no governo do Bolsonaro?
Nós somos sociedades complexas demais para ter um esquemão: sou de direita, privatizo; sou de esquerda, estatizo. Você dizer: “O Estado é corrupto, portanto, vamos pôr nas mãos privadas”. [Mas] quando você está transferindo bens públicos a um preço que é mais ou menos equivalente a um lucro de um ano, quando você coloca em mãos privadas empresas lucrativas ou estratégicas para um futuro tecnológico, como a Embraer, isso é bandidagem pura. Isso é acordo para favorecer os lucros. Não tem outra explicação possível. Eu trabalho há um tempo, junto com Ignacy Sachs, com o conceito de economia mista. Lembro que ele trabalhava na Nicarágua, que estatizou os bens do Somoza depois da derrubada da ditadura, e cortava cabelo porque o Somoza era dono de salões de beleza, barbearias. Você não fica mais socialista porque tem um funcionário público que está te cortando o cabelo. Na realidade, é bom senso. O sistema privado funciona onde você tem muitos produtores e tem concorrência de mercado. Mas não vai funcionar para grandes setores como saúde, como educação, onde você não tem o que [Joseph] Stiglitz chamou assimetria de informação. Um médico me diz: “Olha, tem que operar esse menino. Eu recomendaria tal médico, só que ele cobra por fora”. O que você faz? Você raspa a gaveta e paga. Usar “mercado” para essas áreas é besteira.
São setores essenciais que o mercado não deveria mediar, né?
Exatamente. Saúde, infraestruturas e, no mínimo, o equilíbrio, um sistema misto nas áreas da intermediação. Já educação é pública, universal, gratuita. Não tem como. É olhar os avanços da Coreia do Sul, um milagre. As transformações do Japão a partir de 1868: ele sai do sistema feudal em 1868 e em 1900 não tem mais analfabeto. No mundo, o investimento na educação é investimento. Aqui, é gasto.
Por falar em educação, no seu livro o senhor fala de algumas capturas do sistema financeiro: da captura da mídia, captura da Justiça, captura da opinião pública e captura da produção acadêmica através dos sistemas de financiamentos. Você poderia explicar um pouco melhor como funciona isso?
Hoje, nós temos pesquisas internacionais muito fortes sobre sistema. Nos Estados Unidos, são 15 mil cientistas que se recusam a publicar em revistas indexadas dos grandes grupos, do oligopólio mundial da academia. O ponto básico é o seguinte: o conhecimento se tornou o principal fator de produção. Meu celular pode ter 5% de trabalho físico e matéria-prima. O valor dele é conhecimento incorporado. A partir dos trabalhos do [Jeremy] Rifkin, a gente entendeu a que ponto isso transforma o planeta. Porque no século passado, era industrial, se eu te passo o meu relógio, eu deixo de ter um relógio. Agora, se eu te passo uma ideia, eu continuo com ela. Um exemplo prosaico é quando a Pastoral da Criança desenvolve o soro fisiológico, sobretudo para crianças desnutridas, que salvou milhões de crianças. Não patentearam. Está sendo usado em Angola, em Moçambique, por um monte de lugares, porque o conhecimento pode se espraiar sem tirar pedaço de quem o produziu. Estou desviando da sua pergunta, que é…
Para Dowbor, a Lava Jato desestrutura as atividades econômicas do país. (Foto: José Cícero da Silva/Agência Pública)
Justamente sobre a captura da academia.
A produção científica gerou uma indústria, não só a indústria do diploma, mas gerou uma indústria do controle do conhecimento em que você está controlando não a educação, mas o núcleo da atividade econômica, que é o acesso ao conhecimento. Quando você tem a Economist fazendo um artigo de fundo dizendo que o sistema de patentes não mais favorece o progresso científico, mas o trava; quando você tem [Joseph] Stiglitz escrevendo a mesma coisa… Porque é assim. A motivação de um cara – pega o Pasteur, o gigantesco avanço nas vacinas que ele permitiu – não era quanto ele ia ganhar. Não funciona assim. A pesquisa vem do setor público, e não só usam isso como patenteiam e, ainda por cima, não pagam impostos.
Mas isso que o senhor está falando tem a ver com a lógica do lucro. Todo esse sistema é voltado para a lógica do lucro, que não pensa coletivamente, enquanto o senhor fala em colaboração. O senhor é pessimista?
Não. Eu não sou pessimista. Para você entender melhor. Numa entrevista na TV, junto com o Ignacy Sachs, apresentando essas imagens, a moça disse: “Mas isso é uma visão pessimista”. O Sachs saiu com uma pérola. Ele disse: “Minha amiga, o pessimista é um otimista bem informado”. Na realidade, eu tenho uma amplitude de informação que se deve em parte pelas línguas, em parte por ter trabalhado em organizações internacionais e em parte por ter trabalhado na Ásia, na África, na Europa, na América Latina. Tem uma certa diversidade. E eu acompanho os dados que a gente chama de megatrends. A expressão francesa é muito forte, chama tendance lourde, uma tendência que tem inércia muito grande. Então, por exemplo, a gente pode se saracotear, fazer o que quiser sobre o clima, mas 2050 está dado porque é uma tendência. A tendência demográfica? 2050 está dado. Claro que a gente vai poder variar, um pouco mais, um pouco menos. À medida que você se distancia, a precisão diminui mais. Mas, se eu pego a mudança climática, a acidificação dos oceanos, a liquidação da cobertura florestal, a perda de solo fértil, a contaminação da água doce, a perda de excesso de água doce, o derretimento das geleiras do Himalaia, que alimentam a produção de cereais da maior concentração de população do mundo… E se eu vou pegando, de um lado, a dimensão ambiental e, do outro, a dimensão social, você tem uma volta ao distanciamento da desigualdade que está gerando outro conjunto de danos, e cada vez menos sustentável. Nós estamos indo, em termos de ritmo histórico, de maneira extremamente acelerada para um desastre. Nós estamos fazendo funcionar a economia destruindo a natureza para o proveito de uma minoria. Não funciona nem para a população nem para a natureza. Isso aqui já era. O [papa] Francisco não é besta, porque ele chama o Stiglitz [Joseph, Nobel de Economia], chama gente de primeira linha mundial, para repensar a economia. Chamou de Economia de Francisco. Eu fiz um primeiro documentinho de proposta.
O senhor pode explicar isso melhor?
O papa fez um chamado mundial dizendo que a economia destrói o meio ambiente, gera miséria, não está funcionando; enfim, e não só, nós temos que mudar o conceito de economia. Ele chamou uma reunião de 26 a 28 de março do ano que vem em Assis, porque é são Francisco de Assis, e chamou isso de Economia de Francisco. Não dele, mas de são Francisco. Ele está apelando para o mundo se interessar e trazer aportes para essa reunião. Nós temos uma rede, no Brasil todo, discutindo o que seria uma outra economia. Tem gente de diversas universidades, diversos movimentos sociais. Nessa semana ou na semana que vem, vamos ter um blog para o movimento. Esse papa é muito esperto. Ele pegou um negócio que é de uma evidência… Não está funcionando, gente.
Quer dizer que o papa quer peitar os grandes grupos financeiros mundiais. É isso, professor?
Você viu a tomada de posição dos 181 grupos mundiais? É interessante. Basicamente, são presidentes de 181 empresas de primeira linha mundial – Amazon, JP Morgan, Chase, Johnson & Johnson, Apple – que assinam o texto de cinco parágrafos dizendo que eles estão abandonando o conceito básico de neoliberalismo, ou seja, a visão do Milton Friedman de que a empresa tem que gerar lucros para os acionistas e que essa é a missão. A missão é essa também, mas, a longo prazo, uma visão construtiva da base produtiva tem que respeitar a dimensão ambiental, a dimensão social. Inclusive dos fornecedores das empresas. Interessante, mas a gente tem uma certa prudência de ficar aplaudindo. Vocês viram a multa da Johnson & Johnson? US$ 272 bilhões por venda de opióides. Isso é uma barbárie. Só nos Estados Unidos, o que a Johnson & Johnson está vendendo causou 400 mil mortes.
Eu tenho uma última questão, sobre a economia da uberização, dos aplicativos. Esse formato que me parece muito mais predatório do que outros formatos de exploração trabalhista. Como o senhor vê esse movimento da uberização?
Eu não trabalho com o conceito de indústria 4.0. Acho que é uma bobagem. A mudança é muito mais profunda. Nós tivemos uma era muito longa em que a humanidade dependia da agricultura, feudalismo, escravidão. Tivemos dois séculos de indústria em que o principal era a fábrica, a máquina etc. Propriedade privada, bem físicos. E temos agora um sistema completamente diferente em que o principal fator é o conhecimento, não mais a máquina. O conhecimento eu compartilho. Ou seja, a propriedade privada, que é a base do capitalismo, deixa de ser essencial. Isso aqui está indo pra outro modo de produção, as relações de trabalho estão mudando. [Na uberização] é um cara que só é remunerado quando aparece uma tarefa. O Robert Reich, que foi ministro do Trabalho do Clinton, escreveu um livro que chama O futuro do sucesso. Está traduzido. E ele basicamente traz a ideia seguinte: a relação de emprego terá durado 150 anos e está indo embora. Então, você tem as diversas dimensões. Quando a economia passa a ser um sistema não baseado em indústrias, em máquinas, operários em volta, mas em plataformas de gestão, elas se transformam no que a gente chama de monopólios de demanda. Não adianta você fazer um uberzinho porque só funciona quando todos usam aquele mesmo [aplicativo]. Não adianta dizer: “Não gosto do x, vou fazer outra coisa”, porque ninguém usa. Sou obrigado a usar o que os outros usam. Esse capitalismo de plataforma está transformando radicalmente porque permite que você cobre, por exemplo, R$ 30 ao mês de 800 milhões de pessoas pelo mundo afora – a economia baseada em plataformas, em exploração por tarefas e com imensa capacidade microexploração de milhões de pessoas. Isso gera uma outra dinâmica. Claro, como tem a exploração, a gente chama de capitalismo. A forma de exploração se desloca do salário para sistemas, porque o dinheiro também se torna imaterial. O André Gorz publicou um livro muito interessante que chama O imaterial. A economia imaterial, a economia baseada em conhecimento, na conectividade imediata planetária. Possibilidade de controle de todas as pessoas, individualizadas por algoritmos. O que está se gerando – e ninguém tem garantia que vai ser melhor – pode ser um negócio monstruoso. Mas como o principal fator de produção é um fator de produção cujo uso não reduz o estoque, pelo contrário, multiplica, também abre para uma sociedade colaborativa planetária. Claro que a gente não tem a mínima ideia de como vai ser estruturado.
Uma última pergunta, que tem um pouco a ver com a questão que você falou, de certa maneira, da captura do Judiciário. Mais especificamente, eu queria saber a opinião do senhor sobre a Lava Jato no sentido dessa disputa de capital produtivo e capital improdutivo. Da maneira que ela lidou, por exemplo, com os bancos e da maneira que ela lidou com as construtoras.
Eu vejo a Lava Jato essencialmente como uma alavanca política. Você combater a corrupção é uma coisa. Você usar politicamente a corrupção… Eu vi isso com Vargas, vi isso com Goulart. Eu vi isso em carradas de países. A única diferença da Odebrecht relativamente à Halliburton, ou qualquer uma das grandes construtoras mundiais, é a porcentagem que se põe no bolso. O problema do conceito de Lava Jato é que você persegue os corruptos, você não desestrutura a corrupção. A gente sabe perfeitamente como se acaba com a corrupção. É transparência. Quando você prende um corrupto e mostra na TV, você tem uma catarse da nação – “Pegamos o corrupto!” –, e o uso disso é profundamente perigoso. A gente sabe perfeitamente como reduzir drasticamente a corrupção. Por que a Dilma fez a Lei da Transparência em 2011, que abriu, inclusive, possibilidade que estão sendo usadas? Se você obriga os bancos a darem transparência sobre as suas transações, se você abre os computadores do sistema público – o que legalmente é absolutamente viável hoje por essa lei –, você tem como restringir radicalmente. Sempre vai ter a pequena corrupção. O cara que vai soltar uma grana porque queimou o farol e o policial… Agora, a grande grana é conhecida pelos bancos e é conhecida pelo andar de cima. A informática permite você identificar os fluxos de corrupção significativa. Como você tem um ministro que foi cofundador do Banco Pactual? O Banco Pactual tem 38 filiais em paraísos fiscais. O que é dinheiro em paraíso fiscal? Dinheiro de corrupção, de evasão fiscal e de lavagem de dinheiro, de droga ou do que seja. O Global Financial Integrity calculou quanto tem de prejuízo para o Brasil nas fraudes de notas fiscais de exportação. Dos anos 2011, 2012 e 2013, dá uma média de US$ 35 bilhões por ano. Dá mais ou menos R$ 140 bilhões e praticamente cinco Bolsa Família. O Tax Justice Network consegue ter os dados do nosso dinheiro lá fora. O Global Financial Integrity consegue saber quanto tem que… e aqui o Judiciário não consegue?
Na realidade, eu não tenho nenhum dado que corrobore isso, mas na lógica como funcionam as coisas. É óbvio que a Halliburton, que está muito presente aqui no Brasil, está imensamente interessada na desestruturação da Odebrecht. A Halliburton é o grupo que empurrou os Estados Unidos para a Guerra no Iraque. Herdou praticamente todos os contratos de reconstrução. Dizer de repente: “Uh, Odebrecht. Meu Deus, são corruptos”. Escrevi um livro em 1998, A reprodução social, em que mostro como funciona a corrupção das empreiteiras. Não há nada de novo nesse processo. Quando você transforma isso na campanha anti-PT para prender o Lula e coisa do gênero, mais ninguém no mundo acredita. Eu conheço suficientemente o Lula para saber que ele dá muito mais importância a si mesmo do que a uma grana no bolso. Não é todo país que tem o Lula.
O senhor chegou a visitar o Lula na prisão?
Não visitei. Eu participava de reuniões com economistas, coisa do gênero. Sempre houve no próprio PT dificuldade de entender a exploração através da taxa de juros. É curioso isso. As pessoas têm dificuldade de entender como funciona a taxa de juros. Nós temos um problema de cultura porque no Brasil nunca ninguém teve aula de como funciona a moeda. Agora, a incompreensão é agravada pelo fato que apresentam juro ao mês. Juro ao mês não existe. Ninguém consegue fazer um cálculo com juros composto. Até o meu irmão que estudou politécnica acha que juros de 2% ao mês dá 24% ao ano. Eu sei fazer o cálculo certo. O cara que vai nas Casas Bahia fazer aquela compra do fogão. O fogão de R$ 420 à vista [sai por] R$ 840 a prazo. Saiu da fábrica a R$ 200, puseram 40% de imposto, vai pra R$ 280. Mesmo vendendo à vista, ganha um dinheirinho, mas na prática, pelo fogão que sai a R$ 200 na fábrica, a população paga R$ 840. É uma economia dos intermediários. Que não funciona.
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“Estamos destruindo a natureza para o proveito de uma minoria”, diz Dowbor - Instituto Humanitas Unisinos - IHU