13 Setembro 2019
Soluções já existem: tecnologias que monitoram queimadas, legislação que pune contraventores e avançada política ambiental. Na contramão de resolver problema, Bolsonaro corta recursos para fiscalização e toma seu lado: o dos devastadores
O artigo é de Alessandra Cardoso, assessora na área ambiental do Inesc, mestra em desenvolvimento econômico pela Universidade Federal de Uberlândia e doutoranda em economia aplicada – desenvolvimento e meio ambiente pela Unicamp, publicado por Outras Palavras, 11-09-2019.
O mês de agosto de 2019 possivelmente ficará marcado pelas imagens da floresta amazônica ardendo em chamas. Aos dados que anunciavam o aumento das queimadas somaram-se um turbilhão de eventos críticos: a desqualificação do trabalho do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe) pelo governo; os efeitos colaterais da fumaça sentidos no centro nevrálgico do país; os insistentes, irresponsáveis e vexaminosos comentários do presidente; a comoção nas redes sociais; e a repercussão internacional, incluindo ameaça de boicote seguida de anúncios transfronteiriços de ajuda financeira e até de intervenção.
Diante desse quadro, não tem sido fácil ordenar o pensamento e a reflexão sobre como chegamos até aqui e como o país deveria enfrentar o problema das queimadas e do desmatamento na Amazônia brasileira. Esta breve reflexão busca ordenar alguns dos elementos que nos parecem centrais para reforçar (porque elas já estão, em grande parte, mapeadas) as medidas urgentes que deveriam ser tomadas para frear a intensificação do desmatamento e das queimadas na região.
É sabido que o problema tem recorrência sazonal, mas tem raízes estruturais que são mais objetivamente identificadas como “vetores do desmatamento”: atividades pecuárias, o avanço da produção do agronegócio, em especial da soja e milho, os investimentos em infraestrutura, a exploração madeireira, a grilagem de terras.
Este diagnóstico, que é oficial, não é recente. Ele tem sido construído por vários ministérios, com escuta a especialistas, desde 2003, quando em junho daquele ano o Inpe divulgou dados relativos ao desmatamento na Amazônia Legal. De acordo com o Instituto, no período de 31 de julho de 2001 a 1 de agosto de 2002, o desmatamento cresceu 40% em relação ao ano anterior.
Originou-se daí o “Plano de Ação para Prevenção e Controle do Desmatamento na Amazônia Legal (PPCDAm)” que, com avanços e solavancos, vem sendo executado desde 2003, chegando em 2019 à beira da morte por inanição. Especialistas convergem na avaliação de que o Plano foi fundamental para a redução do desmatamento na Amazônia, principalmente por meio da expansão das áreas protegidas (Unidades de Conservação e Terras Indígenas) e da implementação do sistema de monitoramento por satélite (Sistema Deter), juntamente com ações de fiscalização, conhecidas como medidas de comando e controle[1].
Muita coisa deu errado para que, de novo, chegássemos a dados alarmantes que serviram para nos mostrar que a floresta ainda arde em chamas, e agora ainda mais, pois que elas são alimentadas pelo combustível da insanidade e do crime.
Mas a história recente também nos mostra o que deu certo e aponta questões que estão no cerne do problema das queimadas e que dependem do Estado brasileiro, de políticas públicas e de orçamento – sem prejuízo da ajuda financeira e do aprendizado gerado por décadas de ação em parceria com a cooperação internacional.
Os estudos e dados fartamente disponíveis também apontam que pode ser efetivo, em prol da melhor percepção das saídas, segmentar o problema do desmatamento e das queimadas por distintas formas de uso e ocupação do solo.
As áreas privadas são regidas pelo Código Florestal; as Terras Indígenas e Unidades de Conservação fazem parte das Áreas Protegidas e possuem marcos legais distintos; os assentamentos de várias modalidades, as terras quilombolas, e as comunidades ribeirinhas, por sua vez, também possuem outros marcos legais que lhes são próprios. Por fim, existem áreas que são de domínio público, mas que não foram destinadas, quer dizer, não são nem privadas nem de domínio coletivo. Todas estas distintas formas de titularidade, posse ou relação com a terra, ainda estão em permanente conflito, pois a situação fundiária na Amazônia segue sendo em grande medida não resolvida.
Sem a pretensão de explorar cada uma destas distintas formas de posse e uso, e sua complexa relação com o controle do desmatamento e das queimadas, apontamos aqui alguns elementos que podem contribuir com este debate.
Uma forma efetiva de coibir o desmatamento e as queimadas em áreas de propriedade privada seria “aplicar multa como a de radar de trânsito a desmatadores”. Esta saída foi apresentada por Tasso Azevedo, idealizador do projeto MapBiomas, em entrevista à Folha de São Paulo. Vale aqui reforçar o ponto.
Trata-se de utilizar o Cadastro Ambiental Rural (CAR) [2], criado a partir de 2012 com a aprovação do Novo Código Florestal (Lei 12.651/2012), e cruzá-los com os dados de monitoramento da cobertura florestal gerados por satélites, que identificam alertas de desmate e focos de calor. Segundo Azevedo, o Brasil gerou no ano passado 150 mil alertas entre os três principais sistemas que operam: o Deter, do Inpe; o SAD, do Imazon, e o Glad, da Universidade de Maryland.
Se fosse utilizado o cruzamento informatizado, com os dados existentes, o governo conseguiria saber em qual propriedade aconteceu o desmatamento e o foco de queimada. Mais ainda, saberia se isto aconteceu em área de Reserva Legal (RL) e Área de Preservação Permanente (APP) e, portanto, se configura ação ilegal, dado que estas áreas não podem ser desmatadas. No caso das queimadas, saberia se a ação foi legal ou não, já que em poucos casos a legislação permite o emprego do fogo com base na “queima controlada”.
Feito isto, segundo o pesquisador, o governo seria capaz de enviar uma multa para o proprietário da área, tão simples como hoje recebemos uma multa ao furar um sinal ou ultrapassar a velocidade em uma via monitorada por radar.
Mais ainda, se fosse tornado público o detentor do CAR, com nome e RG, coisa que hoje não é, qualquer interessado – e todos somos interessados, porque a floresta não deveria ser um bem privado – poderia saber quem são os responsáveis pelo crime ambiental, que também é um crime contra a humanidade.
O primeiro ponto a considerar é que o atual governo tem como uma das suas pautas acabar com o que chama de “indústria da multa”. Na prática, é o mesmo que dizer que ele próprio não cumprirá a lei que estabelece medidas de comando e controle para combater atos ilegais contra o meio ambiente.
Embora seu alvo predileto seja o Ibama, a birra contra instrumentos de controle vai além. Vale lembrar que Bolsonaro já suspendeu o uso de radares móveis em rodovias federais. Ou seja, a solução que legal e tecnologicamente poderia ser adotada hoje encontra resistência pessoal, talvez psicológica, no chefe de governo.
Mas a possibilidade de ser implementada tal solução esbarra, também, em forças econômicas e políticas nada desprezíveis.
O Novo Código Florestal de 2012, sob forte pressão e mobilização dos ruralistas, flexibilizou bastante a punição contra o desmatamento ilegal ocorrido no passado e reduziu as áreas de propriedade rurais que deveriam ser preservadas, ou seja, não desmatadas – as Reservas Legais (RL) e Áreas de Preservação Permanente (APP).
Apesar de tudo, o CAR foi um ganho considerável deste Novo Código Florestal que inovou e ampliou os instrumentos para que as áreas privadas pudessem ser controladas pelo Estado.
Faz parte do CAR a inclusão de coordenadas georreferenciadas, não só das bordas da propriedade, mas de toda a área e com identificação de áreas de RL e APPs, exatamente para que o Estado, por meio do Ibama, possa “monitorar a manutenção, a recomposição, a regeneração, a compensação e a supressão da vegetação nativa e da cobertura vegetal nas áreas de Preservação Permanente, de Uso Restrito, e de Reserva Legal, no interior dos imóveis rurais”[3].
A questão, em síntese, e mesmo que em prejuízo das nuances, é que segmentos dos proprietários rurais, em especial dos grandes proprietários que detêm poder no Congresso Nacional, resistem a este controle porque querem ser senhores soberanos de suas terras, muitas delas griladas. Não é por acaso que o Serviço Florestal Brasileiro (SFB), responsável pela operacionalização do CAR, passou a ser controlado pelo Ministério da Agricultura.
E como o atual governo age para mostrar que os ruralistas mandam no Brasil, ele já editou uma Medida Provisória MP 884 de 2019, que tramita em Comissão Especial, para acabar com o prazo para inscrição no Cadastro Ambiental Rural.
Disso se deduz que não se aplicam as soluções disponíveis, como a sugerida pelo pesquisador, porque não existe vontade política, pelo contrário, a vontade política vocalizada pelo chefe de governo é a de que a “indústria da multa” pode ser contestada na prática e pelo fogo.
É nesse caldo perigoso, onde o Estado flerta com o crime organizado, que veio a público a notícia assustadora de que grupos se organizaram para ações de queimada coordenadas, chamada “Dia do Fogo”. A ação buscaria, segundo consta em matéria publicada em site jornalístico do município de Novo Progresso (PA) “mostrar para o Presidente que queremos trabalhar e único jeito é derrubando e para formar e limpar nossas pastagens é com fogo”.
Embora dados e tecnologias sejam fundamentais para identificar responsabilidades, não é possível controlar o desmatamento e as queimadas sem a fiscalização in loco, em especial nas extensas áreas de domínio não privado na Amazônia, incluindo aí as Áreas Protegidas (Unidades de Conservação e as Terras Indígenas), os Assentamentos de Reforma Agrária, em suas várias formas, os territórios quilombolas e de comunidades tradicionais, as áreas não designadas ou não destinadas. Somente estas últimas somam 70 milhões de hectares na região.
E tão importante quanto a fiscalização, titulação e políticas públicas de gestão destas áreas são os caminhos insistentemente apontados como solução para o problema, mas que nunca foram efetivamente executados.
No caso das áreas protegidas é sabido que representaram a política mais efetiva de combate ao desmatamento e às queimadas desde 2004 e foram parte importante do sucesso do PPCDAM, pelo menos até 2010, quando se intensificaram as pressões sobre estas regiões, motivadas por distintos interesses.
O fato é que as Áreas Protegidas e outras áreas de ocupação não privadas para serem de fato protegidas precisariam:
1) no caso das UCs, da resolução do problema fundiário, por meio da desconstituição da propriedade privada ou posse dentro destas áreas, para que elas pudessem ser protegidas como áreas públicas;
2) no caso das Terras Indígenas, da desinstrusão, que é a medida legal tomada para concretizar a posse efetiva da terra indígena a um povo;
3) de políticas públicas robustas para a fiscalização das Unidades de Conservação, das Terras Indígenas, dos territórios coletivos, das áreas não destinadas;
4) de políticas públicas de gestão ambiental, etnoambiental e de fortalecimento de iniciativas econômicas que respeitassem e valorizassem os modos de vida e a cultura das populações locais.
Em síntese, não se resolve o problema do desmatamento e das queimadas na Amazônia sem enfrentar o problema da fragilidade das políticas que garantiram o avanço das áreas protegidas e coletivas, e que são o caminho comprovado para a preservação da floresta.
A política ambiental brasileira, embora tenha sido fortalecida legalmente desde os anos 1980, sempre foi frágil do ponto de vista do seu lugar/poder dentro das estruturas do Estado e, logo, do orçamento público que é seu instrumento financeiro.
Exemplo disto é a situação orçamentária do ICMBio e da Funai, órgãos com mandato para implementar a proteção e gestão das áreas protegidas. Sempre foi crítica, agora em 2019 é periclitante.
O governo encaminhou no dia 30 de agosto o Projeto de Lei Orçamentária Anual (PLOA 2020) ao Congresso Nacional, no turbilhão da crise das queimadas na Amazônia.
O que se pode perceber, a partir de uma análise inicial dos números, é que o orçamento para fiscalização de queimadas e desmatamento em Áreas Protegidas derreteu.
No caso do orçamento da Funai direcionado à “Fiscalização e Monitoramento Territorial das Terras Indígenas”, temos:
No caso das Unidades de Conservação Federais, sob a responsabilidade do ICMBio, para a ação orçamentária especificamente destinada à “Fiscalização Ambiental e Prevenção e Combate a Incêndios Florestais” temos:
No caso da ação “monitoramento da cobertura da terra e do risco de queimadas e incêndios florestais”, relacionada aos sistemas de satélite do Inpe, que monitora os incêndios na região amazônica e informam a localização dos focos de queimadas para as autoridades fiscalizadores, temos:
1) Nos sete primeiros meses de 2019, os gastos do governo com a ação de monitoramento da cobertura da terra e do risco de queimadas e incêndios florestais, realizada pelo Inpe, caíram 67% em relação ao mesmo período de 2018.
2) O planejamento orçamentário para a ação caiu 38,9% de acordo com a nova PLOA, passando de R$ 3,2 milhões para R$ 2 milhões.
A falta de poder e orçamento destes órgãos – aliada a interesses da bancada ruralista e sua representação dentro do governo por meio do Ministério da Agricultura – levou à fragilidade das ações de fiscalização e de gestão e, também, à não resolução da situação fundiária das áreas protegidas.
O resultado tem sido o aumento do desmatamento nestas áreas[4] e a pressão para ocupação econômica no seu interior, em especial com atividades de extração de madeira e garimpo[5].
Esse cenário torna-se ainda mais desafiador em um contexto de: i) profunda crise econômica e social que se desdobra em falta de perspectiva de ocupação de rendimento para parte importante da população brasileira, em especial em regiões mais pobres ii) cortes brutais em políticas públicas sufocadas pelo congelamento dos gastos primários em função da Emenda Constitucional N° 95 iii) e atuação cotidiana do atual governo no sentido de desmonte da Política Ambiental e de Áreas Protegidas, seguida de comentários que induzem ao crime ambiental.
O resultado, que não deveria surpreender, é a aceleração do desmatamento. Matéria divulgada em maio de 2019, assinalava que a cada hora, uma área verde do tamanho de 20 campos de futebol era destruída nas Unidades de Conservação federais e que nas duas primeiras semanas de maio, a área desmatada somava mais da metade de tudo que foi derrubado nos nove meses anteriores.
Em síntese, a solução é cumprir a lei e implementar as Políticas Públicas que já foram elaboradas e aí está o problema. O atual governo insiste, e não só por meio de bravatas, mas de ações concretas, em desmontar aquilo que já era executado com muitas fragilidades.
[1] Para uma avaliação do PPCDAM ver MELLO, Natália Girão Rodrigues de; ARTAXO, Paulo. Evolução do Plano de Ação para Prevenção e Controle do Desmatamento na Amazônia Legal. Revista do Instituto de Estudos Brasileiros, Brasil, n. 66, p. 108-129, abr. 2017
[2] CAR é o registro público eletrônico nacional, obrigatório para todos os imóveis rurais, com a finalidade de integrar as informações ambientais das propriedades e posses rurais, compondo base de dados para controle, monitoramento, planejamento ambiental e econômico e combate ao desmatamento.
[3] – Para uma visão do que é o CAR e como ele funciona acesse aqui.
[4] De acordo com estudo do Imazon, as pressões sobre as UCs e TIs são enormes. São ao menos 10 milhões de hectares em UCs federais com posse privada no seu interior. No caso das TIs, a Fundação Nacional do Índio (Funai) não possui uma estimativa de quantos hectares estão ocupados por não índios, mas na Amazônia existem 53 TIs parcialmente ocupadas por essas populações. Soma-se a este quadro a abertura de estradas não oficiais, cortando as florestas em áreas protegidas e aprofundando o problema do desmatamento.
[5] Outro estudo do Imazon nos mostra que até 2012, já haviam sido identificados quase 29,5 mil quilômetros de estradas não oficiais no entorno e quase 24,5 mil quilômetros dentro das áreas protegidas, os dados mais recentes apontam uma extensão bem menor de vias abertas. Em 2016, foram identificados 10,7 mil quilômetros de estradas não oficiais no entorno e 15 mil no interior de unidades de conservação e terras indígenas.
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Passo a passo para frear a devastação da Amazônia - Instituto Humanitas Unisinos - IHU