23 Agosto 2019
Quase 73 mil incêndios foram registrados entre janeiro e 18 de agosto deste ano, comparados com cerca de 39 mil no mesmo período de 2018, de acordo com os últimos dados do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe). A cifra é a mais alta desde o início dos registros e representa um aumento de 83% no número de incêndios em relação ao mesmo período do ano passado.
O presidente Jair Bolsonaro sugeriu nesta quarta-feira (21/08), sem citar evidências, que os incêndios na Amazônia Legal podem ser fruto da "ação criminosa desses 'ongueiros', para exatamente chamar a atenção contra a minha pessoa, contra o governo do Brasil".
Em entrevista à DW, Carlos Nobre, climatologista aposentado do Inpe e atualmente ligado ao Instituto de Estudos Avançados da Universidade de São Paulo (IEA-USP), afirma que a combinação de métodos agrícolas tradicionais e a atual retórica política são letais para o futuro da floresta. O cientista diz que o governo brasileiro está promovendo modelos de desenvolvimento agrícola baseados nas queimadas.
"Até o presidente está encorajando, fazendo quase diariamente declarações dizendo que a agricultura é um poderoso setor econômico para o Brasil e que a fronteira agrícola precisa ser expandida", lamenta. "Então, essa não é uma mensagem oculta, é uma mensagem aberta de que esses fazendeiros e pecuaristas são heróis", diz.
A entrevista é de Loveday Wright, publicada por Deutsche Welle, 22-08-2019.
O que há por trás desse surto de incêndios florestais no Brasil? Isso tem a ver com as temperaturas quentes ou ventos fortes este ano, ou seria outra coisa?
É outra coisa. Na verdade, a estação seca deste ano não está extremamente seca, é normal. Os ventos nessa parte da Amazônia não são tão fortes. Então, realmente, a maioria dos incêndios florestais na Amazônia não são incêndios florestais naturais, são induzidos pelo homem, geralmente por agricultores e pecuaristas.
Infelizmente, na agricultura tropical, o fogo ainda é usado rotineiramente. E alguns desses incêndios se espalham, e depois atingem e queimam grandes áreas de floresta. No sistema típico do Brasil e de todos os países da Amazônia, se derrubam as árvores e se deixa a área para secar por cerca de dois ou três meses antes de colocar fogo, com a finalidade de limpar a terra para fins agrícolas.
Então, este é um fenômeno muito comum. Mas o que estamos vendo este ano é mais desmatamento. Estimamos que a Amazônia tenha diminuído entre 20% e 30% em relação aos últimos 12 meses.
Existe alguma tentativa de parar esses incêndios?
Isso é muito difícil, porque o uso das queimadas é uma parte tradicional da agricultura tropical para limpar a área agrícola, terra de pecuária, então é muito difícil de parar. Por muitos anos, houve períodos em que o fogo era proibido, mas infelizmente a maioria dos fazendeiros e pecuaristas não obedece a esses instrumentos legais. Eles são multados, mas isso não funciona. As queimadas estão aumentando. Existe uma cultura no setor agrícola na Amazônia de usar queimadas extensiva e intensivamente.
Qual a dimensão dos incêndios e quanto dano estão causando?
Os sistemas do Inpe são baseados em satélites que detectam focos de calor relacionados a incêndios. Então, eles detectam tanto as queimadas para propósitos agrícolas quanto os incêndios na floresta.
Isso não é algo excepcional, já vínhamos vendo esses incêndios há muitas décadas. Mas, infelizmente, o número de incêndios atingiu o pico este ano. Isso mostra que o desmatamento está aumentando e que os fazendeiros estão usando fogo ainda mais intensamente.
O novo governo federal do Brasil está encorajando esses modelos de desenvolvimento agrícola. Até o presidente está encorajando, fazendo quase diariamente declarações dizendo que a agricultura é um poderoso setor econômico para o Brasil e que a fronteira agrícola precisa ser expandida.
Então, essa não é nem uma mensagem oculta, é uma mensagem aberta de que esses fazendeiros e pecuaristas são heróis, de que eles devem mover a fronteira agrícola porque eles estão trazendo progresso e renda, o que não é necessariamente verdade. Mas essas mensagens enviam um sinal para os agricultores e pecuaristas: vamos limpar mais terra, vamos derrubar as florestas, vamos fazer queimadas, porque nada vai acontecer conosco.
Quanta floresta deve ser perdida se isso continuar?
É muito provável que as taxas de desmatamento dos últimos 12 meses sejam significativamente maiores que as dos 12 meses anteriores. Olhando para as imagens de satélite, podemos estimar um crescimento de cerca de 20% a 30%, o que é uma taxa muito alta.
Infelizmente, dados mostram que mesmo durante os anos em que o desmatamento foi bastante reduzido, o número de incêndios não diminuiu na mesma proporção. Então, ficamos muito preocupados, porque isso mostra que os fazendeiros continuam fazendo queimadas mesmo quando o desmatamento diminui.
Isso também mostra que a floresta está se tornando mais vulnerável porque as pessoas não estão cumprindo as leis. Em toda a Amazônia brasileira, a maioria dos estados tem leis especificando períodos durante a estação seca nos quais não é permitido fazer queimada. Mas a lei não é cumprida, e os incêndios estão aumentando.
O que pode ser feito para reduzir as queimadas?
Existe uma abordagem educacional, que leva muito tempo. A agricultura moderna não usa queimada. Você não precisa usar fogo para limpar a terra para pastagem ou para plantação após a colheita. Em países onde a agricultura é muito desenvolvida, o fogo não é usado. Mas ensinar essa abordagem leva tempo, muitos anos ou décadas.
A outra questão que é mais urgente é realmente ser rigoroso em termos de aplicação da lei. Até 80% do desmatamento na Amazônia brasileira são ilegais. Entre 2005 e 2014, as taxas de desmatamento caíram porque houve muito mais medidas de controle. Muitos dos culpados por esses crimes ambientais foram presos. Havia campanhas contra o desmatamento ilegal e também contra o uso de queimadas. Mas infelizmente aquelas campanhas e aquele momento de ser muito rigoroso em relação aos que não estão cumprindo a lei acabaram. Então, agora estamos vendo um aumento no desmatamento e também dos incêndios.
Alemanha e Noruega suspenderam repasses para projetos ambientais no Brasil. Em que medida isso afetará o trabalho de conservação na Amazônia?
Isso fará muito mais mal do que bem. O montante total desses fundos não é grande, é de cerca de um bilhão de dólares ao longo de dez anos. E apenas algo em torno de 600 milhões de dólares foi usado em dez anos. No entanto, era muito importante, porque esses recursos da Noruega e da Alemanha foram fundamentais para demonstrar que a Amazônia pode ser desenvolvida sem desmatar a floresta, sem queimadas, capacitando as comunidades locais.
Eu acho que seria muito ruim para o futuro da Amazônia se nós – países amazônicos, em particular o Brasil – perdermos esse apoio de outros países que mostram que há uma alternativa. Como os políticos no poder em muitos países da Amazônia não compartilham dessa visão, é importante para esses países receber alguma ajuda internacional que realmente demonstre na prática que podemos ter um modelo de desenvolvimento diferente para a Amazônia.
É ainda mais importante neste momento, porque se esses países decidem não doar só para dizer que discordam da política governamental atual, as políticas governamentais não vão mudar.
O presidente do Brasil está fazendo piadas sobre a Noruega e a Alemanha se retirarem do financiamento da ajuda internacional. Então, o governo pode dizer: "Estamos vencendo, nossos modelos de desenvolvimento, destruindo as florestas, substituindo-as por fazendas de gado e terras cultivadas. Este é o nosso modelo, e estamos tendo sucesso. Até a ajuda internacional está sendo reduzida, então, estamos ganhando o jogo". Acho que a perda de financiamento é uma coisa ruim. São as instituições brasileiras sérias que vão sentir falta dessa ajuda internacional.
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"Queimadas mostram que desmatamento está aumentando". Entrevista com Carlos Nobre - Instituto Humanitas Unisinos - IHU