10 Janeiro 2019
Em meio à maré de religiosos, militares e ruralistas, Luiz Henrique Mandetta é uma das incógnitas do governo Jair Bolsonaro. Alinhado à defesa da “família tradicional brasileira”, o novo ministro da Saúde atravessou o período de transição com uma discrição incomum a uma das pastas estratégicas da Esplanada.
A reportagem é de Raquel Torres e Guilherme Zocchio, publicada por Outra Saúde, 08-01-2018.
Em especial, restam mais perguntas do que respostas sobre um tópico fundamental para o Ministério da Saúde: a alimentação, alvo de preocupação tanto pela volta da fome como pela epidemia de obesidade que se transformou num dos maiores problemas de saúde pública do século 21.
Não fosse o fato de integrar a bancada ruralista, o posicionamento do novo titular da Saúde em relação às questões da alimentação seria um tanto enigmático, já que nutrição, obesidade, agrotóxicos e temas correlatos nunca foram centrais em sua atividade parlamentar.
Médico ortopedista, duas vezes deputado pelo DEM, uma vez secretário de saúde em Campo Grande (MS) e ex-presidente da Unimed na mesma cidade, Mandetta foi indicado ainda em novembro. Imediatamente sites e jornais foram atrás de inquéritos envolvendo o seu nome: ele é investigado por fraude em licitação, tráfico de influência e também caixa dois durante a implementação de um sistema de informatização enquanto era secretário.
A confiança de Jair Bolsonaro não parece ter se abalado. O fato de que Mandetta foi o terceiro nome do DEM a ser escolhido para ocupar uma pasta também foi tratado com naturalidade – Bolsonaro afirmou que suas opções eram técnicas, e não políticas. Além de ser médico, Mandetta foi indicado pela Frente Parlamentar da Saúde e, sem dúvidas, é um nome mais técnico do que foram Ricardo Barros e Gilberto Occhi, ministros de Michel Temer. Na época da indicação, a deputada Carmen Zanotto (PPS-SC), que fez o anúncio, disse à BBC que Mandetta tinha também o apoio “dos hospitais filantrópicos e das entidades médicas”.
Ele foi eleito deputado em 2010 e em 2014 e, ao longo de seus mandatos, discursou sobre a importância de aumentar o financiamento do SUS e de melhorar a formação médica, quis revogar a permissão para a atuação do capital estrangeiro na saúde (aprovada no governo Dilma Rousseff), foi contra os planos de saúde populares propostos por Ricardo Barros e esteve ao lado de agentes comunitários de saúde e agentes de controle de endemias, defendendo o reajuste do piso salarial. Por outro lado, votou com o DEM a favor da PEC 241, que instituiu o famoso Teto dos Gastos e congelou os gastos federais com saúde até o ano 2036.
Mandetta ficou conhecido por ser um dos mais ferrenhos críticos ao Mais Médicos desde a criação, em 2013. Por diversas vezes, acusou o programa de ser uma “peça de marketing”, e certa feita foi mais longe: afirmou que o convênio entre o governo brasileiro e a OPAS era um “navio negreiro do século 21”.
Mas há uma faceta importantíssima do novo ministro, que possui relação direta com a saúde da população e que tem sido um pouco deixada de lado: sua presença na Frente Parlamentar Agropecuária, conhecida como bancada ruralista – cuja última presidente foi Tereza Cristina, colega de partido de Mandetta e agora ministra da Agricultura de Bolsonaro.
Observando seus oito anos no Congresso, vê-se que houve aqui e ali solicitações para debater o programa NutriSUS (uma suplementação de micronutrientes distribuída em creches para diminuir anemia e deficiência de ferro na infância), do qual o parlamentar desconfiava. E em um momento isolado, durante uma audiência pública sobre obesidade infantil, ele defendeu a existência de políticas integradas e transversais para dar cabo do problema, criticando que sejam raros os profissionais de nutrição e educação física na Estratégia Saúde da Família.
Uma fala bastante razoável. Mas que razoabilidade sobre segurança e soberania alimentar podemos realmente esperar de um ruralista? Na mesma audiência, em maio de 2012, Mandetta colocou-se contra a ação estatal em algumas agendas centrais para o enfrentamento da obesidade.
“É impossível. O Estado tem um limite na promoção de leis. Podemos até dizer que a escola tem que ter um nutricionista, que a cantina tem que ser saudável no que tem que oferecer, mas é uma situação educacional e é um desafio geracional, para uma geração de paz que não teve essa educação e que está sendo desafiada agora pelos meios de comunicação, pela Internet etc., pela facilidade de acesso e pelas estratégias de marketing.”
De lá para cá, a OMS declarou que os Estados devem, sim, atuar no enfrentamento da obesidade com regulação da publicidade de alimentos, mudanças na rotulagem de produtos e criação de impostos especiais. Alguns países adotaram esse caminho. O Ministério da Saúde publicou o Guia Alimentar, de 2014, no qual recomenda evitar ultraprocessados.
Mas o Brasil não acolheu nenhuma medida regulatória-chave nessa questão, embora a Anvisa estude a criação de alertas na parte frontal das embalagens para avisar sobre o excesso de sal, açúcar e gorduras – apesar de a agência gozar de autonomia, o ministro da Saúde pode jogar um papel importante na articulação política dessa medida.
Há três anos, Tereza Cristina e Mandetta estiveram juntos em uma reunião convocada por Roseli Silva, fazendeira e presidente do sindicato do município de Antonio João (MS). A pauta era a necessidade de retomar terras que estavam ocupadas por índios Guarani Kaiowá. Após a reunião, Mandetta rumou com os fazendeiros em direção à propriedade ocupada e viu de perto o conflito que terminou com a morte do indígena Semião Vilhalva.
Na verdade ele fez mais do que observar: na condição de médico, foi quem afirmou que, pela rigidez do corpo, Vilhalva estava morto desde horas antes do confronto (“Isso eu posso afirmar, aquele homem não morreu nesse momento em que ouvimos o tiro”, disse ele). O problema é que o laudo médico indicou o oposto: o assassinato ocorreu, de fato, durante o conflito com os fazendeiros.
Mandetta não estava no local por acaso. Sua atividade na Frente Parlamentar Agropecuária é intensa, e parte significativa da sua atuação na Câmara diz respeito a tentativas de modificar o processo de demarcação de terras indígenas, de modo a favorecer os fazendeiros. Essa obstinação fez com que ele – novamente ao lado de Tereza Cristina – figurasse entre os 50 parlamentares mais “anti-indígenas” em um levantamento feito no ano passado pelo Conselho Indigenista Missionário (Cimi).
Em 2017 Mandetta lançou a Frente Parlamentar da Medicina. Em seu discurso, falou da valorização profissional, da formação ruim na área, da necessidade de os médicos fazerem política. Mas de cara citou, como grande exemplo de boa atuação, a justo bancada ruralista: “Eles se organizaram desde a Constituinte. Na Constituinte havia duas propostas: [uma era que] a terra seria do Estado e o Estado daria uma concessão para a pessoa usar a terra. Os proprietários se organizaram para defender que a terra era sim escriturável e que era propriedade privada. Se organizaram na época, instituíram a União Democrática Ruralista, vieram para dentro desta Casa e ganharam essa discussão por um voto. Se a terra fosse do Estado, vocês acham que o agronegócio estaria sustentando a economia deste país?”, questionou, referindo-se à forte atuação da UDR contra o Plano Nacional de Reforma Agrária em pauta na época. Vale lembrar que membros da organização estiveram por trás de centenas de assassinatos.
Ainda no mesmo discurso, Mandetta definiu bem o que é uma frente parlamentar. “É quando parlamentares concordam em atuar em articulação, em sintonia, com todos os que compõem aquela frente para atingir objetivos que aprimorem determinado tema”, resumiu.
O que nos leva novamente a questionar: no tocante à alimentação, como ministro da Saúde, estará ele alinhado às necessidades de saúde da população ou aos da bancada que ele se empenhou em defender enquanto deputado?
Em 2015 ele ficou junto à bancada na votação do projeto que acaba com a exigência do alerta em rótulos de produtos que contenham transgênicos – aquele triângulo com a letra T. O texto polêmico, aprovado pela Câmara, está agora no Senado como PLC 34/2015 e é alvo de inúmeras críticas do Instituto de Defesa do Consumidor (Idec), que o considera uma afronta ao direito à informação. A Associação Brasileira de Saúde Coletiva (Abrasco), a Fiocruz e outras instituições chegaram a assinar uma carta defendendo a manutenção da rotulagem.
Qual será a posição de Mandetta em relação ao chamado PL do Veneno, que tramita hoje no Congresso e pode afrouxar as regras em relação à aprovação de agrotóxicos? Mandetta fez parte da comissão especial que analisou o projeto na Câmara (e o aprovou), mas como suplente. Será que apoia o texto, como a bancada da qual fez parte, ou o rechaça, como o Departamento de Vigilância em Saúde Ambiental e Saúde do Trabalhador do Ministério da Saúde (DSAST/MS), a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), o Instituto Nacional do Câncer (Inca), a Fiocruz e tantas outras entidades que já emitiram notas técnicas e científicas contra o PL?
O que será que Mandetta pensa sobre o texto da Política Nacional de Redução dos Agrotóxicos, que também tramita no Congresso e, a despeito das tentativas de obstrução por parte da bancada ruralista, foi aprovado na comissão especial da Câmara e deve ir a plenário?
Para conhecer melhor as ideias do novo ministro sobre esses temas, nossa reportagem esteve em contato com sua assessoria de imprensa desde dezembro, via telefone e e-mail, solicitando uma entrevista. Até o momento, ela não foi concedida. Ficam aqui, porém, as perguntas não respondidas, importantíssimas para saber o que esperar da próxima gestão do ministério da Saúde.
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O que precisamos saber e o ministro da Saúde não quis dizer - Instituto Humanitas Unisinos - IHU