22 Fevereiro 2025
"Jesus está interessado em que as pessoas vivam relações interpessoais e sociais que embasem a superação da violência que causa o aparecimento do inimigo. Cada pessoa é única, tem sua história, nasceu em uma cultura, tem seus condicionamentos e tem uma dignidade que precisa ser respeitada e admirada. Vale a pena acreditar no ser humano, pois é capaz de mudar de vida para melhor, mesmo que muitas vezes pareça impossível. Se não se interromper a espiral de violência, na convivência em família, na comunidade e na sociedade, fica cada vez mais difícil, até se tornar impossível", escreve Frei Gilvander Moreira.
Gilvander Moreira é frei e padre da Ordem dos Carmelitas; doutor em educação pela FAE/UFMG; licenciado e bacharel em filosofia pela UFPR; bacharel em teologia pelo ITESP/SP; mestre em exegese bíblica pelo Pontifício Instituto Bíblico, em Roma, Itália; agente e assessor da CPT/MG, assessor do CEBI e Ocupações Urbanas; prof. de teologia bíblica no Serviço de Animação Bíblica – SAB, em Belo Horizonte.
“Amem os seus inimigos, e façam o bem aos que odeiam vocês”, propõe Jesus Cristo relendo de forma profunda um dos mandamentos lá do primeiro testamento bíblico que dizia: “Amarás o teu próximo e odiarás o teu inimigo” (Mt 5,43; Lev 19,18; Dt 23,4.7). Essa exortação de Jesus deixa muita gente pensativa e sem palavras. Amar o inimigo!? Por quê e para quê? Como? Perguntas que nos fazem pensar e que devemos levar a sério.
Primeiro, observemos o contexto e a quem Jesus está se dirige. A exortação para amar os inimigos está nos Evangelhos de Lucas e de Mateus, que foram escritos na década de 80 do 1º século da era comum. Em Lucas, está no discurso da planície, no nível do povo, cara-a-cara, olho no olho, endereçado aos discípulos e às discípulas de Jesus que sofrem a dor da injustiça, da discriminação, dos moralismos, da intolerância religiosa, da exploração econômica imposta pelos piedosos saduceus latifundiários, da opressão de governadores biônicos como Pilatos e Herodes, impostos pelo imperador que mantinha a Palestina como colônia a ser superexplorada com tributos, escravização do povo e rapina da produção. Enfim, após afirmar que seus discípulos pobres, famintos e odiados são os verdadeiros bem-aventurados, abençoados, Jesus aponta o caminho a ser seguido para se superar a brutal violência imposta pelo escravocrata império romano, pelos coronéis da época e pelo judaísmo enrijecido que considera maldito e impuro os pobres, os adoecidos e os estrangeiros.
Quem Jesus via que eram os inimigos dos seus discípulos e discípulas? No Evangelho de Lucas os principais mantenedores do sistema desigual da cidade são os fariseus. Lucas é o único evangelista a chamá-los de “amigos do dinheiro” (Lc 16,14), apresentando-os como o inimigo número 1 de Jesus. Por quê? Evidentemente porque estão em jogo duas propostas de sociedade: uma fundada na partilha solidária, vivida entre os camponeses e assumida por Jesus como caminho que conduz ao reinado divino, e outra enraizada no acúmulo e na concentração de bens e riquezas, cujos defensores principais são os fariseus, “amigos do dinheiro”. No Evangelho de Lucas, essas pessoas jamais se relacionam de modo justo com os pobres, camponeses, mutilados, doentes etc. (cf. Lc 14,12-14). Como diz a parábola do rico esbanjador e do pobre Lázaro, já nesta vida há entre o rico e o pobre um abismo intransponível (cf. Lc 16,19-31). O evangelho fala de uma pessoa que pede para Jesus arbitrar uma disputa pela herança (Cf. Lc 12,13-21). Certamente ela pertence ao sistema de relações da cidade, fundado na concentração e na acumulação de bens. A herança soa como resultado de concentração de bens. E Jesus não se pôs do lado da concentração, mas da partilha.
Jesus está interessado em que as pessoas vivam relações interpessoais e sociais que embasem a superação da violência que causa o aparecimento do inimigo. Cada pessoa é única, tem sua história, nasceu em uma cultura, tem seus condicionamentos e tem uma dignidade que precisa ser respeitada e admirada. Vale a pena acreditar no ser humano, pois é capaz de mudar de vida para melhor, mesmo que muitas vezes pareça impossível. Se não se interromper a espiral de violência, na convivência em família, na comunidade e na sociedade, fica cada vez mais difícil, até se tornar impossível.
Pode nos ajudar na compreensão de por que amar o inimigo e como amar a noção de violência segundo René Girard, pensador francês, autor de “A violência e o Sagrado”, “O Bode Expiatório”, “Coisas ocultas desde a fundação do mundo”, entre outros livros.
René Girard nos mostra que a violência é uma realidade humana permanente, cotidiana e universal, do âmbito privado até o familiar, da pequena sociedade até o Estado, permeando e perpassando de alguma forma todas as relações entre as pessoas, empresas e instituições. Naturalmente tendemos à imitação. Por que desejar o que o outro deseja? Por que a vida do outro, o que o outro tem e é parece ser melhor do que eu sou e o que tenho? Por que a criança prefere sempre e disputa o brinquedo da outra criança? Por que o rico da parábola de Natã que tinha muitas ovelhas quer a única ovelha do pobre para oferecê-la a um hóspede? (II Sm 12,1-12).
Estabelece-se a briga de duas pessoas por um “objeto”, porque o outro o deseja. Instala-se no ser humano uma rivalidade mimética atribuindo ao objeto um valor que é dado pelo outro, independentemente do seu valor intrínseco, e eclode a violência.
Cada vez que a violência entre as pessoas ou grupos eclode, é necessário eliminá-la, porque, do contrário, esta levaria à destruição do grupo social. A violência se manifesta potente e generalizada e, portanto, difícil de ser suprimida, mas também cega e fácil de enganar. Canalizar a violência rumo a um objeto adaptado, e assim saciá-la, é mais fácil que suprimi-la. Assim, por exemplo, a sociedade medieval queimava as bruxas para expulsar a peste que assolava toda a Europa. Acolher e respeitar a orientação homoafetiva, por exemplo, parece mais difícil porque o diferente me incomoda e, por isso, muitos tendem através da violência eliminar o outro que incomoda. Por que negar a beleza do povo negro ou indígena e agarrar-se à pretensa beleza e superioridade dos brancos? O diferente incomoda e passa a ser tratado por muitos como inimigo a ser eliminado.
Esse mecanismo se manifesta também quando a sociedade tecnológica descarrega sobre o inimigo – povo ou indivíduo – a responsabilidade do mal e o pune com a guerra ou pena de morte, mas também com o bloqueio econômico ou o isolamento perpétuo. É o que estão fazendo o governo dos Estados Unidos e o Estado de Israel com seu projeto de genocídio e limpeza étnica sobre o maravilhoso Povo Palestino, caracterizando quem é diferente como terrorista e membro do “eixo do mal”, como se os imperialistas, sionistas e genocidas fossem o bem.
A orientação da violência em um determinado sentido, verificável a nível individual, familiar, tribal e estatal, é uma reação primária, que procura envolver emocionalmente todos os membros de um grupo ameaçado, para prevenir uma possível violência internamente ou para pôr fim a uma situação violenta em curso. Assim, por exemplo, se declara uma guerra considerada “santa” contra um inimigo externo para unificar um povo que atravessa uma crise social, cultural ou econômica, crise que poderia provocar uma guerra civil entre todos os membros da sociedade.
Sem terem escolhido o caminho do sacrifício, os servos sofredores anônimos, o do primeiro testamento, apresentado no livro de Isaías (Is 52,13-53,12) e Jesus de Nazaré, mas sob violência imposta pelas circunstâncias sobre eles pelos seus contemporâneos por meio de um processo judicial injusto, se tornaram testemunhas do caminho a ser seguido para se superar a violência, que inclui amar os inimigos. Esses, ao serem insultados, não insultaram. Ao sofrerem violência, não responderam violentamente. Amaldiçoados, não amaldiçoaram; condenados, não condenaram; chutados, não revidaram. Preferiram doar a vida a manter queda de braço com seus inimigos. Vivenciaram a lógica do amor e não apenas uma nova lógica. Perdoaram e oraram pelos inimigos. Assim, como diz o apóstolo Paulo na Carta aos Romanos, se inspirando na sabedoria popular descrita nos livros de Provérbios e do Êxodo: “Se o teu inimigo tiver fome, dá-lhe de comer, se tiver sede, dá-lhe de beber. Agindo desta forma estarás acumulando brasas sobre a cabeça dele. Não te deixes vencer pelo mal, mas vence o mal com o bem” (Rm 1,22-21. Cf. Prov 25,21-22; Ex 23,4-5).
A exortação a amarmos nossos inimigos está em sintonia com a regra de ouro “Como quereis que os outros vos façam, fazei também a eles” (Lc 6,31), pois “esta é a Lei e os Profetas” (Mt 7,12), lei que liberta e profecia que anuncia projetos de vida e denuncia projetos de morte. O evangelista Lucas termina fundamentando que “Deus é bom para com os ingratos e com os maus” (Lc 35), “faz chover sobre os injustos e sobre os justos” (Mt 5,45). Portanto, “Não julguem o próximo. Sejam misericordiosos” (Lc 6,36). Enfim, o evangelho de Jesus Cristo está querendo desarmar na origem a causa de muitas violências. Que a maldade do inimigo não condicione meu jeito de ser e agir, que não me faça violento, pois há 800 anos nos ensina Francisco de Assis: “Só o amor constrói”.
Entretanto, Jesus não apregoa um amor ingênuo. Ele falou para dar a outra face, mas ele não deu a outra face e sim quando estava preso e um soldado romano o agrediu, interrogou: “Por que me bates?” (Jo 18,23). O educador Paulo Freire dizia que devemos amar todas as pessoas, mas não devemos amar todas as pessoas do mesmo jeito. Devemos amar as pessoas injustiçadas, empobrecidas, nos colocando solidariamente ao lado delas para com elas e a partir delas lutarmos pelos seus direitos. E devemos amar as pessoas opressoras fazendo o possível e o impossível para retirar das mãos delas as armas da opressão. Por exemplo, o latifúndio é uma arma de exploração nas mãos do latifundiário. Logo, lutar pela partilha e socialização da terra, assim como se solidarizar com os povos indígenas ameaçados pela lei do Marco Temporal a perder seus territórios ancestrais é também uma questão espiritual que vivemos a partir da fidelidade ao Evangelho do Reino de Deus anunciado e trazido por Jesus Cristo.