Quem é realmente feliz?

11 Fevereiro 2022

 

Publicamos aqui o comentário do monge italiano Enzo Bianchi, fundador da Comunidade de Bose, sobre o Evangelho deste 6º Domingo do Tempo Comum, 13 de fevereiro de 2022 (Lucas 6,17.20-26). A tradução é de Moisés Sbardelotto.

 

Eis o texto.

 

Quando Jesus já tinha discípulos que o seguiam e estavam ao seu lado enquanto ele peregrinava pelas estradas da Galileia para anunciar a vinda do Reino, eis que se impõe uma escolha, uma eleição. Jesus não está sozinho, mas tem uma comunidade que deve parecer uma personalidade corporativa, capaz de representar o povo de Israel, o povo das 12 tribos em aliança com o Senhor.

Para fazer esse discernimento, Jesus sobe ao monte como outrora fizera Moisés (cf. Ex 32,30-34,2) e, naquele lugar solitário, mas propício à escuta do Pai, ele reza. Segundo Lucas, nos momentos decisivos da sua missão, Jesus sempre entra em oração, busca a comunhão com o Pai e procura discernir a sua vontade. A partir dessa intensa experiência de escuta, ele amadurece a sua decisão de chamar para si e, portanto, de escolher entre os seus seguidores 12 homens que serão enviados por ele (apóstoloi) e terão como tarefa a missão de anunciar o reino de Deus junto com o próprio Jesus.

Eis, portanto, Jesus descendo do monte com a sua comunidade “instituída” e chegando a uma planície onde encontra muitos ouvintes, incluindo inúmeros doentes que pedem a cura e a libertação do poder do mal (cf. Lc 6,18- 20). Jesus é um verdadeiro rabi, um verdadeiro profeta, e muitos percebem que ele é habitado por uma força (dýnamis) portadora de vida.

Nesse contexto, Jesus vê ao seu redor os seus discípulos e lhes dirige as bem-aventuranças. Trata-se de uma forma de se expressar bem atestada em Israel (cf. Is 30,18; 32,20; Sl 1,1 etc.): exclamações, gritos cheios de força e esperança dirigidos a alguém para lhe atestar que aquilo que ele vive ou faz é abençoado por Deus, que levará a termo a obra de modo imprevisível. Em cada bem-aventurança, portanto, está envolvida uma promessa da intervenção por parte de Deus.

No Evangelho segundo Lucas, as bem-aventuranças são quatro e são diferentes da versão de Mateus, que contém nove (cf. Mt 5,1-11). Em Lucas, elas são expressadas na segunda pessoa do plural, dirigidas diretamente a ouvintes presentes na audiência de Jesus e indicam uma situação concreta como a pobreza, a fome, o pranto, a perseguição; as bem-aventuranças segundo Mateus evidenciam as condições espirituais dos bem-aventurados, como a pobreza de espírito, a mansidão, a fome e sede de justiça, a misericórdia, a pureza de coração...

Temos, portanto, dois testemunhos, duas interpretações das bem-aventuranças pronunciadas por Jesus, que são complementares e nos permitem conhecer de modo mais rico e profundo a mensagem que dá força, convicção e esperança aos discípulos. Certamente, ao escutar essas bem-aventuranças e ainda mais ao anunciá-las, meus lábios ardem: Jesus, de fato, dirige-se a pobres, famintos de pão, pessoas que choram e perseguidos, enquanto eu não posso me colocar entre esses destinatários do Reino.

Escutemo-las, portanto, mais uma vez, deixemos que elas nos interroguem, que nos firam o coração e tentemos não nos escandalizar com o seu radicalismo: as bem-aventuranças não são ética e moral, mas revelação, anúncios a ser acolhido ou rejeitado, expressam a lógica e a dinâmica do reino de Deus. Aquele Reino que nós devemos buscar primeiro (cf. Lc 6,31; Mt 6,33) na consciência de que Jesus é a boa notícia, o Evangelho de Deus para nós.

A primeira bem-aventurança é dirigida a “vós, os pobres”, isto é, aos discípulos de Jesus que em todo o Evangelho aparecem como pobres: abandonaram tudo, despojaram-se até da família e, como pobres, seguem o Messias pobre. Certamente, as palavras de Jesus transcendem os seus discípulos históricos e se dirigem à Igreja, constituindo um princípio de krísis, de juízo: esses pobres reais, concretos, aos quais Jesus dirigiu a bem-aventurança-felicidade, estão na Igreja? A Igreja é a comunidade dos pobres e é pobre? Perguntas que Lucas, significativamente, se faz na segunda parte da sua obra, os Atos dos Apóstolos, onde a pobreza e os pobres são credores da partilha, da koinonía, para que “nenhum deles fosse pobre” (cf. At 4,34).

Essa primeira bem-aventurança – é preciso admitir – é paradoxal. Como é possível afirmar: “Bem-aventurados os pobres”? Mas ela ressoa desse modo porque quer indicar que não é a pobreza que torna bem-aventurados os pobres, mas é a condição de pobreza que lhes permite invocar, desejar, discernir o reino de Deus.

Os pobres são aqueles que invocam que Deus reine sobre eles, e não dinheiro, não os poderosos deste mundo. Desse modo, tornam-se “significantes”, sinalizam para o reino de Deus com uma força mais eficaz do que toda comunicação verbal possível.

Os pobres são sinal da injustiça do mundo e, ao mesmo tempo, sacramento do Senhor Jesus, que “de rico se fez pobre por nós, para nos tornar ricos da sua pobreza” (cf. 2Cor 8,9). Os pobres – e é preciso torná-los próximos, escutá-los e conhecê-los para interpretá-los – sabem reconhecer que o reino de Deus é para eles, e essa é a bem-aventurança que ninguém jamais poderá arrancar do seu coração. O reino de Deus virá com a instauração da justiça, e então a koinonía será plena.

Assim como os pobres reais e concretos, também aqueles que têm fome e conhecem a ameaça de morte por falta de comida e de água são bem-aventurados. Por quê? Porque agora estão nessa condição, mas o Deus libertador age em seu favor. Como Lucas atestou no Magnificat cantado por Maria (cf. Lc 1,46-55), mulher humilde, pobre e crente, Deus, com a força do seu braço, dispersa os poderosos e anula os seus planos, derruba os poderosos dos seus tronos e eleva os humildes, enche de bens os famintos e manda embora os ricos de mãos vazias.

Haverá uma saciedade para quem agora passa fome! Essa é a justiça que se expressará no julgamento de Deus, um julgamento que deveria nos advertir, porque será na misericórdia se tivermos misericórdia por quem sofre ao nosso lado. Não podemos pensar que as omissões são menos graves do que uma ação que provoca morte: quem vê o faminto e não o sacia é como alguém que lhe dá a morte, é um assassino do irmão!

Consideremos a terceira bem-aventurança, aquela relativa a quem chora, talvez de modo menos temível, porque, mais cedo ou mais tarde, todos choramos. Aqui, porém, a contraposição deve ser lida entre quem passa a vida na lamentação e quem, em vez disso, vive prazerosamente; entre quem só conhece o duro ofício de viver e quem está livre de fadigas, fardos e sofrimentos, porque carrega os outros com os pesos das suas fadigas. Basicamente, entre oprimidos e opressores. A alegria e o canto, portanto, são a promessa de Deus também para os que são oprimidos.

Enfim, a última bem-aventurança lucana é dirigida aos perseguidos por causa de Cristo e da sua mensagem. Sim, haverá perseguição para quem leva o nome de cristão, haverá hostilidade, desprezo e insulto: se, de fato, ocorreu assim para Jesus, o mestre, poderia acontecer de maneira diferente para os discípulos?

Com essa bem-aventurança Jesus entrevê o futuro, e nós sabemos como isso sempre ocorreu e ocorre hoje mais do que nunca, para muitos cristãos espalhados pelo mundo. Eles podem exultar e se alegrar, porque a perseguição testemunha o pertencimento a Cristo por parte de quem é hostilizado e lhe assegura a recompensa do reino dos céus.

Em Lucas, as bem-aventuranças são seguidas pelos “ais” (Ouaì hymîn!), gritos de advertência para quem se sente autossuficiente. Mas atenção: não se trata de uma maldição, como muitas vezes se diz ou se traduz, mas de uma constatação e de um lamento! Constatação de que quem é rico, saciado e vive prazerosamente não entende, não compreende (cf. Sl 49,13.21), não sabe que está indo rumo à ruína e à morte, uma morte que ele já vive na relação com seus próprios irmãos e suas próprias irmãs. Esses “ais” são ecos das advertências dos profetas de Israel (cf. Is 5,8-25; Hab 2,6-20), são um chamado a mudar de rumo, a mudar de mentalidade e de comportamento, são um verdadeiro convite à vida autêntica e plena.

Se tem uma vida fiel e conforme a Cristo, o cristão não espera que as pedras sejam removidas do seu caminho. Pelo contrário, elas facilmente serão lançadas contra ele: de fato, se ele for “justo”, será odiado, e nem mesmo a sua visão será suportada (cf. Sab 1,16-2,20).

Por fim, recordemos também o “ai de vós quando todos vos elogiam”, porque assim como Jesus foi um “sinal de contradição” (Lc 2,34), assim é o cristão, se for conforme a ele.