Publicamos aqui o comentário do monge italiano Enzo Bianchi, fundador da Comunidade de Bose, sobre o Evangelho deste 3º Domingo do Tempo Comum, 23 de janeiro (Lucas 1,1-4;4,14-21). A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Ao dar forma à boa notícia, ao Evangelho, por meio do relato, Lucas tem a consciência da sua própria responsabilidade diante de Deus e das pessoas. Diante de Deus, ele deve ser um “servo da Palavra”, capaz de levar em conta outros escritores anteriores a ele e com mais autoridade do que ele: “as testemunhas oculares”, aquelas que viveram na intimidade e na vida pública com Jesus (cf. At 1,21-22); diante das pessoas, ele sente o dever de responder àqueles primeiros cristãos da sua comunidade, dando-lhes uma palavra como alimento capaz de alimentar e confirmar a sua fé.
Por isso, ele compôs aquele que chamamos de terceiro evangelho, recorrendo com cuidado à tradição apostólica, mas, ao mesmo tempo, escrevendo com as suas capacidades e a sua sensibilidade a cristãos de língua grega nos anos 70-80 da nossa era. O Evangelho é um canto a quatro vozes, quatro relatos, quatro memórias: mas o canto polifônico continua sendo apenas um canto, e um só é o Evangelho feito carne, homem (cf. Jo 1,14), Jesus de Nazaré.
Lucas está muito atento em testemunhar a presença do Espírito de Deus em Jesus. Jesus – que é a Palavra de Deus (cf. Jo 1,1) – e o Espírito Santo são “companheiros inseparáveis” (Basílio de Cesareia), e, portanto, onde Jesus fala e age, lá também está o Espírito.
Nos capítulos anteriores do evangelho, aqueles relativos à vinda ao mundo do Filho de Deus, Lucas mostrou que ele foi concebido no ventre de Maria graças ao poder do Espírito Santo (cf. Lc 1,35), e a sua aparição pública como discípulo de João Batista, que o imergiu no Jordão, foi selada pela descida sobre ele do Espírito Santo (cf. Lc 3,22).
Precisamente esse Espírito conduz Jesus ao deserto, onde ele é tentado pelo demônio (cf. Lc 4,1-2a), e o acompanha – é o início do nosso trecho litúrgico – quando ele retorna à Galileia, a sua terra, da qual havia se afastado para ir ao deserto e se pôr no seguimento do profeta batizador.
Com essa insistência, Lucas pretende fazer com que o leitor compreenda que Jesus é “inspirado”, que a sua fonte interior, a sua respiração profunda é o Espírito de Deus, o Sopro do Pai. Ele não é um profeta como os outros, sobre os quais o Espírito descia momentaneamente, porque, nele, o Espírito repousava, parava, habitava (cf. Jo 1,32), enchia-o daquela força (dýnamis) que não é poder, mas participação na ação e no estilo de Deus.
E o que Jesus faz no seu retorno à “Galileia dos gentios” (Mt 4,15; Is 8,23), terra periférica e impura? Vai “ensinar nas sinagogas”. Para iniciar a sua missão, ele não escolheu nem Jerusalém nem o templo, mas aquelas humildes salas onde os fiéis se reuniam para escutar as Sagradas Escrituras e oferecer o seu serviço litúrgico ao Senhor.
Nas sinagogas, aos sábados, faziam-se orações, depois se lia a Torá (uma perícope, uma parashah do Pentateuco), a Lei, em seguida rezavam-se Salmos e, como comentário da Torá, proclamava-se um trecho (haftarah) tirado dos Profetas. Não era uma liturgia diferente daquela que nós, cristãos, fazemos ainda hoje todos os domingos.
Jesus já é um homem de cerca de 30 anos, não pertence à estirpe sacerdotal e, portanto, não é um sacerdote, é um simples fiel filho de Israel, mas, tendo-se tornado, aos 12 anos, “filho do mandamento” (cf. Lc 2,41-42), está habilitado a ler publicamente as Sagradas Escrituras e a comentá-las, fazendo a homilia.
E assim ocorre que, naquele sábado, justamente na sinagoga em que a sua fé havia sido alimentada desde a infância, quando morava em Nazaré, mediante as liturgias comunitárias, Jesus sobe ao ambão e, abrindo o rolo que lhe é dado, lê a segunda leitura, o trecho previsto para aquele sábado: o capítulo 61 do profeta Isaías. Esse texto é a autoapresentação de um profeta anônimo que testemunha a sua vocação e a sua missão:
O Espírito do Senhor está sobre mim,
porque ele me consagrou com a unção (échrisen)
para anunciar a Boa Nova aos pobres;
enviou-me para proclamar a libertação aos cativos
e aos cegos a recuperação da vista;
para libertar os oprimidos
e para proclamar um ano da graça do Senhor (Is 61,1-2a).
Quem é esse profeta sem nome apresentado por Isaías? Qual é a sua identidade? Qual será a sua missão? Quando será a sua vinda tão esperada? Essas certamente as perguntas que surgiam diante da leitura desse texto.
Jesus, depois de ler o trecho, deixando de fora os versos finais anunciavam “o dia da vingança do nosso Deus” (Is 62,2b), comenta-o com pouquíssimas palavras, assim resumidas por Lucas:
Hoje se cumpriu esta passagem da Escritura que acabastes de ouvir.
Hoje, hoje (sémeron) Deus falou e realizou a sua Palavra. Hoje, porque, quando um ouvinte acolhe a palavra de Deus, é sempre hoje: é aqui e agora que a palavra de Deus nos interpela e se realiza. Não há espaço para adiamento: hoje! É precisamente Lucas quem forja essa teologia do “hoje de Deus”. Em nada menos do que 12 vezes no seu Evangelho ressoa esse advérbio, “hoje”, das quais estas são as mais significativas:
- para a revelação feita pelos anjos em Belém (cf. Lc 2,11);
- para a revelação por obra da voz celeste no batismo (cf. Lc 3,22; variante que cita Sl 2,7);
- no nosso trecho, como afirmação programática (cf. Lc 4,21);
- durante a viagem de Jesus a Jerusalém (cf. Lc 13,32.33);
- como anúncio da salvação feito por Jesus a Zaqueu (cf. Lc 19,5.9);
- como palavra dirigida a Pedro como anúncio da sua negação (cf. Lc 22,34.61);
- como salvação oferecida até na cruz, a um dos dois malfeitores (cf. Lc 23,43).
Hoje, para cada um de nós, é sempre hora para escutar a voz de Deus (cf. Sl 95,7d), para não endurecer o coração (cf. Sl 95,8) e, assim, poder captar a realização das suas promessas. A palavra de Deus, na sua potência, ressoa sempre hoje, e “quem tem ouvidos para ouvir, ouça” (Lc 8,8; Mc 4,9; Mt 13,9).
Hoje se escuta e se obedece ou se rejeita a Palavra; hoje se decide o juízo pela vida ou pela morte das nossas histórias; hoje é sempre palavra que podemos dizer como ouvintes autênticos de Jesus: “Hoje vimos coisas prodigiosas” (Lc 5,26). E também podemos dizê-la depois de um passado de pecado: “Hoje eu recomeço”, porque a vida cristã é ir “de início em início através de inícios que nunca têm fim” (Gregório de Nissa).
Jesus, portanto, é o profeta esperado e anunciado pelas Sagradas Escrituras, o profeta último e definitivo, mas ele não proclama isso abertamente, mas deixa que os seus ouvintes compreendam a sua identidade, fazendo discernimento sobre as ações que ele realiza, acolhendo a novidade da boa notícia por ele anunciada.
Jesus é o Cristo, o Messias ungido por Deus (échrisen), não com uma unção de óleo, mas por meio do Espírito Santo; é o enviado para levar o Evangelho aos pobres, sempre à espera da justiça; para proclamar aos prisioneiros a libertação de todo poder; para dar a vista aos cegos; para libertar os oprimidos de todas as formas de mal; para anunciar o ano da graça do Senhor, o tempo da misericórdia, do amor gratuito de Deus.
Essa é uma missão profética que Jesus inaugurou com sinais e palavras, mas uma missão confiada aos discípulos ao habitarem a história na companhia dos homens e das mulheres. Sim, essas palavras de Jesus podem nos parecer uma promessa nunca realizada, porque os pobres continuam gritando, os oprimidos e os prisioneiros continuam gemendo, e nem mesmo os cristãos sabem viver a misericórdia de Deus anunciada por Jesus.
Mas essa liturgia da Palavra, que teve em Jesus não só o leitor e o intérprete, mas sobretudo aquele que a cumpriu e a realizou, ilumina todo o seu ministério: de Nazaré, onde ele a inaugurou na sinagoga, a Jerusalém, onde na cruz ele levará a cumprimento a sua missão.