13 Março 2024
"Os evangélicos contrastam a interpretação histórico-crítica da Bíblia, mas ao mesmo tempo também se distanciam do tradicional antijudaísmo cristão contido na 'teologia da substituição', segundo a qual a igreja teria substituído Israel (mas que é contrária à visão da carta aos Romanos)", escreve Giovanni Maria Vian, historiador e ex-diretor do L'Osservatore Romano, em artigo publicado por Domani, 10-03-2024. A tradução é de Luisa Rabolini.
No contexto do conflito entre palestinos e israelenses, mas de forma mais geral na história da região marcada por conflitos, os escritos sagrados judaicos e cristãos (em menor grau os muçulmanos) desempenham um importante papel simbólico. No centro estão, de fato, os acontecimentos e o destino de Jerusalém, cidade e centro ideal da "terra de Israel" - Erétz Yisraél, a antiga Canaã - que no relato do Gênesis foi prometida por Deus a Abraão e tem sido disputada há séculos.
Muitas vezes conquistada, objeto de destruição e saques, esvaziada de seus habitantes forçados ao exílio, a antiga capital judaica inspira textos bíblicos e apócrifos, especialmente proféticos e apocalípticos, que transformam acontecimentos históricos de opressão em visões terríveis - mas também consoladoras - de fim dos tempos. "Se eu esquecer de ti, Jerusalém, que se esqueça de mim a minha mão direita" (ou seja, se paralise) relembra um exilado “ao longo dos rios da Babilônia” em um dos quinze salmos chamados “das subidas” porque eram repetidas pelos peregrinos ao subirem ao templo construído por Salomão. Séculos mais tarde, sob o domínio pagão, no final do encantador livro de Tobias – muito popular entre judeus e cristãos, que aparece entre os textos bíblicos de Qumran, mas é apócrifo na tradição judaica – um pequeno poema sobre a “cidade santa” amaldiçoa “todos aqueles que te destroem, que demolem os teus muros, destroem as tuas torres e queimam as tuas casas”. E termina com uma oração de encorajamento: “Minha alma, abençoe o Senhor, o grande rei, porque Jerusalém será reconstruída como cidade de sua morada para sempre”.
As mesmas ênfases e a projeção no futuro, presentes em vários profetas, são encontrados nos livros apócrifos e retomados no final do I século por um dos textos mais visionários e enigmáticos de toda a Bíblia, o Apocalipse. No final do livro atribuído ao apóstolo João, radicado na literatura apocalíptica judaica, Jerusalém desce do céu e não precisa mais do sol nem da lua porque “a glória de Deus a iluminou e a sua lanterna é o cordeiro”, isto é, Cristo.
Mas já décadas antes, por volta do ano 55, Paulo, o protagonista do precoce e complicado distanciamento da matriz judaica, na carta aos Gálatas contrapõe à “Jerusalém atual”, sujeita à lei, aquela “do alto”, livre. Dois anos depois, em 57, prepara-se para a viagem decisiva até Roma e escreve a sua carta mais importante, aquela aos cristãos que vivem na capital do império, que o apóstolo ainda não conhece e onde há dois séculos se estabelecera uma importante comunidade judaica.
E precisamente na carta aos Romanos, a reflexão de Paulo aprofunda “a sua visão do processo de uma salvação universal que tem no seu centro a necessária reconciliação de Israel e das nações", isto é, os pagãos, como sintetiza à margem da sua tradução para o francês o biblista judeu André Chouraqui. “Porque não quero, irmãos, que ignoreis este segredo (para que não presumais de vós mesmos): que o endurecimento veio em parte sobre Israel, até que a plenitude dos gentios haja entrado. E assim todo o Israel será salvo” (11,25-26), diz Paulo.
A carta aos Romanos é um texto fundador do Cristianismo e foi comentada por séculos por autores muito importantes, a tal ponto que uma resenha deles equivale a cobrir boa parte da teologia cristã, de Orígenes a Tomás de Aquino, de Lutero a Karl Barth. E do "mistério de Israel" abordado nos capítulos 9-11 faz parte essa previsão sobre o seu destino final, ligado ao da salvação de toda a humanidade - os "gentios" são na verdade os pagãos - num tempo que o apóstolo não precisa. Acontecerá no final, quando ocorrerá o advento definitivo do Messias?
Para além das interpretações da passagem paulina, é com base nele que na Inglaterra do século XVII e depois nas primeiras colônias americanas, alguns teólogos puritanos (William Gogue, Increase Mather) pensam sobre o retorno dos judeus à Palestina e sobre a sua conversão final, prelúdio do retorno de Cristo. E, no exterior, a fronteira é vista pelos pioneiros como uma nova terra prometida, prelúdio daquela identificação ideal entre América e Israel que acompanha o sionismo cristão das últimas décadas, muito criticado pelas suas implicações políticas tanto por cristãos como por judeus. Essas especulações da época moderna cruzam-se com as correntes milenaristas, que são caracterizadas pela espera do reino milenar de Cristo evocado pelo Apocalipse (20,4) já no cristianismo antigo e depois têm uma vida muito longa, embora marginal. Até se secularizarem ou se apresentarem em forma matizada, como no jesuíta chileno Manuel Lacunza, que morreu em Imola em 1801 após a expulsão da ordem dos domínios espanhóis: também para ele a conversão dos judeus deve preceder o reino milenar de Cristo. A sua ópera Venida del Mesías en gloria y magestad é posta no Index em 1824, mas tem ampla influência, e ainda em 1944 o Santo Ofício adverte que “o milenarismo mitigado" não pode ser ensinado sem perigo.
Poucos anos depois da condenação romana da obra de Lacunza, na Inglaterra o pastor anglicano dissidente John Nelson Darby, fundador da comunidade sectária dos Irmãos de Plymouth, elabora o "dispensacionalismo" (do termo dispensation, "ordenação" providencialmente predisposto por Deus). Baseada numa interpretação estritamente literal da Bíblia, essa teoria afirma que as profecias bíblicas sobre o retorno dos judeus à terra prometida estão destinadas a ser cumpridas historicamente antes do retorno de Cristo.
Graças às viagens de Darby aos Estados Unidos, o dispensacionalismo criou raízes nos país e durante o século passado difundiu-se entre os cristãos evangélicos, juntando-se ao controverso sionismo cristão e oferecendo aos "fundamentalistas uma nova e poderosa chave de leitura das Escrituras", como escreveu Massimo Giuliani em “Vita e Pensiero”. Dessa forma, de fato, os evangélicos contrastam a interpretação histórico-crítica da Bíblia, mas ao mesmo tempo também se distanciam do tradicional antijudaísmo cristão contido na "teologia da substituição", segundo a qual a igreja teria substituído Israel (mas que é contrária à visão da carta aos Romanos).
Mesmo depois do Holocausto, a teologia da substituição caracteriza a reação do Vaticano no mesmo dia da proclamação do estado de Israel. L'Osservatore Romano escreveu, em 1948, que “o Israel moderno não é o herdeiro do Israel bíblico. A Terra Santa e os seus lugares santos só pertencem ao cristianismo: o verdadeiro Israel”. No entanto, no final daquele mesmo ano foi lançado na França o livro – Jésus et Israël do historiador judeu Jules Isaac – que inicia a virada nas relações entre cristãos e judeus, decretada para os católicos pelo concílio e desenvolvida no meio século seguinte (no plano político, com a histórica assinatura em Jerusalém do acordo fundamental entre a Santa Sé e Israel durante o pontificado de Wojtyła).
Naqueles mesmos meses de 1948, Joseph Ratzinger, então com 20 anos, começa a estudar na faculdade teologia de Munique. Justamente então – recordou na sua autobiografia – “o Antigo Testamento tornou-se importante para mim e entendi cada vez mais que o Novo Testamento não é o livro de uma outra religião", ou melhor, judaísmo e fé cristã "são duas formas de tornar próprias as Sagradas Escrituras de Israel". Remonta àqueles anos distante, portanto, a convicção que o levou a ser o papa que mais trabalhou no plano teológico pela compreensão mútua entre igreja e sinagoga.
O filossemitismo cristão contemporâneo, no entanto, germina e reage ao tenaz antissemitismo na França dividida pelo caso Dreyfus graças a homens de letras como Léon Bloy e Charles Péguy. Ambos estão ligados a Jacques Maritain, o jovem dreyfusard que se casa com Raïssa Oumançoff – exilada de Mariupol e pertencente à “raça primogênita à qual Deus se confiou e que contemplou os seus Anjos” (Lettres intimes, Desclée de Brouwer) – e se torna outro protagonista do filossemitismo cristão.
O judaísmo, “como Buber o entende”, e o cristianismo, “como é interpretado e representado da igreja católica", são - segundo o teólogo suíço Hans Urs von Balthasar - "as duas últimas testemunhas no mundo de uma missão absoluta, confiada por Deus". Mas, em última análise, o destino futuro de ambos (e do mundo) permanece oculto no mistério de Israel anunciado por Paulo.
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A raiz do mistério de Israel no anúncio de Paulo aos Romanos. Artigo de Giovanni Maria Vian - Instituto Humanitas Unisinos - IHU