16 Dezembro 2023
"Era 1947, o horror do Holocausto ainda vibrava às nossas costas: em Seelisberg, no cantão suíço de Uri, judeus e cristãos reuniram-se para iniciar um encontro na escuta recíproca que mudaria lenta mas incisivamente a relação entre essas duas fés intimamente relacionadas entre si. No centro do debate não poderia deixar de dominar a figura de Jesus de Nazaré, que Martin Buber, o conhecido filósofo judeu personalista, em 1950 não hesitou em definir como seu 'irmão mais velho'.", escreve o cardeal italiano Gianfranco Ravasi, ex-prefeito do Pontifício Conselho para a Cultura, publicado por Il Sole 24 Ore, 10-12-2023. A tradução é de Luisa Rabolini.
Em diálogo. No ensaio de Fabio Ballabio e Massimo Giuliani, estudiosos das diversas orientações judaicas se confrontam com a figura de Jesus de Nazaré.
Fabio Ballabio e Massimo Giuliani (Org.). Gesù di Nazareth nel pensiero ebraico (Pazzini, 138 páginas) (Foto: Divulgação)
O filme Rapito de Bellocchio trouxe de volta um tema muito complexo e profundo, o do atormentado e secular confronto entre o judaísmo e o cristianismo. Na realidade, desde o tempo de Pio IX o diálogo conheceu uma virada radical.
Era 1947, o horror do Holocausto ainda vibrava às nossas costas: em Seelisberg, no cantão suíço de Uri, judeus e cristãos reuniram-se para iniciar um encontro na escuta recíproca que mudaria lenta mas incisivamente a relação entre essas duas fés intimamente relacionadas entre si. No centro do debate não poderia deixar de dominar a figura de Jesus de Nazaré, que Martin Buber, o conhecido filósofo judeu personalista, em 1950 não hesitou em definir como seu “irmão mais velho”. Nestas páginas, no último dia 26 de março, fizemos a resenha da reedição italiana do ensaio de outro judeu, Schalom Ben Chorin, emblematicamente intitulado Irmão Jesus (1967).
Fratello Gesù. Un punto di vista ebraico sul Nazareno (Foto: Divulgação | Editora Morcelliana)
Se quisermos chegar ainda mais próximos de nós, um importante testemunho de Agnes Heller, filósofa judaica húngara, dirigia-se para Jesus, o Judeu (Mimesis 2010), enquanto um dos maiores neotestamentistas católicos contemporâneos, o estadunidense John P. Meier, falecido no ano passado, elaborava uma imponente arquitetura crítica de cinco grandes tomos sobre Jesus como Um judeu marginal (Queriniana 1991-2017). A pesquisa histórica recente, de fato, recompôs claramente a continuidade entre o rabi de Nazaré e o judaísmo, uma conformidade muitas vezes velada ou dissolvida no passado, embora reconhecendo uma originalidade e dessemelhança indubitáveis, por vezes radicalizadas em certos âmbitos cristãos, mas também judeus.
John P. Meier. Un ebreo marginale. Ripensare il Gesù storico 5. L’autenticità delle parabole. Série Biblioteca di Teologia Contemporanea 186, Queriniana. (Foto: Divulgação)
Na história, portanto, a figura de Jesus foi “sinal de contradição”, como havia previsto Simeão, um velho observante judeu presente no Evangelho de Lucas (2,34). Por um lado, a cristandade não hesitou às vezes em pisar na tecla da apologética, como no duro Diálogo com Trifão de escritor Justino (por volta de 160), ou em certas páginas dos Evangelhos apócrifos, atitude que atravessou a própria literatura patrística e chegou até à modernidade com alguns movimentos cristãos fundamentalistas. Por outro lado, não se pode ignorar que – após o silêncio inicial sobre Jesus, visto como um rabino problemático – o próprio judaísmo medieval abraçou a polêmica aberta, como aconteceu naquela espécie de paródia dos Evangelhos que são as Toledôt Jeshu', “as gerações-genealogias de Jesus", na prática os eventos deformados de sua vida.
No entanto, deve ser reconhecido que, de acordo com o pensamento judaico, também se abriu um vasto horizonte de acolhimento, embora rajado de reservas. Hoje é representado pela galeria de retratos criada por dois apaixonados e competentes artífices do diálogo judaico-cristão, Fabio Ballabio e Massimo Giuliani. Um grande grupo de 14 estudiosos traçou igual número de esboços de personalidades das diferentes orientações judaicas que se confrontaram com Jesus de Nazaré, a partir do século XVI com o obscuro lituano Isaac de Troki e com um dos maiores rabinos da Renascença, o veneziano Leone Modena.
São muitos os nomes famosos: de Spinoza a Ernst Bloch, do já citado Ben Chorin a Jules Isaac e seu sugestivo Jesus e Israel (1948), do admirável tradutor em prosa rimada dos dois Testamentos, o franco-argelino André Chouraqui, a Géza Vermes, judeu húngaro que se tornou padre católico e estudioso dos manuscritos de Qumran, mas depois decidiu retornar ao judaísmo, casando-se e abandonando o sacerdócio. E ainda o problemático Eugenio Zolli rabino-chefe de Roma convertido ao catolicismo substituindo no batismo o seu nome Israel pelo do papa da época, Pio XII (Eugênio Pacelli). Ou também Jacob Neusner, judeu estadunidense caro ao Papa Bento XVI por suas obras Disputa Imaginária entre um Rabino e Jesus (Piemme 1996) e Um Rabino Fala com Jesus (San Paolo 2008).
Livro de Jules Isaac, intitulado Jesus e Israel (1948) (Foto: Divulgação)
O vienense-israelense Pinchas Lapide, que tem um belo retrato nessa coleção, num ensaio de 1975 já assinalava 187 livros, estudos, poesias, peças de teatro, monografias e ensaios sobre Jesus que haviam aparecido em hebraico, a partir da constituição do Estado de Israel em 1948. Pode-se, portanto, compreender como a galeria a que nos referimos poderia ser bastante ampliada. Surpreendeu-nos, porém, a ausência de duas figuras importantes que se confrontaram intensamente com Jesus. A primeira é aquela de Joseph Klausner que em 1922 publicou em hebraico, em Jerusalém, Jeshu' ha-nozrî, Jesus o Nazareno, “o primeiro livro sobre Jesus escrito por um judeu para judeus", como afirmava no prefácio.
A sua tese era clara: Jesus é autenticamente judeu, precisamente com base no exame crítico dos textos evangélicos; foi São Paulo quem o transformou recorrendo ao modelo greco-romano da divinização.
É famosa a síntese lapidar de Klausner: “A fé de Jesus nos une aos cristãos, a fé em Jesus nos divide." O outro autor que falta é David Flusser, que foi professor na Universidade de Jerusalém, com seu Jesus difundido desde os anos 1970 também na Itália. Segundo esse autor, Jesus levou as suas raízes espirituais e éticas judaicas ao florescimento mais fecundo com o mandamento do amor. Nele, no entanto, também brotou a consciência de ser o “Filho do Homem” messiânico e isso marcou a sua rejeição pela corrente judaica conservadora dos Saduceus.
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O acolhimento (com reservas) do Jesus judeu. Artigo de Gianfranco Ravasi - Instituto Humanitas Unisinos - IHU