28 Março 2023
Jesus judeu. O ensaio de Ben-Chorin destaca múltiplos atos e palavras de Cristo, como médico e mestre, que se referem à tradição judaica.
O artigo é de Gianfranco Ravasi, ex-prefeito do Pontifício Conselho para a Cultura, em artigo publicado por Il Sole 24 Ore, 26-03-2023. A tradução é de Luisa Rabolini.
“Um judeu marginal”: tão provocativamente intitulou sua pesquisa sobre o Jesus histórico um dos maiores biblistas estadunidenses, John P. Meier, que morreu no ano passado, cujos monumentais cinco volumes foram traduzidos pela Queriniana. Sim, porque é indiscutível que Jesus foi um judeu e uma linha de investigação exegética chamada Third quest (“Terceira pesquisa”), depois daquela racionalista do século XIX e da chamada Formgeschichte de viés mais teológico, se dedicou à reconstrução da fisionomia judaica do rabino de Nazaré. Seus pés estavam, de fato, firmemente plantados no terreno religioso e cultural do judaísmo do século I, apesar dos indubitáveis sinais de descontinuidade e originalidade da sua figura e da sua mensagem. Ao lado do Jesus histórico judeu, existe de fato, também um Jesus histórico “cristão”.
As suas raízes e ligações com o judaísmo estimularam assim a comparação com a sua pessoa de parte do pensamento judaico contemporâneo. A lista desses interlocutores é longa e já começa em Spinoza para chegar ao século passado com autores relevantes como Joseph G. Klausner (1874-1958), Jules Isaac (1877-1963), André Chouraqui (1917-2007), Pinchas Lapide (1922-1997), Geza Vermes (1924-2013), Jacob Neusner (1932-2016) e até um filósofo marxista como Ernst Bloch (1885-1977). Dentre eles, destaca-se, por sua simpatia e sintonia com Jesus, Schalom Ben-Chorin (1913-1999), cujo ensaio Fratello Gesù, publicado em alemão em 1967, agora está sendo reproposto com a versão italiana de Giuseppe Scandiani, na série Il Pellicano Rosso da editora Morcelliana.
Fratello Gesù (Foto: Divulgação | Editora Morcelliana)
Merece um aceno a biografia desse judeu nascido em Mônaco, com o nome de Fritz Rosenthal, de uma família que passou ao cristianismo, porém deixando esse filho insatisfeito, tão fascinado por sua matriz judaica a ponto de se fazer adotar por uma família de judeus ortodoxos e mudar seu nome para Schalom Ben-Chorin, ou seja, “Paz-Filho da Liberdade”. Quando Hitler entrou em cena, ele decidiu com seu famoso professor Martin Buber se mudar para Jerusalém em 1935, onde viveu pelo resto de sua existência, encadeando, porém, várias docências universitárias também na Alemanha agora livre do pesadelo nazista.
Como ressalta no seu prefácio Renzo Fabris que entre nós foi um artífice do mesmo empenho, Ben-Chorin dedicou-se a promover o diálogo judaico-cristão, dada a íntima conexão entre as duas religiões (não se deve esquecer que na liturgia católica dominical a primeira das três leituras bíblicas é retirada principalmente do Antigo Testamento). Elas, portanto, compartilham a mesma Revelação divina, a relativa história da salvação, a espera da plenitude escatológica do reino de Deus.
É central nesse cruzamento a figura de Jesus, “irmão” judeu devido à sua matriz, como se falava acima. Sem hesitar, Ben-Chorin escreve que “Jesus não é apenas irmão como homem, mas também irmão judeu. Sinto sua mão fraterna que me segura para que o siga. Não é a mão do messias, esta mão com as marcas das feridas. Certamente não é uma mão divina, mas uma mão humana, em cujas linhas é esculpida a mais profunda dor”.
Clara é, portanto, a consonância, mas também a dissonância e, portanto, a diversidade de abordagem, como ele afirmará com uma frase que se tornou famosa: “A fé de Jesus nos une, mas a fé em Jesus nos divide". Em seu ensaio, Ben-Chorin se dedica a refazer os múltiplos elos que palavras e atos de Jesus, médico e mestre, remetem à tradição judaica. Aliás, como o próprio rabino de Nazaré reitera, o destinatário privilegiado da sua missão é o povo judeu: “Não fui enviado exceto para as ovelhas perdidas da casa de Israel... A salvação vem dos judeus... Não é bom tomar o pão dos filhos e jogá-lo aos cães". E como o próprio autor confessa, “sempre e sempre encontro com Jesus, sempre e sempre dialogamos, tendo em comum a origem judaica e a esperança judaica do reino de Deus”.
Na sua análise dos Evangelhos não tem medo de encarar a figura de Jesus segundo a sua perspectiva, a partir do seu nascimento considerado “ilegítimo” (ao contrário de outros judeus que não excluem a ação do Espírito Santo no nascimento de personagens extraordinários). Escuta os seus discursos e as suas parábolas, segue os seus feitos milagrosos, convence-se de que, como rabino, fosse casado, procura penetrar em seu ânimo quando na cruz lança o apelo a um Deus silencioso e distante ("Deus meu, Deus meu, por que me abandonaste?"). Sugestiva é a livre interpretação do gesto da mulher que unge os pés de Jesus com perfume de nardo e os enxuga com seus cabelos (João 12,3): segundo Ben-Chorin, haveria uma referência não tanto ao futuro sepultamento de Cristo, mas à sua eleição como "novo Abraão", pai na fé. Essa leitura é justificada com base num comentário judaico ao livro do Gênesis, onde o patriarca bíblico é comparado a um frasco de perfume precioso que é aberto para espalhar a sua fragrância aromática por toda a terra e sobre os povos.
Finalmente, a reinterpretação da última ceia eucarística de Jesus é mais fundamentada, retomada na sua dimensão de comunhão entre cristãos e judeus: "Quando eu, no banquete pascal judaico, ergo o cálice e parto o pão ázimo, faço o que Jesus fez e sei estar mais próximo dele do que algum cristão que celebra o mistério da Eucaristia de forma totalmente distanciada da sua origem judaica".
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Filho de Deus e do povo eleito. Artigo de Gianfranco Ravasi - Instituto Humanitas Unisinos - IHU