Giorgio Agamben: Breves notas sobre o Estado de Exceção. Artigo de Alexandre Francisco

Arte: Wikimedia Commons

19 Novembro 2025

"O ordenamento político só se estabiliza porque inaugura, em sua base, um espaço de exclusão radical que lhe permite definir quem é plenamente humano e quem é relegado à condição de vida nua. O erro está na origem do estado, na sua forma inaugural. A exceção não se torna paradigma de governo (vir a ser), ela já é desde sua origem e constituição."

O artigo é de Alexandre Francisco, advogado, mestrando em filosofia pela Unisinos, membro da equipe do Instituto Humanitas Unisinos — IHU.

Eis o artigo.

O estado de exceção, tal como se consolidou na filosofia política contemporânea, não é apenas uma categoria jurídica abstrata, mas um instrumento concreto de governo que percorre a história moderna como uma sombra persistente. Ele surge como resposta a momentos de crise, mas se inscreve lentamente no próprio funcionamento do poder. O ponto de partida mais emblemático, aquele que Giorgio Agamben recupera em sua leitura genealógica, remonta à França revolucionária e à invenção do estado de sítio. Em julho de 1791, no calor da reorganização institucional, a Assembleia Constituinte criou um mecanismo que permitiria suspender a ordem constitucional diante de ameaça extrema. Era uma solução emergencial, pensada para casos excepcionais, mas, ao longo dos séculos XIX e XX, se tornaria um termômetro da vida política francesa.

A definição exata do que constituía um perigo tão grave a ponto de justificar a suspensão da Constituição sempre permaneceu vaga. Leis posteriores procuraram especificar isso. Em 1797, o Diretório introduziu a noção de état de siège fictif ou politique, ampliando a abrangência do estado de sítio mesmo quando não havia guerra iminente. Em 1811, Napoleão reforçou o mecanismo com um decreto que estruturava a transferência de poderes civis para autoridades militares. Paralelamente, outros dispositivos reforçavam a distância entre norma e poder. A Constituição de 22 frimário do ano VIII já continha uma brecha decisiva, admitia a suspensão do império da Constituição. A Charte de 1814 outorgava ao rei o direito de editar medidas para garantia da segurança do Estado, com uma formulação tão aberta que levou Chateaubriand a observar que toda a Carta poderia ser anulada em nome desse único artigo. Conforme afirma Agamben (2004, p. 24):

Depois de sua instituição pelo decreto da Assembleia Constituinte de 8 de julho de 1791, ele adquire fisionomia própria de état de siege fictif ou politique com a lei do Diretório de 27 de agosto de 1797 e, finalmente, com o decreto napoleônico de 24 de dezembro de 1811 (cf. p. 15). A ideia de uma suspensão da constituição (de l'empire de la constitution) havia sido introduzida, porém, como também já vimos, pela constituição de 22 frimário do ano VIII. O art. 14 da Charte de 1814 atributa ao soberano o poder de "fazer os regulamentos e os decretos necessários para a execução das leis e a segurança do Estado"; por causa do caráter vago da fórmula, Chateaubriand observava qu'il est possible qu'un beau matin toute la Charte soit confisquée au profit de l'article 14. O estado de sítio foi expressamente mencionado no Acte additionnel à constituição de 22 de abril de 1815, que restringia sua declaração a uma lei. Desde então, na França, a legislação sobre o estado de sítio marca o ritmo dos momentos de crise constitucional no decorrer dos séculos XIX e XX. Após a quedada Monarquia de Julho, no dia 24 de junho de 1848 um decreto da Assembleia Constituinte colocava Paris em estado de sítio e encarregava o general Cavaignac de restaurar a ordem na cidade. Na nova constituição de 4 de novembro de 1848, introduziu-se, pois, um artigo estabelecendo que uma lei definiria as ocasiões, as formas e os efeitos do estado de sítio. A partir desse momento, o princípio que domina (não sem exceções, como veremos) na tradição francesa (diferentemente da tradição alemã que o confia ao chefe do Estado) é o de que o poder de suspender as leis só pode caber ao próprio poder que as produz, isto é, ao Parlamento. A lei de 9 de agosto de 1849 (parcialmente modificada em sentido mais restritivo pela lei de 4 de abril de 1878) estabelecia, consequentemente, que o estado de sítio político podia ser declarado pelo Parlamento (ou, supletivamente, pelo chefe do Estado) em caso de perigo iminente para a segurança externa ou interna. Napoleão III recorreu com frequência a essa lei e, urna vez instalado no poder, na constituição de janeiro de 1852, confiou ao chefe do Estado o poder exclusivo de declarar o estado de sítio. A guerra franco-prussiana e a insurreição da Comuna coincidiram com uma generalização sem precedentes do Estado de exceção, que foi proclamado em quarenta departamentos e, em alguns deles, vigorou até 1876. Com base nessas experiências e depois do fracassado golpe de Estado de Macmahon, em maio de 1877, a lei de 1849 foi alterada para estabelecer que o estado de sítio podia ser declarado por meio de uma simples lei (ou, se a Câmara dos Deputados não estivesse reunida, pelo chefe do Estado, com a obrigação de convocar as Câmaras no prazo de dois dias), em casos de "perigo iminente devido a uma guerra externa ou a uma insurreição armada" (lei de 4 de abril de 1878, arc. 1).

Não era exagero. Em 1815, o Acte additionnel incluiu explicitamente o estado de sítio, restringindo sua declaração a uma lei. O tema aparecia sempre que o país enfrentava turbulências. Em junho de 1848, depois da Revolução de Fevereiro, a Assembleia Constituinte colocou Paris em estado de sítio, autorizando o general Cavaignac a agir livremente para restabelecer a ordem. A constituição de novembro de 1848 incorporou um artigo definindo que uma lei deveria determinar ocasiões e efeitos do estado de sítio. Aos poucos, criava-se um padrão, a crise política produzia o estado de exceção, e o estado de exceção moldava a resposta política possível.

Nesse ponto, a leitura de Carl Schmitt ajuda a iluminar o movimento subterrâneo que atravessa essa história francesa do estado de sítio. Para o jurista e filósofo alemão, não é por acaso que esse aparato se consolida justamente nos momentos de abalo, quando a ordem existente revela sua insuficiência diante da urgência. A crise não funciona apenas como cenário do estado de exceção, ela representa o seu motor decisivo. É na suspensão da normalidade, quando o perigo exige uma resposta imediata, que se torna visível quem detém o poder de decidir sobre a própria validade da Constituição. Schmitt insiste que o soberano é aquele que, diante do risco extremo, pode suspender a norma para garantir a continuidade política do Estado. Os mecanismos franceses, que ao longo dos séculos XIX e XX ampliaram, precisaram e flexibilizaram o estado de sítio, acabam funcionando como um laboratório histórico dessa tese. O que nasce como recurso emergencial destinado a tempestades políticas passa a integrar o funcionamento regular das instituições, altera a relação entre direito e poder e abre espaço para o cenário que Agamben identificará mais tarde como o paradigma contemporâneo do governo por crise.

Diferentemente da tradição alemã, onde a prerrogativa da suspensão do direito cabia ao chefe de Estado, na França prevaleceu o entendimento de que apenas o Parlamento poderia suspender leis. A lei de 9 de agosto de 1849, reformada em 1878, reconhecia que o estado de sítio poderia ser acionado em caso de “perigo iminente” para a segurança externa ou interna, incluindo insurreições armadas. Ainda assim, Napoleão III usou amplamente essa ferramenta e, já consolidado no poder, inseriu na Constituição de 1852 o dispositivo que lhe conferia exclusividade para declarar o estado de sítio. Isso tornava claro que, embora o Parlamento tivesse prioridade teórica, na prática o Executivo poderia tomar a dianteira quando julgasse necessário.

Com a guerra franco-prussiana e, depois, com a Comuna de Paris, o estado de exceção se generalizou de forma inédita. Chegou a abranger quarenta departamentos, alguns dos quais permaneceram sob regime excepcional até 1876. Após o fracassado golpe de MacMahon em 1877, ajustou-se novamente a legislação, permitindo que o estado de sítio fosse declarado por uma simples lei, ou, na ausência da Câmara, diretamente pelo chefe de Estado, desde que convocasse o Parlamento em dois dias. A exceção, aos poucos, deixava de ser um gesto extraordinário e começava a funcionar como uma peça estrutural da máquina estatal.

A reflexão de Agamben encontra aqui seu núcleo analítico, o estado de exceção é, ele escreve, o ponto de desequilíbrio entre o direito público e o fato político, uma zona onde o jurídico e o político se misturam de modo indiscernível. Como já afirmavam estudiosos como Fontana e De Martino, medidas excepcionais surgem de crises políticas, não de crises constitucionais. São jurídicamente formuladas, mas sua lógica não é propriamente jurídica. A suspensão do direito se apresenta como forma legal daquilo que não pode ser plenamente legalizável. Esse é o paradoxo que sustenta o raciocínio de Agamben, um ordenamento que se conserva justamente ao negar sua própria vigência.

Segundo opinião generalizada, realmente o estado de exceção constitui um “ponto de desequilíbrio entre direito público e fato político” (Saint-Bonnete, 2001, p.28) que — situa-se numa “franja ambígua e incerta, na intersecção entre o jurídico e o político” (Fontana, 1999, p.16). A questão dos limites toanar-se ainda mais urgente: se são fruto dos períodos de crise política e não no jurídico-constitucional (De Martino, 1973, p. 320), as medidas excepcionais encontram-se na situação paradoxal de medidas jurídicas que não podem ser compreendidas no plano do direito e o estado de exceção apresenta-se como a forma legal daquilo que não pode ter forma legal. (Agamben, 2024, p.12)

Essa dinâmica fica ainda mais evidente quando se observa sua relação estreita com guerras civis, insurreições e conflitos internos. O século XX fornece exemplos contundentes. O caso do regime nazista talvez seja o mais emblemático. Em 28 de fevereiro de 1933, um dia após o incêndio do Reichstag, Hitler promulgou o Decreto para a Proteção do Povo e do Estado, que suspendia liberdades individuais previstas na Constituição de Weimar. Essa suspensão, por definição provisória, nunca foi revogada. Legalmente, todo o Terceiro Reich pode ser descrito como um estado de exceção contínuo que durou doze anos. O que se produziu ali foi uma “guerra civil legal”, expressão empregada por Schnur para designar um sistema no qual o Estado usa mecanismos jurídicos para eliminar adversários, perseguir minorias e remodelar o corpo social segundo critérios políticos e raciais.

Essa prática não desapareceu com o nazismo. Desde então, tornou-se cada vez mais comum que Estados modernos criem estados de emergência permanentes, mesmo quando não os nomeiam formalmente como tais. Agamben observa que, à medida que falamos de uma “guerra civil mundial”, um conflito difuso, fragmentado e planetário, o estado de exceção deixa de ser uma resposta ocasional para tornar-se um método de governo. E, quando isso ocorre, a distinção clássica entre democracia e absolutismo perde nitidez. Governos eleitos democraticamente passam a operar com instrumentos que suspendem direitos, flexibilizam garantias e ampliam poderes executivos.

O caso dos Estados Unidos após os atentados de 11 de setembro ilustra bem esse deslocamento. O USA Patriot Act autorizou a detenção de estrangeiros suspeitos de ameaçar a segurança nacional, com prazo curto para formalização de acusações. Pouco depois, em novembro de 2001, o presidente George W. Bush assinou a Military Order que permitia a detenção indefinida de não cidadãos considerados suspeitos de terrorismo. Criaram-se comissões militares especiais e estabeleceu-se a possibilidade de manter indivíduos presos sem acusação formal. Foi assim que surgiram figuras jurídicas como a do detainee, nem prisioneiro de guerra, nem acusado, nem civil protegido por garantias constitucionais. Uma vida reduzida à sua vulnerabilidade, privada de qualquer enquadramento legal estável.

Agamben compara essa situação à dos judeus nos campos de concentração nazistas, que, mesmo sem cidadania, conservavam ao menos sua identidade étnica. O detento de Guantánamo, ao contrário, perde até isso, fica suspenso entre categorias, fora de qualquer estatuto jurídico reconhecível. A vida nua, conceito central na obra de Agamben, aparece ali com clareza extrema.

Essa discussão conduz à noção de “força de lei”. Em contextos excepcionais, afirma Agamben, a lei pode vigorar sem ser aplicada, e atos que não são leis podem adquirir força normativa. No limite, a força da lei se separa da própria lei, tornando-se um poder flutuante que o Estado pode acionar quando necessário. A experiência nazista sintetiza isso na frase repetida por Eichmann, “as palavras do Führer têm força de lei”. Carl Schmitt fornece o arcabouço teórico para essa leitura ao definir o soberano como aquele que decide sobre a exceção, e que, portanto, permanece simultaneamente dentro e fora da ordem jurídica.

Para ampliar esse panorama, Agamben recupera o antigo instituto romano do iustitium. Quando havia um perigo extremo, o Senado romano podia declarar que o direito estava suspenso. Não se nomeava ditadores, não se criavam novos cargos, apenas interrompia-se o funcionamento jurídico. O iustitium criava um espaço de anomia total onde atos não eram ilegais, mas também não eram propriamente legais. Situavam-se num território intermediário que escapava a categorias jurídicas tradicionais. Esse vazio é interpretado por Agamben como estrutural para o direito, que, para se afirmar como sistema, precisa também produzir sua própria suspensão controlada, sua zona cinzenta, seu “grau zero”.

Essa constatação leva a uma conclusão perturbadora, o estado de exceção não é apenas uma resposta emergencial, mas um elemento constitutivo do governo moderno. É parte da arquitetura do poder, um recurso sempre à mão, pronto para ser acionado diante de qualquer sinal de instabilidade. A advertência final vem de Carl Friedrich, que já em 1941 observava que não há salvaguarda institucional capaz de impedir que poderes de emergência sejam usados contra a própria Constituição. Tudo depende da vigilância do povo e do contexto político. Se condições favoráveis surgirem, instrumentos como lei marcial, estado de sítio ou poderes extraordinários podem se converter rapidamente em ferramentas de governo totalitário.

Proposta de uma nova reflexão a partir de Agamben

A reflexão sobre o estado de sítio como mecanismo político permite compreender como, ao longo da modernidade, ele se tornou uma ferramenta estratégica para a reorganização do poder em momentos de instabilidade. No exame de Karl Marx sobre o golpe de Luís Bonaparte, o estado de sítio surge como dispositivo central da classe burguesa para sufocar levantes operários e assegurar a manutenção da ordem conforme seus interesses. Após 1848, a burguesia francesa recorreu repetidas vezes a esse instrumento para conter a classe trabalhadora, reforçando o vínculo entre governo, elites econômicas e forças militares. O resultado desse arranjo foi a consolidação de um regime no qual a suspensão contínua das liberdades passou a atuar como regra tácita de funcionamento, abrindo espaço para o autoritarismo bonapartista e para a militarização crescente da esfera pública.

O estado de sítio de Paris foi a parteira que ajudou a Constituinte no trabalho de parto da sua criação republicana. Mesmo que a Constituição mais tarde tenha sido eliminada pela baioneta, não se pode esquecer que foi igualmente pela baioneta, mais precisamente, pela baioneta voltada contra o povo, que ela teve de ser protegida já no ventre materno e foi pela baioneta que ela teve de ser trazida ao mundo. Os antecessores dos “honoráveis republicanos” haviam feito com que o seu símbolo, a tricolor, percorresse toda a Europa. Estes, por seu turno, produziram uma invenção que por si mesma traçou o seu caminho por todo o continente, mas sempre regressou à França com amor renovado, até adquirir direito de cidadania na metade dos seus departamentos: o estado de sítio. Excelente invenção, periodicamente utilizada em cada crise subsequente no curso da Revolução Francesa. Porém, caserna e bivaque, que eram postos periodicamente sobre a cabeça da sociedade francesa para comprimir o seu crânio e emudecê-la; sabre e mosquete, aos quais periodicamente se permitia que julgassem e administrassem, tutelassem e censurassem, fizessem o trabalho da polícia e dos vigilantes noturnos; bigode e farda, que periodicamente eram trombeteados como a suprema sabedoria da sociedade e como regentes desta – não acabaria ocorrendo necessariamente à caserna e ao bivaque, ao sabre e ao mosquete, ao bigode e à farda que seria preferível salvar a sociedade de uma vez por todas, proclamando o seu próprio regime como o regime supremo e livrando a sociedade burguesa inteiramente da preocupação de governar a si própria? A caserna e o bivaque, o sabre e o mosquete, o bigode e a farda necessariamente acabariam tendo essa ideia, tanto mais porque, nesse caso, poderiam esperar melhor remuneração em dinheiro devido ao merecimento majorado, ao passo que, no caso do estado de sítio apenas periódico e dos salvamentos momentâneos da sociedade por solicitação dessa ou daquela facção da burguesia, pouca coisa sólida sobrava além de alguns mortos e feridos e algumas caretas amistosas dos cidadãos. Os militares não deveriam, enfim, agir também no seu próprio interesse, brincando de estado de sítio e sitiando ao mesmo tempo as bolsas burguesas? (MARX, 2011, p. 46).

A análise de Marx revela que, ao entregar aos militares a tarefa de garantir a “ordem”, a burguesia fortaleceu um ator político que logo se voltou contra ela, culminando na ascensão de Bonaparte. O estado de sítio, nesse sentido, deixou de ser um dispositivo emergencial e passou a operar como técnica regular de governo. Essa leitura se articula com a maneira como Giorgio Agamben compreende o Estado de exceção: um mecanismo que, longe de ser excepcional, torna-se estrutural ao Estado moderno, cuja estabilidade depende da possibilidade sempre disponível de suspender a ordem jurídica.

A metáfora que descreve a exceção como uma espécie de “bolsa de veneno” inserida deliberadamente no ordenamento jurídico ajuda a esclarecer por que ela não pode ser entendida como um processo espontâneo ou patológico. O Estado de exceção não brota de dentro da ordem normativa como uma doença; ele é introduzido por decisão soberana, ativado intencionalmente para reorganizar a estrutura política quando interessa ao poder instituído. Seu acionamento produz uma segunda crise maior que a primeira, deslocando a normatividade democrática e concentrando poderes no Executivo. Muitas vezes, a primeira crise sequer existe: é fabricada para legitimar a necessidade da suspensão.

Uma vez instaurado, o Estado de exceção constrói uma zona de indistinção entre direito e política, na qual instituições se esvaziam e a normatividade se torna secundária diante da decisão soberana. A crise inicial não é resolvida; ela é substituída por uma crise permanente, que aprofunda a fragilidade democrática e abre espaço para regimes oligárquicos ou personalistas. A história mostra que, quando o capitalismo entra em turbulência, o fascismo tende a emergir utilizando os próprios dispositivos constitucionais para corroer a democracia de dentro para fora, dando aparência de legalidade à dissolução de direitos fundamentais.

Nesse panorama, a figura do homo sacer, retomada por Agamben a partir do direito romano, oferece uma chave para compreender o funcionamento da soberania moderna. Trata-se da vida reduzida à sua nudez biológica, despojada de proteção jurídica, incluída no ordenamento apenas pela via da exclusão. O homo sacer é aquele cuja morte não constitui crime, justamente porque sua existência foi previamente destituída de valor dentro da ordem política. Ele representa não uma exceção histórica, mas um paradigma silencioso do funcionamento do poder soberano.

Agamben demonstra que essa figura não pertence ao passado: ela se manifesta nos campos de concentração, nos refugiados sem Estado, nos pobres criminalizados, nos corpos racializados, nos governados sob ocupação. São vidas que sobrevivem fora da lei, mas nunca fora do poder, revelando o núcleo operativo da soberania: a capacidade de decidir quem pertence e quem pode ser abandonado. Nesse sentido, a exceção não rompe a ordem liberal; ela funda essa ordem, pois a normalidade só se mantém mediante um espaço permanente de abandono.

Essa compreensão também permite reformular a crítica dirigida a Agamben, segundo a qual a exceção não estaria oculta na ordem jurídica, mas já prevista e positivada, como indica a tradição schmittiana. Assim, o soberano não inventa a exceção: ele apenas aciona o dispositivo que já está inscrito na estrutura constitucional. Isso significa que a antinomia entre norma e exceção permeia a própria forma do Estado moderno, que abriga em si tanto a promessa democrática quanto o poder de se autossuspender. Por isso, Marx e Agamben convergem ao mostrar que, quando o direito se dobra ao interesse soberano, o que emerge é a face coercitiva do Estado, aquela que transforma a vida em matéria governável e os cidadãos em sujeitos sempre à beira da exclusão.

Conclui-se portanto que a exceção não é, como a retórica liberal gostaria de sustentar, um desvio temporário da normalidade institucional; ela é a condição de possibilidade da própria normalidade. Em outras palavras, o ordenamento político só se estabiliza porque inaugura, em sua base, um espaço de exclusão radical que lhe permite definir quem é plenamente humano e quem é relegado à condição de vida nua. O erro está na origem do estado, na sua forma inaugural. A exceção não se torna paradigma de governo (vir a ser), ela já é desde sua origem e constituição. 

Referências

AGAMBEN, Giorgio. Estado de exceção. 2. ed. São Paulo: Boitempo, 2004.

AGAMBEN, Giorgio. Homo sacer: o poder soberano e a vida nua I. 2. ed. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2024.

MARX, Karl. O 18 Brumário de Luís Bonaparte. Tradução de Nélio Schneider. São Paulo: Boitempo, 2011.

SCHMITT, Carl. Teologia política: quatro capítulos sobre a doutrina da soberania. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2006.

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