Os tempos são desumanizantes, mas o Deus-Menino renova as esperanças – Ele é a Luz do mundo

O Advento nos convida a cultivar a sensibilidade contemplativa para humanizar o que está ferido e despedaçado

Arte: Mateus Dias | IHU

Por: Patricia Fachin | 24 Dezembro 2025

Diversos artigos publicados na página eletrônica do Instituto Humanitas Unisinos – IHU nas últimas semanas compartilham como pano de fundo uma pergunta que a cultura da nossa época já não sabe ou titubeia em responder: o que é o Advento?

Com origem no termo latino adventu, esta palavra significa “chegada”, explica Fabian Brand, professor de dogmática na Faculdade de Teologia Católica da Universidade de Bochum, Alemanha. Advento também quer dizer vinda, aquilo que está porvir. Para os cristãos, explicita o docente, trata-se da “chegada de Cristo ao mundo — sua chegada a Belém e sua chegada no fim dos tempos”.

Em contextos ideológicos, no entanto, o Advento é “despojado de seu significado cristão”, acrescenta o teólogo, ao comentar como a ideologia nazista transformou este tempo em um “período pré-natalino”. A mudança do termo, menciona, atendia aos propósitos do nacional-socialismo: “uma festa da maternidade universal, uma festa da árvore de Natal, uma festa do solstício de verão”. 

A ideologia nazista ficou para trás. Quase um século nos distancia dela, ainda que novos líderes políticos busquem atualizá-la a seu modo no primeiro quarto deste século. O distanciamento do significado do Advento, por outro lado, lamenta Brand, “é, pelo menos em parte, mantido”. O verdadeiro espírito do Advento, afirma, foi substituído e “dezembro é visto meramente como um tempo de preparação para o Natal”. Um tempo de consumo, de boas festas, de resolução de todas as pendências antes do encerramento do ano, de descanso, de pausa para retornarmos às atividades frenéticas que nos esperam no próximo ano. Mudaram as palavras e, com elas, o espírito.

A ativação de uma “nova sensibilidade contemplativa” é vital para “perceber a misteriosa ação de Deus em nosso mundo, marcado pela injustiça, pela violência, pela cultura da indiferença, do preconceito e da intolerância”, disse o teólogo e padre jesuíta Adroaldo Palaoro, semanas atrás, ao refletir sobre o evangelho do 3º Domingo do Tempo do Advento nesta página.

Para uma sociedade que se diz majoritariamente cristã, como a brasileira, mas dá sinais de contratestemunho, Palaoro propõe uma questão a ser meditada e praticada, antes de ser respondida: que obras em favor da vida os seguidores do Messias podem mostrar? Que mensagem libertadora as pessoas podem escutar de nós?

Tempos desumanizantes

Se, de um lado, o Advento nos convida a uma nova sensibilidade para acolher a Vida, de outro, o atual momento histórico “parece bastante desesperançoso”, constata Daniel P. Horan, diretor do Centro de Estudos da Espiritualidade e professor de filosofia, estudos religiosos e teologia no Saint Mary's College em Notre Dame, Indiana, nos Estados Unidos. E mais do que isso: “a oportunidade de parar, refletir e se renovar parece um luxo caro demais para se permitir”, sublinha. Os tempos que vivemos hoje, destaca Horan, são “desumanizantes”. 

No sentido dessa palavra, o teólogo inclui o desprezo por aqueles que são tratados com desrespeito e repulsa pelos poderosos: “imigrantes, refugiados, pobres, qualquer população minoritária”. “Não só há a ausência de caridade e amor pelos mais vulneráveis entre nós, como também testemunhamos, com muita frequência, hostilidade explícita, retórica desumanizadora e políticas e práticas cruéis”, denuncia. Mas o Advento, relembra, “nos oferece um espaço para examinarmos nossa consciência individual e coletiva, para nos arrependermos e retornarmos ao Evangelho, e para nos esforçarmos, com ainda mais sinceridade, para encarnar a luz de Cristo que livremente entrou em nosso mundo ferido e despedaçado”.

Uma provocação com o intuito de despertar a sensibilidade para a brutalidade dos nossos tempos foi feita pela comunidade da Paróquia de Santa Susana, em Dedham, no estado americano de Massachusetts. Habituados a esse tipo de manifestação pública no Advento, este ano os paroquianos substituíram a Sagrada Família do presépio pela placa que informa: “O ICE esteve aqui”. A mensagem é uma crítica ao serviço de imigração americano e às inúmeras abordagens que trataram as pessoas de forma truculenta ao longo do ano. A iniciativa dividiu opiniões dentro e fora da Igreja. Segundo o pároco Stephen Josoma, “a esperança era criar um diálogo sobre a vida contemporânea” à luz do nascimento de Cristo. O tema, disse ele à mídia local, "praticamente se impôs a nós”. A comunidade assiste refugiados e imigrantes. 

Presépio na Paróquia de Santa Susana (Foto: Reprodução)

A seu modo, a iniciativa da Paróquia de Santa Susana tentou chamar atenção para o mesmo ponto expresso na reflexão do ator italiano Roberto Benigni neste Advento. “A revolução de Jesus foi a invenção do amor e, portanto, também da fraternidade e da solidariedade. Porque o cristianismo não é uma adesão a certas regras, mas uma revolução do amor. Jamais teria ocorrido a Jesus usar a guilhotina contra seus inimigos, porque ele proferiu a frase mais revolucionária, sublime e memorável da história da humanidade e do pensamento humano: ‘Ame o seu inimigo’. É uma frase que divide a humanidade em duas. Uma frase sublime, e não conseguimos alcançá-la justamente por ser sublime demais”.

Violências em tempo de Advento

O amor “inventado” por Jesus, como disse o ator consagrado por interpretar um pai que utiliza todos os recursos imaginativos para proteger o filho do terror da Segunda Guerra Mundial, em A Vida É Bela (1999), é oposto às agressões físicas, psíquicas e verbais que são praticadas dentro de muitos lares brasileiros, dos quais são extraídos dados que aumentam as estatísticas de feminicídio e violência no país. Somente neste tempo de Advento, em dezembro, inúmeros casos foram registrados na imprensa, demonstrando a fúria interior que toma conta de pessoas aparentemente normais. Sérgio Barcellos, professor de sociologia na Universidade Federal da Paraíba (UFPB), compilou alguns episódios que se reproduziram nos estados brasileiros neste mês: 

“Em São Paulo, uma mulher de 31 anos foi atropelada e arrastada por cerca de um quilômetro pelo ex-companheiro, sobrevivendo, mas tendo as duas pernas amputadas; em Goiás, uma jovem de 19 anos foi morta a facadas por um cliente, que não aceitava o fim da relação e Rosilene Barbosa foi assassinada a tiros pelo ex-marido após anos de ameaças em Rio Verde; em São Paulo, Tatiana Correia dos Santos foi morta em Cordeirópolis; no Distrito Federal, Jane Oliveira foi assassinada pelo namorado; e no Rio Grande do Norte, Maria das Vitórias da Silva foi assassinada pelo ex-companheiro”.

Os episódios, destaca o sociólogo, apresentam “a reincidência de padrões estruturais: vínculos afetivos marcados por controle, ameaça, agressões denunciadas e ignoradas, medidas protetivas ineficazes e a presença constante do companheiro ou ex-companheiro como autor (8 de cada 10 casos). Cada novo caso expõe a mesma chaga social, a insuficiência imperativa da rede de proteção e o modo como o Estado brasileiro sistematicamente falha em garantir o direito elementar das mulheres à vida em nossa sociedade”.

A crueldade manifesta-se no âmbito pessoal e institucional. Assim tem sido com os povos indígenas, que “sofrem longo processo de esbulho e de violência”, disse a Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), ao chamar atenção para a votação do marco temporal no Supremo Tribunal Federal (STF) recentemente. “Comunidades aguardam há décadas para que o Estado brasileiro reconheça que a terra que ocupam é indígena. O problema não está no ato administrativo, mas na falta de vontade e de determinação política”, declaram os bispos. Para as comunidades, este tempo de espera talvez possa significar mudanças futuras depois de o STF derrubar a tese jurídica do marco temporal na última quarta-feira, 17-12-2025. A bancada ruralista, no entanto, não pretende dar trégua ao impasse e promete retomar a pauta no Congresso. 

Se um alento chegou para os povos indígenas, o mesmo não pode ser dito para comunidades que sentem os efeitos da mineração dentro de casa. Enquanto o Brasil se engaja nas discussões sobre a transição energética e busca elaborar um mapa do caminho para enfrentar as mudanças climáticas, no Vale do Jequitinhonha, em Minas Gerais, moradores de Araçuaí e Itinga vivem este tempo de Advento com sobressalto. “Temem que o teto caia sobre suas cabeças”, informa a reportagem de Rafael Oliveira e José Cícero, da Agência Pública. 

A preocupação decorre dos impactos socioambientais gerados pela extração de lítio, mineral crítico considerado estratégico para a transição energética. “Há semanas não se escuta o barulho da mineradora, mas a preocupação com as rachaduras das casas, causadas por anos de detonações, é maior do que o alívio momentâneo. Ninguém sabe o que vai acontecer daqui para frente”, dizem os repórteres. Uma das fontes entrevistadas pela reportagem, a aposentada Maria de Fátima, expressa o sentimento de temor da comunidade. “Eu quero sair, mas eu não tenho condição, nem de consertar minha casa e nem de comprar outra. Só tenho se eles pagarem, porque foram eles que quebraram minha casa. Eu tenho medo que ela caia em cima da gente de noite”.

Este breve depoimento sugere, como disse o monge beneditino Marcelo Barros, que “o anúncio do Natal de 2025 vem junto com sinais do agravamento da crise ecológica. Ocorre em meio a mais de 50 guerras no mundo e ameaças de novas intervenções do Império na América Latina e Caribe”.

Mas os conflitos, reage vivamente Frei Luiz Carlos Susin, professor de teologia da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS), “estão por toda parte”. Ele os exemplifica para não nos iludirmos: “na família, nos laços afetivos, nos trabalhos que precisam dar conta do custo de viver, no diário de notícias de um mundo que insiste na corrupção e na injustiça”. Confrontados com essa realidade, adverte, não podemos cair na “melancolia do Natal”, num “passado” e numa “saudade do que na verdade nunca fomos”. 

Do outro lado do mundo, em Gaza, onde mais de dois milhões de pessoas ainda sofrem os efeitos da guerra entre Israel e Hamas após o cessar-fogo iniciado em 9 de outubro, os palestinos vivem este tempo em meio aos escombros, doenças respiratórias, desnutrição e falta de acesso à água potável. Apesar da calamidade, “eles vão celebrar o Natal”, disse Pe. Ramanelli, pároco da Igreja da Sagrada Família em Gaza. Dias atrás, a região foi tomada por uma tempestade de inverno e queda da temperatura. “A situação foi tão grave que uma menina de oito meses morreu congelada nos braços da mãe, em uma tenda em Khan Yunis”, cidade palestina no sul da Faixa de Gaza, informou Bianca Senatore, do jornal italiano Domani.

O Superior Geral dos Jesuítas, padre Arturo Sosa, visitou a Terra Santa no mês passado e retornou com um apelo à toda a Companhia: ampliar a missão nesta zona de fronteira, a fim de contribuir para a restauração da reconciliação e da justiça. Este tempo de Advento é “uma oportunidade para uma reflexão profunda, um tempo para que nossa família humana global se afaste da tentação de resolver diferenças pela força e pelo desprezo! Que possamos, em vez disso, escolher um caminho de paz que inclua reconciliação e liberdade! Que a luz do Advento nos traga perseverança, humildade e um compromisso inabalável com a verdadeira paz!”, disse em Carta endereçada aos coirmãos. 

Celebrar o Natal em um mundo convulsionado 

Como experimentar o sentido do Natal neste mundo convulsionado? Como transformar o nascimento de Jesus em um renascimento da fé, da esperança e da solidariedade? Às perguntas da Revista IHU On-Line deste mês, Alfredo J. Gonçalvez, padre scalabriniano, responde dirigindo o olhar para a gruta de Belém. “A gruta de Belém torna-se o berço onde vem à luz e se fortalece o núcleo do Reino de Deus. As parábolas de Jesus, aliás, vão expressar uma máxima que se transforma em refrão: a semente, por mais simples e pequena que seja, contém o potencial de uma nova vida”, assegura.

Acesse aqui a Revista IHU On-Line

Com essa imagem, ele crítica a criação de bodes expiatórios, nos convida a reconhecer Cristo como a luz do mundo e ver na dignidade humana de cada pessoa a vida que pode florescer. “O Natal que celebramos a cada ano torna-se uma espécie de trampolim para o grande e definitivo NATAL, um projeto de cuidado, de abertura, de bem-viver e de convivência com todas as formas de vida, a biodiversidade. Um projeto não só para um punhado de milionários e bilionários que tentam se apossar da renda e da riqueza. Mas para ‘todos os seres vivos’ e para ‘as gerações futuras’, conforme se lê no relato da aliança de Deus com o patriarca Noé, simbolizado pelo arco-íris (Gn 9, 12, 17)”, resume. 

Asi se ve el muro que el apartheid sionista en Belen, Cisjordania (Palestina). Este muro sionista en Cisjordania es 23 VECES MÁS LARGO y el DOBLE DE ALTO que el muro de BERLIN... pero casualmente no indigna a la "prensa libre" y todos los gobiernos occidentales apoyan el muro. pic.twitter.com/zzPxWBcUBA — Daniel Mayakovski (@DaniMayakovski) December 18, 2025

Apesar do acontecimento que dá origem à celebração natalina, recorda Susin, esta “não é uma festa triunfal de origens”. Ao contrário, “é o primeiro passo de um caminho divino sobre a terra. É o começo de uma vida cotidiana em Nazaré sob o peso do império romano e da hipocrisia de muitos religiosos, é o começo de uma missão cheia de trabalho e fadiga na dependência da adesão e da generosidade de outros”. 

O Natal, esclarece o teólogo, está diretamente conectado à celebração da Páscoa. “Por isso o Natal, não sendo uma festa de origens, não é um convite a olhar para o passado. É o convite a começar a olhar para o compromisso de Deus com o futuro da terra, dos que peregrinam em aflições. Natal é apenas o começo de um caminho em que o principal está no futuro, no ‘por-vir’ da Páscoa, em Pentecostes”.

Trilhar este caminho segundo a espiritualidade cristã, complementa o filósofo e irmão Alvim Aran, formado pelo Seminário Provincial Sagrado Coração de Jesus, em Diamantina/MG, retomando Gustavo Gutiérrez, significa “não fugir do mundo, mas entrar nele e assumi-lo à luz da Palavra. A verdadeira espiritualidade não se separa da história, mas a transforma”. A espiritualidade deste tempo que estamos a viver, acrescenta, “é precisamente isso: dispor o coração para a chegada do Deus-Menino”. 

Nesse itinerário, Maria é quem melhor nos ensina, disse Lúcia Pedrosa-Pádua, professora de teologia da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio), no painel sobre “Maria, mulher (do) Advento e devoções marianas. Diálogos com a nota Mater Populi Fidelis”, promovido pelo IHU nesta semana. “É no Advento que Maria surge na nossa compreensão de forma mais clara. Ela é mulher do Advento. Sempre. Esta mulher, Maria, está profundamente enraizada na esperança e na história do seu povo por um tempo messiânico. Ela proclamou que nela se cumpria a promessa aos nossos pais, como nos fala o cântico do Magnificat, no Evangelho de Lucas. Hoje, ela está profundamente enraizada na esperança e na história do nosso povo, especialmente, o povo latino-americano”, assinala. 

É sobre a vida desse povo que, em muitos bolsões de pobreza, violência e destruição, vive à margem e excluído, agarrado unicamente à fé e à esperança, que o último episódio do IHUCast deste ano reflete. A edição que vai ao ar neste sábado percorre as celebrações populares do Brasil profundo para mostrar que o "o nascimento de Jesus não é um evento estático em um cartão-postal", mas "um movimento extracotidiano que muda a paisagem sonora e estética do lugar”. 

Enraizados no espírito do Advento, o Instituto Humanitas Unisinos – IHU deseja a todas e todos um Feliz Natal e um Ano Novo de paz, com os votos de que amadureça "a cada instante a esperança de um mundo novo, povoado de irmãos", como anseia o cântico cristão.

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