Um auto de natal nordestino: Morte e Vida Severina. Por Faustino Teixeira

Assim como o Natal, o poema de João Cabral de Melo Neto mostra que "vida aparece para se contrapor à neblina de uma trajetória que se depara cada vez mais com a morte", lembra o teólogo

Reprodução de parte da obra Os Retirantes, de Cândido Portinari | Foto: Pedro Campos/ Elizabeth Kajiya/ Marcia Rizzuto (IFUSP)/MASP

Por: Edição: Cristina Guerini | 19 Dezembro 2025

Em vez dos sinos, a secura da caatinga. Em lugar da manjedoura de palha, o barro frio do mocambo. É assim que João Cabral de Melo Neto nos convida, ou melhor, nos convoca, a adentrar a liturgia de seu Auto de Natal – um canto lírico talhado a faca, onde a esperança é uma semente teimosa no solo árido, mas fecundo do nordeste.

O Natal, para João Cabral de Melo Neto, não é uma festa de luzes mansas e presépios adornados. É, antes, a realidade iluminada pelo sol nordestino a incidir sobre a paisagem árida e sobre a face do retirante. Em seu singular "auto de Natal", a poesia recusa o sentimentalismo fácil para construir uma reflexão poético-política de aguda precisão. A expectativa tradicional de um milagre doce, com reis magos e bois, é quebrada, cedendo espaço à "representação muito cruel da vida nordestina (...), o auto de João Cabral acontece em território de carência e sofrimento, onde a morte é a nota comum", como nos conta Faustino Teixeira.

Um poema que transcende a simples narrativa para se tornar uma profunda reflexão sobre a condição humana. O personagem central, Severino, é o retirante nordestino anônimo, que foge da seca e da morte no agreste em busca de uma vida melhor no litoral. Severino é uma esperança de que a vida, mesmo em condições adversas, tem o poder de se renovar. Ele nos lembra que a luta pela existência é, em si, um ato de resistência e um valor a ser cultivado. Severino mostra que na fé, o desejo de vida se sobrepõe à morte. "Morte e vida severina é um auto de Natal que permanece sempre atual, trazendo uma mensagem de vida e esperança. É uma narrativa corajosa e ousada, que não se curva diante da dura realidade de opressão, sofrimento e dor dos desvalidos e excluídos do Terceiro Mundo. Trata-se de um canto de vitalidade, que suscita resiliência e empenho a favor de um mundo diferente e mais solidário. É um canto de amor que nos ajuda a aprender sempre a 'dançar sobre os escombros'", sinaliza o teólogo.

Do sertão à beira d'água, o drama severino persiste, onde a morte anuncia o fim, a resiliência se apresenta como vida. No ciclo infindável de penúria e luto sem cor, o nascimento de um menino reacende o amor. Ali, a fé dos marginalizados tece o amanhã, sempre de novo.

***

Neste Natal, o Instituto Humanitas Unisinos – IHU busca, por meio de suas publicações, resgatar a memória cultural do Brasil e a esperança do Menino que renasce a cada ano. Para celebrar a chegada de Jesus no Brasil profundo, convidamos Faustino Teixeira a escrever uma reflexão para lembrar o Auto de Natal de João Cabral de Melo Neto, Morte e Vida Severina

Faustino Teixeira é colaborador do IHU e do Canal Paz e Bem. Possui graduação em Ciência das Religiões pela Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF), graduação em Filosofia pela mesma instituição, mestrado em Teologia pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio) e doutorado em Teologia pela Pontifícia Universidade Gregoriana, de Roma. É professor emérito da UFJF, no PPG em Ciência da Religião.

Eis o texto.

“... mesmo quando é a explosão
de uma vida severina”

Introdução

Morte e Vida Severina, de João Cabral de Melo Neto, revela-se um auto de Natal singular e provocativo. Diferentemente de outras representações do Natal, esse não tinha o tradicional presépio com os animais – burrinhos e bois -, os reis magos ou menino Jesus. Tanto assim, que a própria Maria Clara Machado, que tinha encomendado a peça, veio tomada por decepção. Ela esperava algo diverso. O que se apresentava para ela, ao contrário do que imaginava, era uma “representação muito cruel da vida nordestina” (MARQUES, 2021, p. 255).

O auto de Natal de João Cabral tinha o dom da criatividade, mesclando traços do folclore nordestino com passos da tradição ibérica (MELO NETO, 2020, p. 13). Tratava-se de um caminho original, num texto dramático que se colocava em diálogo com a produção culta. O poeta ficou insatisfeito com o resultado, pois o seu texto não surtiu o efeito esperado para o público ao qual foi destinado, os ouvintes do romanceiro de cordel. Esse Brasil popular, segundo João Cabral, não manifestou interesse pelo texto, mas sim o Brasil das capitais (MELO NETO, 2020, p. 847).

A arte de João Cabral na rica construção poética empreendida com Morte e vida severina, revela-nos como é possível elaborar uma rica reflexão poético-política sem o enquadramento pobre da tradicional literatura proletária. Assim como o romance Vidas Secas, de Graciliano Ramos, o auto de Natal de João Cabral é uma demonstração viva “de que a fatura artística pode servir para impulsionar o conteúdo político de uma obra, mas o contrário é muito difícil de acontecer” (BUENO, 2015, p. 664).

Estamos diante de uma literatura singular, com um apelo que é universal. Como indicou Antonio Candido, a literatura envolve “todas as criações de toque poético, ficcional ou dramático em todos os níveis de uma sociedade, em todos os tipos de cultura, desde o que chamamos folclore, lenda, chiste, até as formas mais complexas e difíceis da produção escrita das grandes civilizações” (CANDIDO, 2017, p.176).

O auto de Natal

Foi em Recife que nasceu João Cabral de Melo Neto, em janeiro de 1920. Ele nasceu na casa de seu avô, no bairro da Jaqueira, bem junto ao rio Capibaribe. Nos primeiros anos de vida, o poeta vai passar

entre essa casa no Recife e os engenhos. É natural que o menino guarde na memória o rio, o canavial, o mar, o retirante, a faca, o risco, o casaco, a cigana, os enterros, a cana, o mangue, as igrejas, o sol, a lama, o eito, o alpendre, o cacto, as frutas, a usina, a moenda, a maré, a pedra, o cordel, o mocambo, a seca, a rezadora, a emboscada, o defunto, a rede, o latifúndio, a fome, o coveiro, a mortalha, a caatinga, a água, a luz, a lâmina (...). Tudo isso deixa a sua marca” (TENÓRIO, 1996, p. 50-51).

João Cabral sempre foi um poeta rigoroso, e sua narrativa guarda uma complexidade particular. Sempre considerou os seus livros “claríssimos”, embora manteve sempre acesa uma autocrítica bem acentuada. A poesia para ele foi sempre uma fonte peculiar de energia. Dizia que sua arte traduzia uma “necessidade de fazer, de construir qualquer coisa ou um mundo”. Jamais, porém, entendeu o seu fazer poético como um adaptação peculiar ao mundo (MELO NETO, 2020, p. 846).

Morte e vida severina foi publicado em 1956. Ela dá prosseguimento a outra obra fundamental do autor, João Cabral de Melo Neto, que é o poema “Rio”, escrito em 1953 e publicado em 1954. Nesse poema, o autor dava voz ao Rio Capibaribe, cujo curso deságua no Recife:

“Os rios que eu encontro
Vão seguindo comigo.
Rios são de água pouca,
em que a água sempre está por um fio.
Cortados no verão
que faz secar todos os rios.
Rios todos com nome
e que abraço como a amigos”

(MELO NETO, 2020, p. 119).

O poeta sublinha ainda que o rio sempre aguarda “um mais vasto e ancho mar” (MELO NETO, 2020, p. 119, p. 142). O rio que anseia pelo mar é semelhante ao retirante que busca a todo custo uma vida mais digna. Na sequência desse poema, João Cabral debruça-se em seguida sobre o caminho do retirante Severino.

Morte e vida severina é um auto de Natal particular, todo ele enredado no solo árido do Nordeste, em meio às grandes propriedades territoriais. Diferentemente de Vidas Secas, que é um romance que se desenrola, em sua grande parte, “em tempos de fartura” (BUENO, 2015, p. 662), o auto de João Cabral acontece em território de carência e sofrimento, onde a morte é a nota comum. Trata-se de uma paisagem seca, característica dos romances de 1930 (MARQUES, 2021, p. 256). O sertão de João Cabral é diverso do de Guimarães Rosa, sendo o seu traço o silêncio. É um silêncio

onde não há urros de animais nem gritos humanos, estrondo de águas, nem sequer o crepitar de folhas sob um sol assassino, ou o impacto de cascos na caatinga. Reduzida à dimensão mais tosca – as pedras, o rio, e de vez em quando alguma coisa viva aí no meio -, a natureza (...)” (SECCHIN, 2014, p. 393).

Há uma viva tensão entre vida e morte no Auto de Natal de João Cabral. O retirante Severino é alguém que busca a vida desde o início de sua travessia, mas só encontra penúria, dor e morte pelo caminho. Os sucessivos quadros da narrativa de João Cabral apresentam sempre um cenário sombrio. Há, claramente, dois movimentos precisos em toda a narrativa. Na primeira parte, que cobre a viagem de Severino até o Recife, o que se vê é um repertório de dor. Na segunda parte, que é o auto natalino próprio, vislumbram-se sinais alvissareiros de vida, indicando uma temporalidade distinta. Trata-se, como diz Benedito Nunes de “um auto de Natal dentro do Auto propriamente dito” (NUNES, 1971, p. 85-86).

No cerne da narrativa está a busca de Severino. Na verdade, estamos diante de um personagem que, em síntese, traduz uma “situação humana de carência”, e que não se reduz simplesmente a um sujeito particular. Todos ali naquele cenário são “retirantes que a seca escorraça do sertão e que o latifúndio escorraça da terra” (NUNES, 1971, p. 82). A severinidade é, portanto, uma traço que traduz uma difícil situação humana de carência. O personagem Severino dá simplesmente nome “ao que é anônimo, ao que é vinculado, pela igualdade do anonimato, tanto na vida como na morte – morte e vida formando um todo em que a primeira envolve e determina a segunda” (NUNES, 1971, p. 82). O Severino é alguém que “quanto mais se define, menos se individualiza, pois seus traços biográficos são sempre partilhados por outros homens” (SECCHIN, 2014, p. 113). Ainda que querendo se distinguir, Severino é sempre alguém que se dissolve no anonimato.

O traço talvez mais novidadeiro do poema, ocorre a partir da metade da narrativa, quando se dá propriamente o auto de Natal. Trata-se do momento em que a Vida aparece para se contrapor à neblina de uma trajetória que se depara cada vez mais com a morte.

Todos sabem que aquela criança que nasce ali naquele território árido, entre os habitantes do mangue, não tem um futuro alvissareiro. É o que as ciganas do Egito advertem com vigor. A criança que nasce é mais uma “criança qualquer”, com o mesmo destino severino. Mas a narrativa de João Cabral introduz no cenário um toque de festa e de comédia, que abrilhanta os olhos de todos. É o que podemos observar na linda cena protagonizada pelos vizinhos que trazem suas oferendas para a criança:

“De sua formosura
já venho dizer:
é um menino magro,
de muito peso não é,
mas tem o peso de homem,
de obra de ventre de mulher

De sua formosura
deixai-me que diga:
é uma criança pálida
é uma criança franzina,
mas tem a marca de homem,
marca de humana oficina (...)”

(MELO NETO, 1976, p. 112-113).

Cada vizinha surge com o brilho no rosto, celebrando o acontecimento da vida. E o que brota tem sua beleza e encanto: “é belo como o coqueiro que vence a areia marinha”; “é tão belo como um sim numa sala negativa”; “belo como a última onda que o fim do mar sempre adia”; “como qualquer coisa nova inaugurando o seu dia”; “e belo porque com o novo todo o velho contagia” (MELO NETO, 1976, p. 113-114).

Ao final da linda cena, aparece o mestre Carpina, que com sua energia irradiante impede o gesto suicida do desamparado Severino. Suas palavras falam por si:

Severino, retirante,
deixe agora que eu lhe diga (...).
É difícil defender,
só com palavras, a vida,
ainda mais quando ela é
esta que vê, severina;
mas se responder não pude
à pergunta que fazia,
ela, a vida, a respondeu
com sua presença viva;
e não há melhor resposta
que o espetáculo da vida (...)”

(MELO NETO, 1976, p. 115).

Há uma argúcia singular de João Cabral ao descrever a cena do nascimento. A tragédia vem interrompida com o gesto da vida. A “comédia” interrompe a ação, mas o desfecho fica pendente. O poeta deixa aberta a interpretação para o leitor. É ele quem cabe descortinar “um outro possível plano de ação aberto pelo primeiro, e entregue, para além da linguagem e de sua realidade textual, à responsabilidade ética decisória dos indivíduos” (NUNES, 1971, p. 89).

Conclusão

Como pudemos perceber, o poema termina em aberto, o que é bem significativo. O auto de Natal de João Cabral traduz um movimento cujo traço fundamental é a vontade de vida. A criança que nasce é portadora de uma esperança, ainda que severina.

Esse belo trabalho do poeta nordestino, ganhou expressão viva no teatro, no cinema e na televisão. Foram várias as encenações da peça pelos diversos cantos do país, e também no exterior. Houve a montagem realizada na Bahia, no início dos anos de 1960, sob a direção de Luiz Carlos Maciel. E também a clássica montagem ocorrida no Teatro Tuca da PUC de São Paulo, em 1965, dirigida por Roberto Freire, com música de Chico Buarque de Hollanda, que na época era um jovem rapaz de 21 anos, em começo de carreira musical. A peça permaneceu em cartaz até novembro de 1965, com três espetáculos por semana.

O espetáculo rodou depois pela Europa, com apresentações marcantes em Paris, Nancy e Lisboa. O crítico, Bertand Poirot-Delpech, escreveu a respeito no jornal Le Monde: “É toda a humanidade sofredora do Terceiro Mundo, vítima da fome, que parece invadir o palco com seu desespero quase mudo” (MARQUES, 2012, p. 355). A peça, “para além de sua importância no contexto político pós 1964, se tornou um dos maiores acontecimentos da história do teatro brasileiro” (MARQUES, 2021, p. 348).

Houve também uma adaptação cinematográfica, que inicialmente tinha a direção de Leon Hirszmann, mas que não vingou. A versão que se firmou foi a dirigida por Zelito Viana, e que teve sua estreia no Rio de Janeiro em abril de 1978, depois de grande sucesso no X Festival de Brasília do Cinema Brasileiro, no ano anterior. Por fim, em agosto de 1981, aconteceu a versão televisiva, como um evento especial da TV Globo para a sua programação de fim de ano. O poeta João Cabral, elogiou a adaptação e disse que ficou muito satisfeito com trabalho, e destacou os desempenhos de José Dumont e Sebastião Vasconcelos.

Morte e vida severina é um auto de Natal que permanece sempre atual, trazendo uma mensagem de vida e esperança. É uma narrativa corajosa e ousada, que não se curva diante da dura realidade de opressão, sofrimento e dor dos desvalidos e excluídos do Terceiro Mundo. Trata-se de um canto de vitalidade, que suscita resiliência e empenho a favor de um mundo diferente e mais solidário. É um canto de amor que nos ajuda a aprender sempre a “dançar sobre os escombros”.

Referências Bibliográficas

BUENO, Luís. Uma história do romance de 30. São Paulo/Campinas: Edusp/Editora Unicamp, 2015.

CANDIDO, Antonio. Vários escritos. Rio de Janeiro: Ouro sobre Azul, 2017.

MARQUES, Ivan. João Cabral de Melo: uma biografia. São Paulo: Todavia, 2021.

MELO NETO, João Cabral de. Morte e vida severina e outro poemas em alta voz. 8 ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 1976.

MELO NETO, João Cabral de. Poesia completa. Rio de Janeiro: Alfaguara, 2020.

NUNES, Benedito. João Cabral de Melo Neto. 2 ed. Petrópolis: Vozes, 1974.

SECCHIN, Antonio Carlos. João Cabral: uma fala só lâmina. São Paulo: Cosac Naify, 2024.

TENÓRIO, Waldecy. A bailarina andaluza. São Paulo: Fapesp/Ateliê Editorial, 1996.

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