Jovens ativistas das direitas radicais apostam no antagonismo e se compreendem como contracultura. Entrevista especial com Beatriz Besen

Estereótipos como conservador ou progressista “ocultam a heterogeneidade das trajetórias, marcadas por classe, raça, gênero, religião e território” das juventudes, afirma a psicóloga

Foto: Unsplash

Por: Patricia Fachin | 03 Dezembro 2025

Pesquisadores de diversas áreas do conhecimento estão tentando compreender as motivações que levam os jovens a se identificarem com grupos conservadores, de direita ou extrema-direita. Algumas pesquisas associam a adesão aos ressentimentos sociopolíticos das últimas décadas ou a um perfil cultural estereotipado. Na contramão dessas abordagens, Beatriz Besen investigou o fenômeno com base numa pesquisa biográfica com jovens brasileiros e alemães identificados com as direitas radicais, entendida como “atores, grupos e movimentos que estão tensionando a democracia liberal”. A pesquisa doutoral “Nos limiares do(a) político(a): (des/re)construindo trajetórias e narrativas de jovens ativistas das Direitas Radicais no Brasil e na Alemanha”, realizada na Universidade de São Paulo (USP), foi publicada em 2023.

Entre as conclusões, a psicóloga é categórica: “Não estamos falando de algo homogêneo ou coeso: as portas de entrada na direita radical são muito diversas”. De acordo com a pesquisadora, o arcabouço teórico apresentado por grupos de direita encontra ressonância entre as juventudes. A defesa da família, do armamento civil, de leis mais restritas para a imigração, críticas à hegemonia da esquerda e discursos antifeministas são algumas das pautas que têm atraído a atenção das novas gerações.

Essas agendas, explica a entrevistada em entrevista concedida ao Instituto Humanitas Unisinos – IHU por telefone, nascem de uma raiz comum: a ameaça do Outro e o pessimismo em relação ao futuro. “Existe um conjunto de ideias, um sistema de representação do mundo que, para eles, é coerente; não é irracional. Então, a ideia de dizer que eles são loucos ou estão numa situação patológica não ajuda em nada a construir um diálogo e estabelecer pontes. Não os escutar a priori, que é o que está acontecendo no momento, é um elemento que fortalece a polarização”, argumenta.

Beatriz Besen de Oliveira (Foto: Arquivo pessoal)

Beatriz Besen é mestra em Psicologia Social pela Universidade de São Paulo (USP) e em Estado, Governo e Políticas Públicas pela Faculdade Latino-Americana de Ciências Sociais (FLACSO), doutora pelo Programa de Mudança Social e Participação Política pela USP, com estadias de pesquisa na Universidade Goethe de Frankfurt e Humboldt de Berlim. Atualmente, é pós-doutoranda no Núcleo de Estudos da Violência (NEV-USP).

Confira a entrevista.

IHU – Sua pesquisa analisou o ativismo de jovens de direita radical no Brasil e na Alemanha e aponta que as agendas e trajetórias particulares dos dois países influem na emergência desse ativismo. O que caracteriza as direitas radicais nos dois países e quais as influências nacionais levaram a esse ativismo?

Beatriz Besen – O que considerei como direitas radicais são atores, grupos e movimentos que estão tensionando a democracia liberal. As formas de tensionamento são o ataque à proteção constitucional de minorias e a não aceitação do Estado como um regulador das desigualdades sociais. Nesse sentido, há um ataque às políticas de redistribuição do Estado. Esse foi o primeiro guarda-chuva que olhei para identificar os grupos e, a partir disso, dentro de cada um dos contextos entender como eles se desdobram.

Estereótipos

Outra questão que me chamava a atenção era a capacidade desses grupos em prover e forjar identidades coletivas e mobilizar jovens e minorias que antigamente não eram reconhecidas como parte desses movimentos. Havia um estereótipo de que nas fileiras desses grupos e movimentos estariam homens mais velhos, de meia idade e brancos. Outras pesquisas identificavam esses grupos com perdedores, no sentido de pessoas que perderam com a modernização ou com o backlash cultural. Ou seja, pessoas que se sentiam ressentidas pelas políticas culturais. Havia essas duas visões. Mas me chamava a atenção que esses grupos de direitas radicais também estavam atraindo jovens e mulheres.

Far Right, Extreme Right e Radical Right

Assim, a proposta da pesquisa era observar grupos que tinham essas particularidades e que, no caso brasileiro, não se organizavam por meio de partidos, mas, no caso alemão, sim. Na Alemanha existe um partido principal, Alternativa para a Alemanha (AfD), reconhecido por um dos principais grupos europeus de pesquisa sobre extremismo (C-REX), como o representante principal da direita radical no país.

Segundo Cas Mudde – diretor do C-REX – na Europa, esse grupo já é a quarta onda do que ele chama de Far Right – quando traduzimos para o português, isso soa um pouco estranho porque em português tanto Far Right quanto Extreme Right são traduzidos por extrema-direita. Mas este pesquisador propõe uma diferenciação entre um campo maior, chamado de Far Right, e, dentro dele, as divisões internas entre Extreme Right e Radical Right. Essa diferenciação é interessante porque o Extreme Right seria o que reconhecemos como os grupos neonazistas, ou seja, grupos que, de certa forma, estão às margens da democracia liberal e não aceitam nada do que se configure como governo da maioria. Já o Radical Right são grupos que têm tensionado a democracia liberal a partir de dentro. São esses grupos que me interessavam observar.

Semelhanças e diferenças

Para Cas Mudde, a quarta onda do Far Right seria representado pelo AfD, partido que emerge em 2013 na Alemanha, o que representa uma certa coincidência temporal porque muitas análises no Brasil também tratam da emergência das novas direitas em 2013, com as jornadas de junho. Além dessa coincidência temporal, existem diferenças importantes, como parlamentarismo e presidencialismo. No caso alemão há um passado marcado pelo nazismo e, principalmente, pela divisão do país entre a Alemanha Oriental e a Alemanha Ocidental, que é muito retomada. No caso brasileiro, há uma influência muito grande do passado ditatorial recente.

Apesar da coincidência temporal, me interessava olhar para as direitas radicais nesses dois países porque existem diferenças históricas e, de fato, no decorrer da pesquisa elas se desdobraram em diferenças. Incluiria aí uma diferença no Estado de bem-estar social nos dois países, o que também muda o modelo de educação que é ofertado. Todas essas diferenças institucionais e históricas moldam características particulares, mas, ao mesmo tempo, a pesquisa também mostra elementos comuns no campo das direitas radicais.

IHU – O que explica a reação dos jovens ativistas às minorias e ao Estado enquanto regulador das desigualdades? Como esse posicionamento reverbera na opinião pública dos dois países?

Beatriz Besen – Encontrei várias questões que podem ter conduzido a isso. Essas identificações acontecem por uma articulação entre experiências subjetivas e uma trajetória ou experiência particular de um determinado jovem, que encontra alguma explicação ou ressonância com algo que é oferecido como um discurso. O que quero dizer é que tem uma diversidade de trajetórias que conduzem às direitas radicais. Não quero dizer que todos os jovens foram ao encontro das direitas por uma mesma trajetória. Esse foi justamente um aspecto de destaque na minha tese. Não estamos falando de algo homogêneo ou coeso: as portas de entrada na direita radical são muito diversas. Às vezes, uma agenda ressoa mais com uma história e trajetória de vida de um jovem ou, às vezes, o interesse por um dessas agendas desencadeia essa posição.

Agendas e experiências reais

Um exemplo de agenda que explorei foi o antifeminismo, a defesa do aborto, a defesa do armamento civil, a defesa de uma política mais restrita para imigração ou um movimento anti-imigração. São diversas agendas e, muitas vezes, uma delas se conecta e faz com que esses jovens se sintam identificados com os grupos de direita radical. Uma vez que os jovens estão lá dentro, principalmente pela lógica das redes sociais, dos algoritmos e das bolhas, eles vão entrar em contato com um sistema de representação que vai explicar a sociedade e as injustiças que realmente podem ter sido experimentadas por eles.

Muitas das coisas que eles descrevem como injustiças ou dificuldades de perspectiva de futuro são experiências reais. Não precisamos dizer que as injustiças não acontecem. A questão são as explicações do porquê aquelas injustiças estão acontecendo. As direitas têm oferecido explicações e oferecido um campo de possibilidades que dá respostas a essas injustiças, respostas que muitas vezes não consideram sistemas mais amplos de opressão e relações de poder.

Família como ponto de convergência entre as direitas radicais

Os jovens dizem que a família é uma instituição que está sendo atacada. Todos esses jovens disseram que a família, na trajetória deles, tinha muita importância. Ao mesmo tempo, eu observava que eles não vinham de famílias com configurações tradicionais. Muitos deles sofreram negligências, ausência paterna, alguns foram criados só pelas mães ou avós. Isso era visto como algo que dava um valor: se alguém tinha uma mãe solo, falava da importância daquela mãe. Ao mesmo tempo, esses jovens projetavam a vontade de formação de uma família tradicional. Dizem que os movimentos feministas e LGBTQIA+ estariam atacando as possibilidades dessas famílias se concretizarem.

Isso me chama atenção no sentido de que a família da qual eles falam não é algo que vivem, ou seja, não vem da própria experiência deles, mas acham que é algo que deveria existir na sociedade. Então, olhando mais a fundo, existe em comum entre esses grupos a ideia da família sob ataque. Esse é um discurso que acontece como uma junção de discursos neoliberais e conservadores, porque a família como instituição sob ataque é um dos discursos mais importantes historicamente.

Nos anos 1960, os movimentos pautados nas diferenças, que depois vão ser chamados de identitários, desestabilizam o que era a família fordista. Uma das respostas disso, com a saída neoliberal, foi a ideia de recuperar a família. Porque se se diz que não é o Estado quem deve ser responsável pela regulação das desigualdades, um dos pontos de transferência da responsabilidade é a família – principalmente em momentos de crise, como foi o de crise econômica por volta de 2015.

Esses momentos de crise tem uma importância porque se transforma a crise em uma crise moral. Na mesma época em que se viu a emergência de ataque às proteções constitucionais das minorias, o Bolsa Família foi apresentado como um grande problema porque dava dinheiro para as famílias e elas não trabalhavam mais. Essa configuração era vista como um problema tanto por conservadores quanto por neoliberais.

A figura da família sob ataque ou da recuperação da família como o espaço que vai, em parte, assumir as funções do Estado e, por outro lado, o Estado que passa a ter a função de garantir as condições morais de estabelecimento da família, é o principal ponto de encontro do discurso neoliberal e conservador.

Diferenças

Uma diferença interessante é que, no caso alemão, a proteção às famílias vem com um componente racial. É uma proteção que deveria ser dada pelo Estado às famílias alemãs e, particularmente, para as famílias alemãs que são entendidas como as famílias originais alemãs. Existe, neste ponto, uma questão que é direcionada à economia. Um dos discursos comuns que aparece para os jovens é que o Estado alemão não protege as famílias alemãs, mas dá dinheiro para os imigrantes em função da zona do euro. A União Europeia é muito atacada por essa ideia de que se existem recursos, eles deveriam ser destinados aos “verdadeiros” alemães.

No caso brasileiro, o componente racial não está na agenda da família, mas em outras agendas. No caso alemão, entretanto, ele é muito forte. Para eles, não é só a família que está sob ataque, enquanto família tradicional, mas tem a questão racial, que hoje ganha outras conformações e outros termos, como o etnopluralismo. Eles reconhecem a existência de diferenças culturais, mas dizem que essas diferenças são dadas porque populações pertencem a territórios específicos. Então, cada população, de acordo com sua cultura, deveria habitar o seu território específico. Os alemães, entretanto, são os habitantes mais antigos e deveriam estar nos ambientes que vivem, enquanto os imigrantes, não. Não tem problema eles existirem, mas eles deveriam retornar aos seus territórios porque não pertencem ao território alemão.

IHU – Além desse aspecto, que outros elementos discursivos aparecem entre os jovens das direitas radicais?

Beatriz Besen – O antifeminismo, a partir da defesa de uma psicologia ou biologia evolutiva que explicaria a existência de papéis fundamentalmente femininos ou masculinos. Outras duas agendas divergem bastante e aparecem no caso brasileiro e alemão. No caso brasileiro, destaca-se a defesa do armamento civil ou da flexibilização das regulamentações pelo armamento civil. No caso alemão, a defesa de leis mais restritas para a imigração ou uma agenda anti-imigração. Essas agendas são muito particulares porque no caso brasileiro não temos problemas com a imigração e, no caso alemão, a questão da coerção armada não faz sentido, portanto, a agenda do armamento não aparece.

O Outro ameaçador

O que busco analisar é que tanto a agenda de defesa do armamento civil, quanto anti-imigração nascem de uma raiz comum, que é a construção do Outro ameaçador. No Brasil, o bandido assume esse papel. O bandido é aquele que ameaça o cidadão de bem que precisa se defender e defender a sua família. No país, temos um problema real em relação à segurança pública. Ninguém nega que isso seja um problema e uma experiência real, mas a solução que se dá é calcada no individualismo, ou seja, na ideia de que alguém, armado, poderia se defender. Mas tudo isso está muito baseado na construção desse Outro que é o bandido, é a ameaça.

Essa situação é muito parecida com a questão da imigração porque o bandido é aquele que ameaça a família, desequilibra a sociedade e é a origem dos problemas. Nesse campo, vamos ao encontro dos aspectos do racismo brasileiro: quem é esse bandido e quem é o cidadão de bem? Isso é muito delimitado pelo passado escravocrata brasileiro. No caso da imigração há algo muito parecido: o Outro que ameaça. Os alemães têm a ideia de que o imigrante não sabe se controlar, pode agir de maneira descontrolada, assim como tem a ameaça econômica. O imigrante é quem vai tomar os postos de trabalho do alemão.

Essas duas agendas são muito diferentes entre si, mas tem uma raiz comum, que é a construção da ameaça: existe uma ameaça e ela é tão grande e está tão presente que, de certa forma, justifica ações radicais. Quanto mais forte a figura da ameaça, mais fácil é instaurar processos de radicalização e ir por caminhos de uma violência que pode ultrapassar a dimensão simbólica, incorrerendo em atos que ferem ou incitam a violência física e direta.

Discurso de ódio e reação à hegemonia de esquerda

A violência política que acontece no campo discursivo emergiu nas entrevistas como discurso de ódio. O discurso de ódio é inflamado pela ideia de que é preciso se defender porque se está sob ameaça.

Outro elemento comum que explica parte da mobilização dos jovens é a ideia do antagonismo, a ideia de que eles são uma contracultura. Eles se entendem como as pessoas que estão contra a corrente. Eles reagem à hegemonia das esquerdas, dos movimentos feministas e LGBTQIA+. Esses movimentos são vistos como se tivessem uma hegemonia cultural. É importante pensarmos sobre isso, porque não acho que essa percepção seja equivocada. Tem um momento histórico no Brasil em que há o crescimento dessas agendas. Existiu, de fato, uma ocupação maior do debate público com algo que é atribuído às agendas de esquerda. Mas isso não quer dizer que exista uma hegemonia. Quer dizer que os acordos feitos depois do estabelecimento da Constituição definiam a existência de políticas de redistribuição de renda, de uma sociedade com maior justiça social, com políticas direcionadas às minorias.

O que se encaixa com tudo isso é a ideia de que o conservadorismo não é uma posição política, mas um estilo de vida. Essa é uma ideia sedutora que funcionou muito no contexto brasileiro, especialmente por causa das associações de pessoas que valorizam muito a família ao conservadorismo.

IHU – Uma das características da sua pesquisa são as entrevistas biográficas com os ativistas. Que contribuições esse tipo de estudo oferece para compreender a complexidade do perfil e do comportamento político dos jovens das direitas radicais? Como esse tipo de metodologia nos ajuda na discussão pública sobre o fenômeno da extrema-direita, inclusive para encontrar alternativas sociopolíticas?

Beatriz Besen – Estou produzindo um livro de uma versão não acadêmica da pesquisa, que será publicado pela editora Vozes, que tem como finalidade adentrar no debate público, onde entendo que esses jovens estão numa posição muito estigmatizada. Não diria só os jovens, mas qualquer tipo de ativismo ganhou a alcunha de bolsonarismo, o que reduz muito a questão.

As entrevistas biográficas da pesquisa vão ao encontro desta posição: o bolsonarismo não é a identidade que eles afirmam para si. Não se trata só do bolsonarismo. Por outro lado, dado esse fato, precisamos entender que isso está para além de Bolsonaro e é um fenômeno que segue presente.

Estigmas

O estigma de que os participantes desses grupos são loucos, irracionais ou idiotas não equivale à realidade. Existem algumas pesquisas brasileiras nesse sentido, mas diria que o campo de pesquisa biográfica é muito mais forte na Europa. Essa abordagem começou para pesquisar participantes de extrema-direita que saem de movimentos neonazistas, mas se expandiu e começou a apontar que essas pessoas não eram antissociais. São empresários, estudantes, pessoas que têm integração social.

Muitas das explicações que existiam para entender o Outro político era o caminho da patologização a partir dos estudos psicológicos, no sentido de dizer que a pessoa teve algum trauma. Outros estudos falavam dessas pessoas como vítimas do sistema que perderam muito com a modernização ou que estavam numa situação econômica em desvantagem. Mas isso não se provava suficiente para explicar o fenômeno, até porque, na prática, não se encontrava isso. O que eu tinha como evidência eram pesquisas quantitativas mostrando que a situação era muito mais diversa.

Na Europa, algumas pesquisas estavam explorando essa dimensão qualitativa e etnográfica. No entanto, é um desafio encontrar pessoas que aceitem conversar porque existe uma desconfiança em relação à academia e ao que vai ser construído com base nas entrevistas. Abordei os jovens a partir do meu interesse de pensar as trajetórias particulares e não uma estigmatização, ou seja, ir ao encontro deles para poder ver o que existia nessas trajetórias. Encontrei trajetórias muito diversas, o que torna o fenômeno mais complicado e multifacetado.

Identificações

Uma das coisas que temos que entender é que as direitas radicais são fragmentadas internamente. Os jovens estão mais identificados com um tipo de grupo, seja os patriotas, seja os armamentistas, os antifeministas, isto é, com grupos específicos, como os tradicionalistas, como a nova resistência, que é um grupo jovem que, inclusive, trata de questões trabalhistas. Tem diversas portas de entrada para a direita radical. A forma como isso aparece nas biografias desses jovens e como isso se articula com as experiências deles é bastante variada.

Encontrei alguns pontos de identificação interessantes e comuns. No caso dos jovens brasileiros ativistas há uma preocupação muito grande em se apresentarem como pessoas que estudam o que estão apresentando. Ou seja, eles têm uma referência editorial. Muitos me mostravam livros. Isso é algo que não dá para ignorar. Muitas vezes se diz que eles não têm projeto político ou de futuro. Entendo essa crítica, mas, ao mesmo tempo, produções editoriais com caráter conservador ou teorias libertárias têm crescido muito no Brasil. Esse corpo de referência existe.

O que tentei mostrar na pesquisa foi que existe um conjunto de ideias, um sistema de representação do mundo que, para eles, é coerente; não é irracional. Então, a ideia de dizer que eles são loucos ou estão numa situação patológica não ajuda em nada a construir um diálogo e estabelecer pontes. Não os escutar a priori, que é o que está acontecendo no momento, é um elemento que fortalece a polarização.

IHU – Algumas pesquisas mostram que os jovens são ignorantes sobre o Holocausto. Recentemente, veio à tona a divulgação de mensagens como “Eu amo Hitler”, publicadas em fóruns de discussão por jovens norte-americanos. Como resposta às críticas feitas a eles, o vice-presidente JD Vance disse: “deixem os meninos serem meninos”. Na sua pesquisa, identificou entre os jovens um fascínio por personalidades como Hitler?

Beatriz Besen – Não. Uma das grandes preocupações desses grupos é tentar se afastar dessa ideia de que eles são nazistas. Estou estudando grupos institucionalizados, que são diferentes de processos de radicalização que acontecem online e que são mais dispersos e podem vir com essa cara.

Atualização da linguagem

O que sinto é que esses grupos e ativistas estão muito preocupados em tentar se diferenciar dessas figuras. Não vi nenhum dos meus entrevistados falando com fascínio sobre Hitler. O que vi, mais no contexto brasileiro, é uma relativização da ditadura. A ideia de que a ditadura pode ter sido uma reação necessária frente ao comunismo, como se fossem duas forças equivalentes: o Estado e a esquerda armada numa batalha.

No caso alemão, a cultura de vergonha do passado nazismo, que foi instaurada, leva os alemães a tentarem se afastar desse passado histórico. Não sinto que os jovens entrevistados seriam pessoas que, publicamente, falariam sobre um fascínio por Hitler. Por outro lado, o que se vê é que não é preciso, necessariamente, falar isso para reproduzir políticas de exclusão com outro discurso. O que é mais poderoso é a atualização da linguagem. Ao falar em etnopluralismo, diz-se que não se quer destruir o outro, mas também se diz que não se quer que o outro esteja aqui.

Tem propagandas do partido AfD retomando a ideia de uma família idílica, branca e alemã. Ou seja, apresenta-se uma imagem de família sem fazer referência àquele passado nazista. Existem processos que estão acontecendo e um reforça o outro. Quando as direitas radicais ganham mais espaço, a extrema-direita ou a direita neonazista também se sente legitimada. Existem esses processos de radicalização, mas diria que são uma minoria, uma minoria que temos que olhar. Mas pensando nos processos políticos mais amplos e na questão de uma erosão dos valores fundamentais da democracia, isso acontece muito mais por essa possibilidade de mudar o discurso, de tornar ele mais adaptável.

O etnopluralismo é entendido como uma reação ao que seria o multiculturalismo. Olha-se e se responde a partir da própria linguagem que foi criada com o tempo. Então, não se fala e não é preciso falar em supremacia racial. A linguagem é mais poderosa para ir minando o Estado de direito. Tem que ter um lugar para estudar esses casos, como os ataques em escolas. Nunca ocorreram tantos ataques em escolas, mas, por outro lado, isso é uma parcela de um fenômeno muito amplo.

IHU – Como esses jovens se autopercebem enquanto agentes de mudança e transformação social?

Beatriz Besen – Existem várias camadas. Todos os jovens falam de uma insatisfação, de um sentimento de injustiça, ou um sentimento de que existe algo no horizonte que é um certo pessimismo sobre o futuro.

Sobre a transformação social, eles acreditam que o projeto deles vai trazer mudanças, mas também compartilham uma visão sobre os problemas da sociedade. Por exemplo, as dificuldades das juventudes aparecem para todos eles. Só que a questão é que as soluções são muito baseadas na ideia de ordem. Ou seja, o estabelecimento de algo que vai fixar as coisas. Quando tudo voltar para o seu lugar, a situação vai melhorar. Por vezes, essa ideia está associada ao passado.

Disputa do espaço político

Muitos deles acabam se envolvendo em ações coletivas de grupos políticos. Eles têm uma ideia interessante de disputar os espaços políticos. Existe uma dimensão política de negociação que, na prática, nas redes sociais, se perde, porque vira uma lógica que não é de negociação, mas binária. Alguns desses grupos estão interessados em disputa e negociação. Isso é uma possibilidade de pensar em pessoas que querem discutir qual é o projeto de futuro. Por outro lado, quando entendem que a ordem e o mérito deveriam ser estabelecidos como solução, ignoram a complexidade dos processos. Não resolvemos tudo por meio de instâncias rígidas.

Por que a ideia do gênero é tão difícil para eles? Porque desorganiza tudo. O que era entendido como instância que dava ordem foi desestabilizado. Eles estão dizendo que essas questões precisam ser organizadas e rígidas. É óbvio que isso é um retrocesso, mas o que quero dizer é que eles estão insatisfeitos e veem experiências de injustiças que não são somente no campo das suas identidades ameaçadas, mas também no campo da sobrevivência material e de um horizonte de futuro. Nesse sentido, eles estão preocupados em pensar que algo precisa mudar.

Jovens em processo de formação

Sou mais flexível nesse sentido porque para mim é importante o fato de eles serem jovens. São jovens que estão em processos de politização e de formação política. Se eles estão em processo de formação e estão incomodados com algo, tentando adentrar a discussão política, ainda vejo um horizonte de transformação. Não é um horizonte em que vamos converter ninguém. Essa ideia de apresentar um sistema de representação totalmente oposto e dizer que o mundo funciona desse jeito e é assim que tem que ser, não vai funcionar. O mais importante seria retomar práticas de negociação.

Obviamente, há coisas que não são negociáveis, mas existem coisas que precisam ser debatidas. Na minha pesquisa, vi muitas jovens meninas que são totalmente contra o aborto. Diz-se de muitas delas que se são contra o aborto, não podem ser de esquerda. E aí imediatamente elas encontraram um lugar muito frutífero dentro dos grupos de direita. Mas essa pauta precisa ser discutida no interior das esquerdas. Não é que se precise retroceder em relação a isso, mas tem que entender que trajetórias culturais e religiosas brasileiras conduziram essas jovens a acreditarem nisso. Se imediatamente se disser que por conta disso elas são de direita, de certa forma se está empurrando elas para encontrarem lugares mais acolhedores nesses espaços.

IHU – Parte da juventude tem se identificado com o conservadorismo sem se associar à direita radical. O que atrai os jovens para essa posição?

Beatriz Besen – Na pesquisa, o conservadorismo aparece menos como adesão ideológica rígida e mais como processo de busca por ordem, pertencimento e reconhecimento. A família funciona como eixo moral e afetivo; a gramática neoliberal – baseada em esforço individual, responsabilidade e mérito – oferece uma explicação para trajetórias marcadas por desigualdade e incerteza. Muitos jovens encontram nesse repertório um modo de organizar experiências difusas e de ocupar espaços políticos onde podem ser vistos, ouvidos e valorizados, especialmente em ambientes digitais. Esses jovens sentem que essa pode ser uma posição marcada por autenticidade e até mesmo como um horizonte contracultural.

IHU – O que explica o rechaço ao feminismo entre jovens conservadores e entre os ativistas da direita radical?

Beatriz Besen – O antifeminismo surge na pesquisa como uma agenda comum entre o Brasil e a Alemanha. Ele organiza o discurso sobre a defesa da família – vista como núcleo moral ameaçado – e cria antagonistas claros, especialmente movimentos feministas e LGBTQIA+. Entre jovens mulheres, o antifeminismo funciona como porta de entrada para a atuação política e para o reconhecimento dentro de espaços majoritariamente masculinos. Por vezes, ele também está correlacionado à agenda pró-vida e a trajetórias religiosas.

O discurso de empoderamento feminino, por exemplo, não se configura em oposição ao antifeminismo, ou seja, mesmo as jovens mulheres que falam em autonomia, empoderamento e direitos das mulheres podem se posicionar como antifeministas. Esses discursos se apoiam em uma retórica inspirada no feminismo – centrada na escolha, na autonomia e na positividade –, mas a reorientam para legitimar papéis de gênero cristalizados e uma visão essencializada da mulher.

Entre homens, articula percepções de ameaça à ordem de gênero e tem ganhado repercussão por meio de movimentos masculinistas. Em ambos os casos, é um ponto de convergência que estrutura um discurso transnacional e é um discurso que ganha impulsionamento e visibilidade por meio de conteúdos editoriais e digitais.

Um exemplo fundamental são os livros de Ana Campagnolo, que atribuem ao feminismo um projeto específico e único, o qual seria frontalmente oposto ao cristianismo. Uma das minhas entrevistadas chega a chamar o feminismo de religião diabólica. Em um país de maioria cristã, isso tem um impacto muito grande.

IHU – Você tem insistido na necessidade de estudar uma juventude que é plural, cuidando para não cair em estereótipos. Quais complexidades não aparecem nos estereótipos “conservador” e “progressista”?

Beatriz Besen – A pesquisa mostra que essas categorias ocultam a heterogeneidade das trajetórias, marcadas por classe, raça, gênero, religião e território. As ideologias operacionais não seguem de forma linear as identidades declaradas: conservadores podem defender posições progressistas em temas específicos, e jovens da direita radical combinam elementos liberais, libertários, nacionalistas ou religiosos em arranjos próprios. Estereótipos também ocultam motivações como busca por pertencimento, desejo de mobilidade social, experiências de injustiça e a influência de discursos neoliberais e neoconservadores que oferecem explicações e lugares sociais. A juventude que aparece na pesquisa é plural, dinâmica e situada – muito diferente das caricaturas por vezes utilizadas no debate público.

Leia mais