A interdependência entre os muitos humanos revelada pela literatura contemporânea. Entrevista especial com Adriana Lisboa

Poetisa reflete sobre como as viradas animal e vegetal na escrita ficional dos últimos anos vêm recolocando e reposicionando nossa compreensão sobre a humanidade

Foto: Pixnio

Por: Faustino Teixeira | Edição: Ricardo Machado | 01 Setembro 2022

 

Os sinais de esgotamento dos modos de vidas forjados pela modernidade e a iminência cada vez mais maior do colapso climático se expressam em muitas frentes. Isso tudo coloca em causa, inclusive, categorias como o “humano” e suas derivações especistas e de gênero. “Esse momento, a meu ver, significa uma tomada de consciência, que era urgente já havia muito, acerca da nossa arrogância como espécie e o modo como outorgamos a nós mesmos o direito sobre o mundo não humano. Essa postura, conhecida como especismo, é irmã do racismo, do sexismo, da xenofobia, da homofobia e de tantas das nossas doenças éticas”, avalia a poetisa e pesquisadora Adriana Lisboa, em entrevista por e-mail à IHU On-Line.

 

“O fato de a literatura e a arte que se centram numa reflexão sobre a nossa relação com as existências não humanas estarem ganhando mais visibilidade e sendo levadas a sério (até ontem poderiam ter sido recebidas como alguma espécie de reverberação new age estranhamente ultrapassada antes mesmo de amadurecer) é, na cena contemporânea, o que me traz mais alegria e esperança”, complementa.

 

Adriana ainda cita a rede de Indra, de uma vertente budista, para pensarmos na interdependência de todas as coisas. “No budismo mahayana existe uma alegoria muito bonita que é a da rede de Indra – no reino da divindade Indra há uma rede cravejada de joias em que cada joia reflete todas as demais. A alegoria fala da interdependência e do caráter interrelacional de tudo”, exemplifica.

 

Adriana Lisboa (Foto: Página Adriana Lisboa)

 

Adriana Lisboa nasceu no Rio de Janeiro em 1970. É romancista, poeta e contista. Fez mestrado em literatura brasileira e doutorado em literatura comparada pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro - Uerj, e foi pesquisadora visitante no Centro Internacional de Estudos Japoneses – Nichibunken, Kyoto, e na Universidade do Novo México. Ensinou no departamento de espanhol e português na Universidade do Texas, em Austin, e foi também escritora residente na Universidade da Califórnia, em Berkeley.

 

É autora, entre outros livros, dos romances Sinfonia em branco (São Paulo: Alfaguara, 2013], Prêmio José Saramago; Azul corvo (São Paulo: Alfaguara, 2014), um dos livros do ano do jornal inglês The Independent; Hanói (São Paulo: Alfaguara, 2013), um dos livros do ano do jornal O Globo. Publicou também algumas obras para crianças, como Língua de trapos (Rio de Janeiro: Rocco, 2005); prêmio de autor revelação da Fundação Nacional do Livro Infantil e Juvenil - FNLIJ e Contos populares japoneses (Rio de Janeiro: Rocco, 2008). Seus livros foram traduzidos em mais de vinte países.

 

Confira a entrevista.

 

IHU – Adriana, estamos vivendo hoje um momento muito bonito no mundo da literatura, de destaque para a zooliteratura e a fitoliteratura, para usar expressões que são caras a Evando Nascimento e Maria Esther Maciel. Como você vem acompanhando esse movimento?

 

Adriana Lisboa – Esse momento, a meu ver, significa uma tomada de consciência, que era urgente já havia muito, acerca da nossa arrogância como espécie e o modo como outorgamos a nós mesmos o direito sobre o mundo não humano. Essa postura, conhecida como especismo, é irmã do racismo, do sexismo, da xenofobia, da homofobia e de tantas das nossas doenças éticas. O fato de a literatura e a arte que se centram numa reflexão sobre a nossa relação com as existências não humanas estarem ganhando mais visibilidade e sendo levadas a sério (até ontem poderiam ter sido recebidas como alguma espécie de reverberação new age estranhamente ultrapassada antes mesmo de amadurecer) é, na cena contemporânea, o que me traz mais alegria e esperança.

 

E tem resultado em trabalhos incríveis, além de voltar o foco a trabalhos que são incríveis há muito tempo mas que se encontravam quase que totalmente à margem. Penso por exemplo em obras de artistas ianomâmis no Masp ou na Fundação Cartier em Paris. Também existe, nesse movimento, uma recuperação das matrizes indígena e africana no Brasil, com uma outra relação com o mundo e mesmo com o mundo invisível, uma redescoberta do sagrado para lá da razão cartesiana europeia.

 

 

IHU – Na última FLIP, realizada on-line em 2022, esse tema esteve no centro das atenções, com uma ampliação ainda maior para o mundo invisível dos fungos, rizomas e micorrizas. É um tema que vem congregando filósofos, biólogos, antropólogos e literatos. Você vê uma relação da poesia com essa temática mais ampla do campo relacional que move o cosmos?

 

Adriana Lisboa – No budismo mahayana existe uma alegoria muito bonita que é a da rede de Indra – no reino da divindade Indra há uma rede cravejada de joias em que cada joia reflete todas as demais. A alegoria fala da interdependência e do caráter interrelacional de tudo. Na verdade, para o budismo, cada ocorrência só existe enquanto origem interdependente: porque isto existe, aquilo existe; porque isto deixa de existir, aquilo deixa de existir.

 

Esta é uma visão radicalmente rizomática da realidade, enunciada há dois milênios e meio, que, inclusive, remove da cena a noção de “essência”. E é um lugar que a poesia muitas vezes toca, inclusive com seu reverente silêncio, como no caso de Bashô, ou com o arrebatamento místico de um Rumi. Mas na minha opinião toda grande poesia consegue em certo grau transcender o imediato, o eu, ainda que através da mais prosaica narrativa da imanência, e mergulhar a mão nesse imenso caldo que é o compartilhado/compartilhável. Por isso me parece tão irrelevante a poesia que não consegue se descolar do “cais úmido e ínfimo do eu”, para citar o verso magistral de Paulo Henriques Britto.

 

 

IHU – No Brasil temos poetas maravilhosos, como Leonardo Fróes e Alberto Pucheu que deram um salto ainda mais decisivo, buscando viver em proximidade com a Terra. Percebo em seus poemas o cuidado de captar essa dimensão telúrica e apontar o ritmo de vida que ali pulsa e transforma a dinâmica do humano. Gostaria de ouvir você falar desses buscadores da literatura, que me fazem lembrar também nomes importantes da literatura beat.

 

Adriana Lisboa – Tenho uma admiração profunda pelos que conseguem dar as costas ao mundo para, num certo sentido, estar mais perto dele, estar mais dentro dele. Sou fascinada pelo conceito da renúncia (a origem latina da palavra tanto quer dizer rejeitar, revogar, quanto relatar ou anunciar) e, num certo grau, essa é uma prática ética importante na minha vida – manifesta, por exemplo, no veganismo.

 

Viver em proximidade com a terra às vezes envolve um grau de renúncia da vibração e do resplendor da cidade em troca de outra coisa, de outro tempo, mesmo. Emily Dickinson em seu jardim. Georgia O’Keeffe no deserto. John Cage em suas expedições à cata de cogumelos na mata. W. S. Merwin dedicando a vida ao reflorestamento de uma plantação exausta de abacaxis, no Havaí – cada poema um plantio e cada plantio um poema.

 

Mas deveríamos também mencionar os artistas e criadores que nunca saíram de perto da terra, como é o caso de muitos membros de comunidades indígenas no Brasil e em outras partes do mundo. Que estão ali desde sempre, que têm as raízes de sua identidade e de sua história profundamente plantadas nisso que alguns de nós buscam como refúgio ou como alternativa a uma vida urbana perturbadora ou insuficiente em seu excesso.

 

 

IHU – Com relação à sua trajetória de poeta, tão celebrada no Brasil, como você expressa na sua obra esse novo sentimento de mundo? Seus poemas têm esse traço, que percebo com muita clareza...

 

Adriana Lisboa – Fui criada entre a cidade do Rio de Janeiro (num recanto do bairro de Laranjeiras, à beira da floresta) e uma fazenda no interior do estado. Férias, para mim, eram três meses descalça trepando em goiabeira e tomando banho no rio barrento com as crianças dali. A casa da fazenda não tinha luz elétrica e os banhos eram frios se o fogão a lenha não estivesse aceso. Toda essa experiência me marcou profundamente e se manifestou desde cedo no meu trabalho de criação literária – desde os primeiros romances até os mais recentes poemas (mas mesmo antes, nas páginas dos cadernos da infância e adolescência).

 

Poderia citar, por exemplo, um longo poema chamado “Solastalgia”, que arremata meu livro O vivo (Rio de Janeiro: Editora Relicário, 2021), conjugando algumas reflexões sobre a crise climática, a proximidade de Marte da Terra, a “sobrevivência dos vaga-lumes” de Didi-Huberman e os pássaros de Odysseas Elytis, que cantariam em grego, no Paraíso, entoando “eros, eros, eros”. Ou o poema “A flor e o seu protesto”, que indaga o que será a flor para além dos significados que atribuímos a ela e dos usos que fazemos dela. Ou, ainda, “Outro vivo”, reverberando o uso que fazemos dos animais não humanos, sua coisificação.

 

 

IHU – Sua produção literária não se resume a poesia, mas há também na sua trajetória outras bonitas formas de expressão, como na incursão pelo ensaio autobiográfico. Dou como exemplo o maravilhoso livro “Todo o tempo que existe”, que acaba de ser publicado pela Relicário. Você traz de forma tão singela o tema do luto. Poderia nos falar um pouco sobre o nascimento e realização deste livro?

 

Adriana Lisboa – Foi um livro escrito em três semanas, no segundo semestre de 2021, após a morte do meu pai. Tendo perdido minha mãe em 2014, a perda dele tinha uma relevância enorme, essa nova constelação do pai e da mãe em mim, essa ressignificação da existência deles: a busca do entendimento (ou de viver em paz com o não entendimento) da presença dessa ausência, e também da ausência dessa presença tal como eu a entendia até então.

 

Escrevi um poema, incluído num próximo livro ainda inédito, que diz que perder o outro dos nossos pais é como perder o primeiro de novo. Mas ao mesmo tempo não é. Reconhecemos o quintal da dor, mas tudo é outro.

 

Reflexões dessa ordem são feitas ao longo desse relato autobiográfico, que é costurado pela presença de outros autores e artistas e das lembranças de longos passeios pelo Jardim Botânico do Rio de Janeiro nas semanas em que estive na cidade acompanhando meu pai, internado num hospital. Na capa, há uma foto de um ipê amarelo, que tirei na manhã do dia em que meu pai viria a morrer. Ao longo das últimas semanas de vida dele, conforme sua saúde se deteriorava, o ipê ia florindo e ficando cada vez mais exuberante, até esse momento de esplendor que me chamou a atenção em especial naquela manhã. Nas horas que se seguiram, os sinais vitais do meu pai foram declinando até se extinguir por completo.

 

Leia mais