Para o professor e pesquisador, ser capaz de ver o invisível é uma tarefa incontornável para sobrevivermos ao antropoceno
Se déssemos mais uma volta no parafuso da proposição de Roland Barthes de que o fascismo da língua é nos obrigar a falar, poderíamos, quiçá, chegar à provocação do poeta e pesquisador Alberto Pucheu, ao pensar sobre a natureza, que, ao fim e a ao cabo, nos obriga a observá-la.
“Ver não é uma ação do sujeito humano sobre, no caso, a natureza entendida enquanto objeto. Ver é uma ação da natureza em nós, uma violência da natureza que se impõe sobre nós, em nós, que come nos nossos olhos, que come nossos olhos, obrigando-nos a senti-la, a nos assombrarmos com ela e a sofrê-la”, propõe Pucheu, em entrevista por e-mail à IHU On-Line. “Não se trata de a natureza nos olhar, o que já seria muito, mas de ela nos comer, de ela comer em nossos olhos, de ela comer nossos olhos, fazendo-nos vê-la, fazendo-nos sofrê-la, fazendo-nos sorvê-la”, complementa.
É por isso, por exemplo, que o entrevistado sugere que não é a invisibilidade da natureza que o surpreende, mas o contrário. “A primeira coisa que me surpreende, antes mesmo da invisibilidade, eu diria ser a visibilidade”, afirma. Ver, neste caso, talvez implique a retirada da marginalidade de modos de viver e pensar que sempre foram excluídos do que se tende a chamar de pensamento científico. Trata-se de restituir a memória historiográfica daquilo sem o qual o Brasil não existe.
“Não há um Brasil possível sem o pensamento de indígenas e sem o pensamento de negros, sem seus modos de vida, sem suas colocações e demandas que nos colocam a todos incessantemente em questão”, provoca Pucheu. “É preciso cavar, escavar, para tornar o invisível visível”, acrescenta.
Alberto Pucheu
Foto: Reprodução | Youtube
Alberto Pucheu é poeta, ensaísta, professor de Teoria Literária da Faculdade de Letras da Universidade Federal do Rio de Janeiro - UFRJ. Seu livro de ensaios Pelo colorido, para além do cinzento; a literatura e seus entornos interventivos (Faperj: Rio de Janeiro, 2007) recebeu o Prêmio Mário de Andrade de Ensaio Literário, da Fundação Biblioteca Nacional.
Além de ter mantido o blog “O cuidado da poesia; poemas do e para o nosso tempo” durante meses no site da Revista Cult e de ter preparado um dossiê sobre poesia contemporânea para a mesma revista, Alberto Pucheu também tem publicado poemas e ensaios em diversos livros, periódicos acadêmicos brasileiros e em portais nacionais e internacionais de literatura, bem como em vários jornais do país e em sites específicos.
A entrevista a seguir foi realizada por Faustino Teixeira, teólogo, colaborador do Instituto Humanitas Unisinos - IHU e do canal Paz Bem.
IHU On-Line – Você deve ter acompanhado de alguma forma a última Festa Literária Internacional de Paraty - FLIP, que ocorreu on-line, com um tema profundamente provocador para a Literatura, envolvendo questões que vêm do mundo animal e vegetal. Estiveram ali nomes importantes, como Stefano Mancuso, Merlin Sheldrake e Emanuelle Coccia, abordando temas instigantes. Imaginar que nós, animais, somos apenas 0,3% da biomassa, enquanto as plantas representam 85%. Como você se vê diante desse universo invisível? Qual apelo vem dali?
Alberto Pucheu – Infelizmente, não vi a última FLIP, nem mesmo tinha sabido do tema da Festa. Muito obrigado pela dica. Até hoje, isso para mim se passa mais pela experiência de vida e pela poesia do que pelo estudo teórico, ainda que esteja nos meus planos ler sobre plantas. Nem sempre as questões poéticas que nos movem são as mesmas questões dos textos críticos ou teóricos. Passando uma boa parte de minha vida no Vale do Socavão [1], e os últimos anos praticamente todos aqui nele, a primeira coisa que me surpreende, antes mesmo da invisibilidade, eu diria ser a visibilidade.
Primeiro, o impacto da floresta tropical, do céu, das montanhas, da terra, do sol e da chuva sobre nossos olhos, corpo, vida. Em certo momento, Manoel de Barros escreveu: “as paisagens comiam no meu olho”. Aqui fazemos essa experiência, a de que ver é ter os olhos comidos. Ver não é uma ação do sujeito humano sobre, no caso, a natureza entendida enquanto objeto. Ver é uma ação da natureza em nós, uma violência da natureza que se impõe sobre nós, em nós, que come nos nossos olhos, que come nossos olhos, obrigando-nos a senti-la, a nos assombrarmos com ela e a sofrê-la. Não se trata de a natureza nos olhar, o que já seria muito, mas de ela nos comer, de ela comer em nossos olhos, de ela comer nossos olhos, fazendo-nos vê-la, fazendo-nos sofrê-la, fazendo-nos sorvê-la.
Aqui, o que primeiramente sentimos não é uma individuação; nem mesmo sofremos de uma única árvore, mas sentimos um conjunto imponente, sofremos da floresta, somos impactados por uma trama incansável do múltiplo, por uma relação íntima excessiva da diversidade, por uma ramificação contínua em desdobramentos tensivos, por uma imbricação intensamente atrativa e disseminadora. A força de conjunção e a força de disjunção se impõem simultaneamente a qualquer percepção que sofremos da materialidade da floresta, da materialidade da selva, da silva. Qualquer um que tenha cavado uma vala, cavado um buraco na terra para plantar uma árvore, aberto uma cova para enterrar alguém sabe que tal entrelaçamento potente vale igualmente para o que está no solo, para as raízes que se espalham, se atravessam, misturam-se em rede, comunicam-se, amam-se, ajudam-se, disputam entre si etc. É preciso cavar, escavar, para tornar o invisível visível. É um invisível que se torna palpável, material e visível quando abrimos a terra com um enxadão, com a mão ou com o que quer que seja.
O mesmo ocorre com os fungos, os líquens, que vão se espalhando... Há muitos anos, quando uma criança me perguntou que bicho eu gostaria de ser se não fosse “gente”, não titubeei, respondendo, meio inconscientemente, de supetão: um bosque! Sim, um bosque, um vale, uma floresta, uma selva... A estatística que você oferece é a um só tempo surpreendente e evidente. É a tal história de ser preciso ser um profeta para enxergar o óbvio ululante. Não somos quase nada diante do universo, ainda que possamos destruir muito do que conhecemos da Terra – eis um de nossos paradoxos. Quanto pesa esse pinheiro aqui do lado? 2.000 quilos? 3.000 quilos? Bem, eu peso 90 quilos. Que eu pese apenas por volta de 3% de um pinheiro é curioso, e estou falando de apenas uma árvore no meio de infinitas outras.
Tudo bem, o mundo não é o Vale do Socavão, o mundo tem inúmeras cidades e bilhões de pessoas nelas. Ainda hoje, entretanto, saindo das cidades vê-se que as bilhões de pessoas são poucas diante das árvores do mundo. Seria por ressentimento que os homens destroem as árvores e florestas? Além da visibilidade, o próprio nome Vale do Socavão traz nele uma invisibilidade a quem olha o vale à primeira vista, a quem o olha superficialmente. O que é o Socavão que nomeia a região? Que cavos são esses, que ocos são esses, que vãos são esses? Como ver o que vai por baixo, no subterrâneo, escondido, invisível a um olhar inicial? Que socos dos ocos, dos cavos, dos vãos e do invisível são esses que recebemos? Que desejo de socavão é esse? A arte da nomeação esteve presente como raras vezes em quem denominou este lugar perdido, desconhecido de quase todos. Para estender essa arte da nomeação que de fato diz algo do lugar, ao menos para mim, só a poesia parece dar conta. Escrevi muitos poemas aqui, publicados ao longo dos livros, com títulos homônimos do lugar. Deixo um:
SOCAVÃO – UMA LIÇÃO DE NOMEAR
guimarães rosa o escreve de alguns modos:
ele fala de uma velha fazenda,
cuja casa tinha um cômodo
quase do tamanho dela,
por debaixo dela,
socavado no antro do chão
onde judiavam com pessoas,
com escravos, até aos poucos
matar, ele fala, por exemplo,
que havia uma cava grande,
onde o inimigo estava emboscado
dos dois lados, nos socavões,
nas paredes, ele fala, por exemplo,
que os das socavas entornaram
sangue-frio enquanto os demais
se assustaram, correndo em fuga maior
debaixo dos tiros, ele fala,
por exemplo, que alguém estava
socavando com ferramenta
a fito de abrir torneiras na parede
por onde buraco de se atirar
durante aquela guerra sem fim,
ele fala, ainda, que eles não saíam
dos solapos, dando cria
feito bichos em socavas,
mas, por experiência do lugar,
acrescento o que já falei,
que no socavão tem oco, cavo,
vão, e explico: aqueles vazios
pelas montanhas, abertos,
por gestão natural, por debaixo da terra,
quando chove, vindo, a chuva
adentra os poros dos morros,
soca o corpo da terra, mistura-se
a ele atravessando-o até encontrar
seus ocos, seus cavos, seus vãos,
até encontrar o socavão, então,
a água ali se armazena e, seguindo
o feitio inclinado da montanha,
desce por ela, procurando uma brecha,
procurando, pequena que seja, uma saída,
pela qual forma a nascente, a fonte,
corrigindo um tópos conhecido
da história da poesia e da filosofia
que diz que a fonte é metáfora de origem,
esta topografia, entretanto, ensina
que a fonte ou a nascente
não é a origem, que o socavão
é a fonte da fonte, a nascente
da nascente... mas como não pensar
que a água guardada em movimento
pelo socavão, a água que possibilita
a nascente ou a fonte, não foi brotada ali
do nada, por geração espontânea,
que a água guardada em movimento
pelo socavão vem da chuva,
e que tudo está mesmo aberto pelo meio?
Nesse estar aberto pelo meio, nesse abrir-se pelo meio, não conseguimos lidar nem mesmo com polarizações, assumindo uma confluência ou uma trama entre visibilidade e invisibilidade.
IHU On-Line – Estamos enredados num antropocentrismo ainda bem duro e impermeável, o que dificulta muito captar a nervura do mundo real, a teia de vida que nos envolve e preside. Diversos autores vêm falando de uma cognição presente no mundo animal e vegetal, envolvendo inclusive o mundo dos fungos. Estamos diante de uma singular “inteligência” e de comportamentos altamente sofisticados presentes no mundo das plantas e dos fungos. São seres capazes de “comunicação”, “tomada de decisão”, “aprendizado” e “memória”. Você, que também está mergulhado durante um tempo importante de sua vida no meio do mato, como capta essa nova perspectiva?
Alberto Pucheu – Antes de mais nada, o primeiro parágrafo de um texto filosófico - para mim, o mais bonito que conheço - é o do “Sobre a verdade e a mentira no sentido extramoral”, do Nietzsche, um texto de crítica extrema ao antropocentrismo moderno europeu – ao filósofo mesmo, ao sujeito do conhecimento – e de abertura a um pensamento outro, poético. Em uma das traduções disponíveis, de Noéli Correia de Melo Sobrinho, o texto começa assim: “No desvio de algum rincão do universo inundado pelo fogo de inumeráveis sistemas solares, houve uma vez um planeta no qual os animais inteligentes inventaram o conhecimento. Este foi o minuto mais soberbo e mais mentiroso da história universal, mas foi apenas um minuto. Depois de alguns suspiros da natureza, o planeta congelou-se e os animais inteligentes tiveram de morrer.” É uma passagem esplendorosa, essa, assim como todo o texto. O tempo dos humanos sobre a Terra é ínfimo. Estamos aqui há uns 250 mil anos, é isso? Os primeiros resquícios da nossa arte têm apenas uns 50 mil anos. E quanto tempo mais permaneceremos? Não estamos em um momento em que dê para sermos muito otimistas. Há quantos milhões de anos os vegetais estão sobre a Terra, mantendo, ainda hoje, a proporção de biomassa de que você falou?
Em um poema intitulado “Ela, o outro”, escrevi que a poesia serve a um outro, que a poesia é o lugar de um outro. Contrariamente ao antropocentrismo impermeável que historicamente nos atinge e forma, contrariamente à figura do antropoceno, a poesia nos oferece uma experiência da porosidade. Com ela, nossos pensamentos aprendem e assumem a porosidade que constitui nossos corpos. A aporia da porosidade, a aporia da passagem, é a que a poesia nos oferece, uma aporia pedagógico-poética ou uma pedagogia poético-política da aporia porosa ou da porosidade aporética.
Em nossos corpos, contrariamente ao cérebro, os poros não estão parcialmente localizados nem, muito menos, constituem um centro qualquer. Os poros se espalham, dispersando-se, por todo o corpo, eles são descentralizados, eles são dispersivos, disseminados. Não fazemos poesia com o cérebro, é preciso dizer. Não fazemos poesia (é preciso dizer!) nem mesmo com o coração. É preciso passar por fora dessa dicotomia que já deu muito o que falar inclusive na poesia brasileira. Fazemos poesia, e somos feitos por ela, com os poros – por isso, poetamos com a pele, com os buracos da pele... Não poetamos – isso é certo – com apenas um órgão privilegiado do corpo; muito para além de qualquer órgão, poetamos com os poros, com os ocos, os cavos, os vãos da pele e dos corpos.
A lição da poesia é a lição do Socavão e com ambos, no pouquíssimo tempo que nos cabe de vida, incessante e, muitas vezes, arduamente aprendemos. Talvez por isso, poetamos também com os sovacos. Somos golpeados por um outro, por uma alteridade, pelo real através da pele, através dos poros, dos ocos, dos cavos, dos vãos. Pelos poros, uma alteridade nos adentra, nos invade, chegando ao sistema nervoso, ao fluxo sanguíneo, às moléculas e, até mesmo, sim, é verdade, ao coração e ao cérebro, bem como ao baço, ao fígado, ao rim, ao pâncreas, aos nervos... O que entra, transformado, misturado com o que estava dentro, também sai pelos poros. Os poros são essas aberturas, essa aporia da passagem; a passagem enquanto essa indiscernibilidade entre o dentro e o fora. Nos poros, precisamos, certamente, de outra possibilidade que a da relação sujeito e objeto, mas também de outra possibilidade que a do engolimento, que a da apropriação do outro. Nos poros, há um desguarnecimento das fronteiras entre o dentro e o fora, uma passagem em dupla direção. O corpo respira pelos poros, e se a respiração é tão importante para a poesia, é exatamente nesse sentido poroso.
Essa é a “inteligência” da poesia, uma inteligência de poros, da respiração, do movimento, da passagem, uma inteligência esporádica. Lembro que o termo esporádico provém do que é disperso, do que se dissemina, como numa semeadura, estando o esporádico conectado, portanto, com os esporos, com as sementes, com o mundo vegetal. Se esporádico ganhou para nós uma dimensão predominantemente temporal, não podemos abrir mão de seu caráter espacial, daquilo que, espalhado, não foi ainda coletado.
Lembro que um pensamento da disseminação, por exemplo, também se refere a uma dispersão de sementes ou esporos. Sendo esporádica, a inteligência da poesia (uma inteligência dos poros aporéticos ou da aporia dos poros) é uma inteligência ao modo vegetal, ao modo das plantas, ao modo da floresta, ao modo do selvagem, ao modo do socavão. Mesmo vinda para o poema, a colheita da poesia não sai da terra.
IHU On-Line – Vejo que a literatura vem captando os apelos que se irradiam do mundo animal e vegetal. Você mesmo faz alusão a isto. Qual o desafio que esse “mundo invisível” significa para a literatura?
Alberto Pucheu – Em um ensaio intitulado “Que porra é essa, poesia?”, do qual um fragmento virou o vídeo “Hermes, a tartaruga e a lira” – todo filmado em dias de névoa aqui no Socavão – e ainda um poema, escrevi que, para a poesia lírica, existe uma dependência inata entre ela e o animal, a tal ponto que, não fosse este último, não haveria o canto com a lira. Há milênios, conta-nos o Hino Homérico a Hermes, que traz o mito do nascimento da poesia lírica ou mélica, que ao se deparar com uma tartaruga logo ao sair recém-nascido de sua gruta, Hermes percebeu que ela, se morta, retirada sua carne, a partir de seu casco oco, poderia ajudá-lo. A carapaça seria envolta em couro de vaca, atravessada por duas talas de cálamo, ajustadas acima por uma trave perpendicular, pela qual se estenderiam sete cordas afinadas, de tripas de ovelhas. Morta, com seu casco – a lembrar a gruta em que o deus acabara de nascer –, com o auxílio luxuoso de ao menos uma ovelha e um bovino também mortos, a tartaruga seria a primeira a auxiliá-lo, oferecendo-lhe belos cantos através de uma nova arte inventada por ele.
Ressalto que a poesia lírica vem do animal e do vegetal. Vinda a lira da tartaruga, não significa que, em algum grau, o quelônio, constituindo-a, também a possui? Sendo o casco, como a gruta, uma caixa de ressonância, já estaria nele, em algum grau, a poesia lírica ou mélica? Com a ovelha emprestando suas tripas à lira, a música já estaria, em algum grau, na ovelha com suas tripas? Com a vaca emprestando seu couro para a lira, a música já estaria, em algum grau, na vaca? Com os cálamos (e, portanto, os vegetais) se erguendo para sustentar a vibração das cordas, a música ou a poesia já estaria, em algum grau, nos cálamos e nos vegetais? Passados todos esses séculos e milênios, é certo que a poesia não perdeu seu vínculo com os animais nem, tampouco, com os vegetais, ainda que possa ter tido alterado o modo dessa relação inata.
Em nosso tempo crítico e pós-mítico, em que – ainda – há poesia, o caminho do canto ou do poema acaba por inverter o daquele verso do hino homérico, levando o cantor a se descobrir também uma tartaruga, se descobrir também tripas de ovelha, se descobrir também couro de vaca, se descobrir também talas de cálamo, se descobrir também os vegetais de que são feitos os braços da lira. Os desafios que os animais e vegetais colocam para os poetas não são novos nem exclusivamente do nosso tempo; antes, eles constituem a materialidade da lira e o fazer da poesia desde sempre. Se a neurobiologia, por exemplo, está chegando hoje a um pensamento vegetal que para ela (e para nós, tanto ocidentais quanto modernos) é revolucionário, parece-me ser por, sabendo ela ou não, colocar-se poeticamente diante do mundo. É exatamente aí que ela terá muito a nos dizer, a dizer para a ciência e inclusive a dizer para a poesia. Imagino que Stefano Mancuso, por exemplo, só seja o cientista que é pensando essas questões, porque se interessa não exclusivamente pela ciência, mas também pela poesia, pela literatura, pelas artes visuais, porque, se a ciência finalmente chega a um pensamento animal e, agora, vegetal, esse é o ponto de partida da poesia, como pode ser lido no incomparável e maravilhoso Hino Homérico a Hermes.
IHU On-Line – Li com grande interesse uma resenha sua sobre o livro A queda do céu, de Davi Kopenawa e Bruce Albert. Trata-se de um livro que traz para nós um desafio essencial, no sentido de deixar-nos habitar por cosmologias alternativas. Eduardo Viveiros de Castro escreveu no prefácio que esse livro significa “um acontecimento científico incontestável”, e que levará anos para ser compreendido e assimilado. Falou ainda, com base em Latour, que as inquietudes expressas por Davi no livro não são nada infundadas. O que dizer sobre isto?
Alberto Pucheu – O Brasil é um país que barrou e segue barrando continuamente sua memória. Que memoriais da escravidão nós temos? Que memoriais da ditadura nós temos? Nossos memoriais são sobretudo as pessoas vivas. De não haver essa memória pública e coletiva provém nossa fragilidade extrema, nossa violência constitutiva, nosso racismo estrutural. Mesmo na poesia e na literatura, isso acontece. Em nossas histórias da literatura e da poesia, as tradições indígenas e negras foram total e violentamente boicotadas, como se não existissem em nosso solo. À escravidão e assassinatos das nações originárias e dos povos africanos desde a invasão dos portugueses, equivale um verdadeiro poemicídio seguido de uma escravização histórica também da cultura. Somos especialistas tanto em genocídios quanto no poemicídio e em uma espécie de logocídio, matando, junto com as pessoas, línguas, culturas, experiências e saberes.
Isso nos leva igualmente a uma destruição brutal e igualmente inconsequente do mundo selvagem, de animais e florestas. Somos criminosos da maior parte do que nos constitui; somos, a um só tempo, assassinos e suicidas. Com o governo Bolsonaro, isso passou a se dar em um grau infinitamente pior do que o com o que estávamos – infelizmente – acostumados. Esse governo é, a um só tempo, o mais perverso e o mais criminoso, em que todos os tipos de crimes são feitos e defendidos às claras, sem qualquer subterfúgio.
O livro de Kopenawa e Bruce Albert é um acontecimento em todos os graus de uma grandeza incontestável, para a qual, se quiséssemos nos colocar minimamente à altura dele, precisaríamos de um tempo muito vasto de dedicação a ele – precisaríamos da espessura do tempo das florestas, dos vales, de tempos outros que os urbanos a invadir inclusive os tempos urbanos. A queda do céu nos coloca diante de uma de nossas faltas fundadoras e faz aparecer essa carência que nos constitui e sua exclusão como estratégia de domínio colonizador, com consequências drásticas para nossa história e para o nosso tempo. O livro, e tudo o que ele implica – já que ele salta para fora de seus limites físicos –, coloca-se, para nós, impressionantemente, como uma fundação tardia do Brasil, como uma refundação contemporânea do Brasil ou como uma refundação, como gosto de dizer, arcaicontemporânea do Brasil. Sua poesia é uma aposta ética e política em outro passado, em outro presente e em outro futuro, que nos favoreceria absolutamente a todos, ou a quase todos. Infelizmente, o Brasil de hoje não está nem de longe à altura de Kopenawa nem dos modos de vida indígenas de modo geral.
Há poucos dias, fui ver a nova exposição do Sebastião Salgado, Amazônia, e saí de lá, por um lado, engrandecido (ele consegue a árdua tarefa de fotografar o que é imenso com toda a imensidão) e, por outro, desolado, desolado com a pequenez que fizemos de nossas vidas. Mesmo que seja uma empreitada vã, temos de lutar, entretanto, para sair da infâmia em que estamos mergulhados e, para isso, temos muito o que aprender com Kopenawa e outros indígenas. Como você disse, escrevi um pouco sobre ele e fico agradecidamente feliz com suas palavras. Escrevi também sobre a poesia de Eliane Potiguara, de Marcia Kambeba e sobre alguns indígenas isolados. E há tudo ainda a ser escrito, pensado, aprendido, sentido, vivido, valorizado, reconstruído.
Não há um Brasil possível sem o pensamento de indígenas e sem o pensamento de negros, sem seus modos de vida, sem suas colocações e demandas que nos colocam a todos incessantemente em questão, porque, além de trazerem suas mais do que importantes tradições, fazem uma crítica inapelável à razão dos colonizadores e dos neocolonizadores de sempre, sem a qual não seguiremos adiante. Tais pensamentos incomodam pois neles – em indígenas e em negros – está a linha de fuga que podemos ter ao violento hegemônico de sempre que se impõe com suas armas estatais, econômicas e terroristas. Por isso, é muito viva a sensação de que fazer poesia é fazer política, de haver um entrelaçamento necessário entre poesia e política. Aqui no Brasil, o conascimento do movimento indígena organizado e o de sua poesia ou literatura contemporânea, escrita, mostram isso.
IHU On-Line – Você também é estudioso de um grande buscador brasileiro, o poeta e tradutor Leonardo Fróes, que também se retirou da grande cidade e deixa-se abrigar pelo desafio das matas. Como você percebe o valor da literatura que brota de alguém que captou o “caminho do campo”?
Alberto Pucheu – Leonardo Fróes foi um poeta importantíssimo para mim, que li e conheci nos anos 1990, quando lançou Argumentos Invisíveis (Rio de Janeiro: Rocco, 1995). Um livro imprescindível, que me impactou muito. Depois, quando publicou o Vertigens (Rio de Janeiro: Rocco, 2003), sua poesia reunida de então, cheguei a propor uma resenha para o Prosa & Verso, que escrevi e foi publicada. Mais ou menos na mesma época, talvez um pouco antes, também conheci, com o mesmo pasmo, o trabalho de Vicente Franz Cecim, esse poeta monumental da Amazônia, que criou Andara, uma Amazônia mítica. Anos depois, propus a resenha de Ó Serdespanto (Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2006) para o mesmo Prosa & Verso, tendo sido então publicada.
No fim dos anos 1980, eu havia conhecido Manoel de Barros, via a belíssima entrevista na revista Bric-a-Brac, com quem acabei trocando cartas, entrevistando, escrevendo resenhas e ensaios sobre ele, dando conferências etc. Pois bem, esses três poetas podem ser para mim três dos poetas brasileiros que, fora os que todos conheciam, e fora o Fernando Ferreira de Loanda, de Kuala Lumpur, muito me marcaram nos anos 1990 na singularidade de escrita e de vida que eu então buscava. Lamentei por muito tempo não ter escrito longamente sobre Leonardo Fróes e sobre Vicente Franz Cecim. Talvez por isso, quando do lançamento do Trilhas pela Editora Azougue, fizemos o filme “Leonardo Fróes: um animal na montanha” (com Sérgio Cohn e Gabriela Capper) e, poucos anos depois, “Vicente Franz Cecim: um animal na floresta” (com Danielle Magalhães), surgindo, para mim, um novo tipo de ensaísmo crítico no qual não falo nem escrevo – o dos documentários amadores que fiz e sigo fazendo.
Era um modo de, tornando pública minha admiração por tais poetas, suprir a minha ausência de ensaios sobre eles, escutá-los falando os poemas de que mais gosto e falando sobre suas escritas e vidas. Fiquei muito feliz com a recepção dos filmes. No caso do Leonardo Fróes, o filme foi imediatamente muito visto no Youtube, muito mesmo, milhares de visualizações em poucos dias. A sensação era que se aguardava com ânsia a eclosão mais pública, ou que ela estava de algum modo represada, de um poeta como ele que, entretanto, construía sua trajetória já há algumas décadas. O jornalista Guilherme Freitas, que não conheço, viu o filme, fez uma matéria de capa no Segundo Caderno do Globo com o poeta e mencionou o filme. Depois disso, Leonardo acabou sendo escolhido o escritor do ano pelo jornal, foi convidado para ir à Flip pela primeira vez, foi convidado para a Inglaterra para um evento, acaba de sair sua poesia reunida pela Editora 34... Muita coisa finalmente aconteceu com a poesia dele, que hoje é muito mais lida do que era nos anos 1990. Se Manoel de Barros estivesse vivo, eu teria feito um filme também com ele, apesar de ter escrito e falado bastante em público sobre ele. Mas ele estaria nessa primeira trilogia audiovisual imaginada:
1) Leonardo Fróes: um animal na montanha;
2) Vicente Franz Cecim: um animal na floresta;
3) Manoel de Barros: um animal no pantanal (lamentando a rima em “al”).
Quanto ao Vicente, mais recentemente acabei escrevendo e publicando um ensaio sobre ele.
Mas o que une esses três poetas tão distintos entre si? Certamente, a natureza. Os poetas que mais me marcaram entre o fim dos anos 1980 e os 1990, fora os habituais de todo mundo, e fora o Fernando Ferreira de Loanda, de Kuala Lumpur, eram poetas ligados à natureza: Leonardo, às montanhas (de Secretário, Petrópolis e arredores); Vicente, à Amazônia; Manoel de Barros, ao Pantanal. Claro que são três lugares em todos os sentidos muito distintos do Brasil, como extremamente distintas são as dicções deles, os ritmos deles, as sintaxes deles, ainda que os três tragam singularidades imensas e incomparáveis na poesia brasileira. Como você fala em “o caminho do campo”, eu poderia dizer que os três são, sem dúvida, poetas ligados à natureza, mas, cada um ao seu modo, com uma poesia fortemente pensada da natureza, jamais como poetas que representam a natureza em seus poemas. São poetas pensadores da natureza e dos modos de estar do ser humano nela. Em todos, em algum grau, um ponto de dissolução do humano na natureza, uma zona qualquer de indiscernibilidade. Neles, parece-me igualmente que seus lugares, construídos em poesia, estabelecem modos de habitação poéticos do mundo. Importante dizer que os três poetas, mesmo lidando com a natureza, também moraram em cidades, viajaram pelo mundo etc. Ou seja, é preciso dizer que esses poetas ligados à natureza pensada e poetizada são igualmente poetas cosmopolitas, leitores das tradições literárias de diversas línguas, poliglotas etc.
Você me faz uma pergunta muito difícil de responder: “Como você percebe o valor da literatura que brota de alguém que captou o ‘caminho do campo’?” Nos casos citados, Manoel de Barros sempre me pareceu uma espécie de pré-socrático ou, mais propriamente falando, de um fisiólogo (physiólogo) contemporâneo – um fisiólogo que adora rir e fazer rir; Vicente Franz Cecim faz uma escrita exuberante que se coloca nos interstícios entre poesia, romance, filosofia, mística, mítica...; Leonardo Fróes tem uma poesia do devir dos elementos da natureza e do humano em busca de aprendizagem constante e de um ponto de indiscernibilidade qualquer entre eles; daí, poderia falar também de uma certa mística da natureza em seus poemas.
Não gostaria de criar uma contraposição fácil entre tais poetas da natureza e outros poetas urbanos. Não gostaria de fazer isso empurrando-os a uma natureza idílica que se resguarda da experiência urbana, contrapondo-se a ela, como se tivéssemos de buscar um retorno à natureza em contraposição à destruição urbana, ainda que isso seja uma questão importantíssima a ser pensada, sobretudo no Brasil. Não gostaria de cair em tal dualidade. Como disse antes nessa entrevista, entendo a poesia e, com ela, os poetas, pelas porosidades, pelo que aqui chamei de aporia poética da porosidade, de porosidade aporética da poesia, de aporia poético-pedagógica ou de uma pedagogia poético-política da aporia porosa ou da porosidade aporética. Independente dos modos de vida que cada um possa ter, mais ou menos urbano, mais ou menos vivendo na natureza, é a essa pedagogia poética dispersiva e descentralizada da porosidade que o poeta se entrega. Poros ou esporos, esse me parece um ponto de contato entre os poetas e os vegetais, cujos modos de percepção e de resposta que dão ao que os atingem são igualmente disseminadores. Mesmo quando na cidade.
IHU On-Line – Quando me deparo com alguns poemas de Adelia Prado e Manoel de Barros, sinto uma sensibilidade única para o mundo extra-humano. Sei que é estudioso desses poetas queridos. Você também percebe isso? Exemplifico com dois extratos tirados desses poetas:
«A ressurreição já está sendo urdida, os tubérculos da alegria estão úmidos vão brotar sinos»
(Adélia Prado – No meio da noite)
“Para entrar em estado de árvore é preciso
partir de torpor animal de lagarto às
3 horas da tarde, no mês de agosto.
Em 2 anos a inércia e o mato vão crescer
Em nossa boca.
Sofreremos alguma decomposição lírica até
O mato sair na voz.
Hoje eu desenho o cheiro das árvores”
(Manuel de Barros – no Livro das Ignorãças)
Alberto Pucheu – Sim, o fora do humano, o que você chama de “extra-humano”, é igualmente um tema que atravessa toda a poesia e todo pensamento da poesia. Desde Platão, acerca do poeta, expressões como “eles não possuem mais o senso (nous)”, “o senso (nous) não está mais nele”, “o deus retira deles o senso (nous)” e “enquanto mantiver esse bem (o nous) todo homem é incapaz de poetar” retornam sem cessar.
Em Platão, tem esse paradoxo maravilhoso de o poeta ser visto como tendo um pensamento sem senso. Dos poetas – e rapsodos –, é dito que são bacheuousi, os que, celebrando os mistérios de Bacchos, são possuídos pela presença divina que os leva ao êxtase caracterizado pela mencionada perda do nous pessoal e humano. Em tal contexto, eles estão fora de si [ekphron], fora de toda e qualquer possibilidade de uma inteligência, um pensamento, uma sensibilidade, uma percepção e uma espiritualidade pessoal e centrada no homem, fora de tudo com que o homem, em sua diferença específica, recepciona o que se lhe apresenta.
Fora de si, os poetas são descentrados, excêntricos, marginais; passageiros, seus corpos recebem sua destinação do impessoal de vida em seu movimento vivificador. Enquanto poeta, o indivíduo é fendido, desapropriado, desalojado. Por isso, diz Platão, eles são leves, alados, sagrados. Com variações, possibilidades poéticas afins atravessam a modernidade. Em uma carta que traduzi, deixando a divindade de lado, Keats fala que o poeta é sem identidade, Rimbaud tem sua famosa frase “Eu é um outro”, Pessoa estabeleceu seus heterônimos, Mario de Andrade disse ser quinhentos, quinhentos e cinquenta... e por aí vão os poetas. De diversos modos, o extra-humano compõe o poético do humano que se abre àquele, que se abre à natureza, às divindades, à cidade, à política, ao povo, ao cosmos, aos astros, às coisas, a outras pessoas, a animais, a vegetais, a qualquer alteridade, a qualquer fora de si. O poeta tem muitos lugares de fala, inclusive o seu.
No Socavão, o que me surpreende,
bem antes da invisibilidade
que você propõe como tema
da entrevista, eu diria ser
a visibilidade, o impacto
da floresta, do céu, das montanhas,
da terra, do sol e da chuva
sobre nossos olhos, corpos, vidas.
Manoel de Barros escreveu:
“as paisagens comiam no meu olho”.
No Socavão, fazemos a experiência
de que ver é ter os olhos comidos.
Ver não é uma ação do sujeito
humano sobre, no caso, a natureza
entendida enquanto objeto. Ver:
essa ação da natureza em nós,
essa violência da natureza
impondo-se sobre nós, comendo
em nossos olhos, comendo
nossos olhos, obrigando-nos
a senti-la, a nos assombrar
com ela, a sofrer dela. Não se trata
nem mesmo de a natureza nos olhar
– o que já seria muito –, mas de,
comendo nossos olhos, ela
nos fazer vê-la, ela nos fazer
sorvê-la, ela nos fazer doer
dela. No Socavão, o que sentimos
não é uma individuação, não
doemos aqui de uma única árvore,
mas sentimos um conjunto
imponente, sofremos
da floresta, somos impactados
por uma trama incansável
do múltiplo, por uma relação
íntima excessiva da diversidade,
por uma ramificação contínua
em desdobramentos tensivos,
por uma imbricação intensamente
atrativa e disseminadora. A força
de conjunção e a de disjunção
se impõem simultaneamente
a qualquer percepção
da materialidade da floresta,
da materialidade da selva,
da silva. Qualquer um
que tenha cavado uma vala,
um buraco na terra para plantar
uma árvore, aberto uma cova
para enterrar alguém palmos
abaixo da superfície da terra,
sabe que tal entrelaçamento
também vale para o que está
no solo, para as raízes que,
espalhando-se, se atravessam,
misturam-se em redes, comunicam-se,
se amam, se ajudam, disputam
entre si. Quando se abre a terra
com a mão, com enxadão
ou com o que quer que seja,
é preciso cavar, escavar,
até tornar o invisível
visível, palpável e material.
Há muitos anos, quando, aqui,
uma criança me perguntou
que bicho eu gostaria de ser
se não fosse “gente”, não titubeei,
respondendo, meio inconscientemente,
de supetão: um bosque,
um vale, uma floresta!
*
Contrariamente ao antropocentrismo
impermeável que historicamente
nos atinge e forma, contrariamente
ao nosso tempo antropoceno, a poesia
nos oferece uma experiência
porosa. Com ela, pensamentos
aprendem e assumem a porosidade
que constitui nossos corpos. Uma aporia
da porosidade ou uma porosidade
aporética, uma aporia da passagem
ou uma passagem aporética,
o que a poesia nos oferece.
Contrariamente ao coração
e ao cérebro, os poros
não estão parcialmente localizados
nem, muito menos, constituem
um centro qualquer. Eles
se espalham, se dispersam,
se descentralizam, disseminando-se,
à nossa revelia, pelo corpo.
É preciso dizer que não fazemos poesia
com o cérebro, é preciso dizer que não
fazemos poesia com o coração,
é preciso passar por fora
dessa dicotomia
que já deu tanto
a falar, inclusive, na poesia
brasileira. Fazemos poesia,
e somos feitos por ela,
com os poros, poetamos
com a pele, com os buracos
da pele. Muito para além
de qualquer víscera ou órgão
exclusivos, poetamos
com os ocos, os cavos e os vãos
da pele. A lição da poesia é
a lição do Socavão e,
com ambos – Socavão
e poesia –, no pouquíssimo
tempo que nos cabe de vida,
aprendemos. Através de milhões
de poros, ocos, cavos e vãos
da superfície da pele,
pelos socavões do corpo,
somos golpeados por alteridades
e pelo real que nos atravessam,
nos invadem, chegando ao baço,
ao fígado, ao rim, ao pâncreas,
ao sistema nervoso, ao fluxo
sanguíneo, às moléculas e,
até mesmo, ao coração e ao cérebro,
encontrando, então, uma saída
qualquer. Os poros são
uma passagem enquanto
um desguarnecimento das fronteiras
entre o dentro e o fora. O corpo respira
pelos poros e, se a respiração
é tão importante para a poesia,
é tanto por conta dos ocos, cavos
e vãos dos pulmões, da laringe
e da boca quanto, sobretudo,
por conta dos poros – eis o caminho
aporético, poroso, da poesia. Porosas,
a inteligência e a sensibilidade
da poesia são esporádicas, dispersas,
esporos ao vento em semeadura.
Se esporádico acabou ganhando
uma dimensão predominantemente
temporal, não podemos abrir mão
de seu caráter espacial, daquilo que,
espalhado, lançando-se para germinar,
ainda não foi coletado. Sendo esporádica,
a inteligência e a sensibilidade
da poesia (inteligência e sensibilidade
de poros aporéticos ou da aporia porosa)
é inteligência ao modo vegetal, ao modo
das plantas, das árvores, da floresta,
ao modo do selvagem, ao modo
do Socavão. Mesmo vinda para o poema,
a colheita da poesia não sai da terra.
Nota:
[1] Socavão, local a que o entrevistado se refere, fica nos arredores de Teresópolis, na Região Serrana do Rio de Janeiro. (Nota do IHU)