Na opinião do pesquisador, tratar do atual regime climático em termos de “risco” ameniza e falseia a realidade que vivemos
Pandemia viral, eventos climáticos extremos e transformação de biomas. Nada disso soa como algo novo para os viventes das primeiras décadas do século XXI, de modo que esses fenômenos conformam, como nos sugere o entrevistado, uma “nova geografia ecológica do medo”. “Risco pode ser algo vago, distante, apenas provável. Ameaça, ao contrário, é um sinal claro de perigo iminente. Encarar as transformações do planeta como certas e ameaçadoras à própria humanidade pode significar a nossa sobrevivência enquanto espécie, de modo que um grande esforço de ‘adaptação’ se inicie o mais breve possível”, avalia o professor e pesquisador Caio Maciel, em entrevista por e-mail ao Instituto Humanitas Unisinos – IHU.
Some-se ao contexto geológico a dimensão sociológica da geografia. “Outro fator que deve ser considerado são as terríveis desigualdades socioeconômicas e os fatores políticos que incidem nas consequências tanto de surtos epidêmicos quanto de eventos climáticos extremos segundo países e regiões”, aponta. “No Brasil vivenciamos as duas situações ao mesmo tempo! Isto nos traz à segunda parte de sua questão: como as pessoas percebem as ameaças e como as autoridades agem. Sendo a atual pandemia consequência ou não das mudanças climáticas, acredito que superamos a visão tupiniquim de que ‘essas doenças são coisas da Ásia ou da África e que não nos atingem’”, complementa.
A incerteza aparece neste contexto como uma variável importante e que, em certa medida, coloca em causa a ideia do desenvolvimento sustentável. E é nesse contexto que a noção de sociedade da ameaça entra no jogo, que está relacionada às “grandes intimidações advindas de desastres naturais até certo ponto imprevisíveis”.
“O ponto crucial para tal mudança epistemológica é a crescente ‘desilusão quanto à certeza’ na planificação. Na longa caminhada desde as primeiras propostas de sustentabilidade, o horizonte do planejamento não deveria mais estar focado na redução das incertezas, e sim na ação em contexto de surpresa e ignorância que podem emergir de todos os lados (novas doenças, clima, quebras de safras, aumento dos níveis do mar etc.)”, propõe Maciel.
Caio Maciel (Foto: UFRP)
Caio Augusto Amorim Maciel é graduado em Agronomia pela Universidade Federal Rural de Pernambuco - UFRP, com mestrado em Geografia pela Universidade Federal de Pernambuco – UFP e doutorado em Geografia pela Universidade Federal do Rio de Janeiro UFRJ, com período de doutorado-sanduíche na Université de Pau et des Pays de l'Adour, na França. Atualmente é professor da Universidade Federal de Pernambuco, integrando o Programa de Pós-Graduação em Geografia. Coordena o Laboratório de estudos sobre Espaço, Cultura e Política - LECgeo, grupo de estudos interdisciplinar com foco em Geografia Humana, Social e Cultural fundado em 2008. Realizou estágio pós-doutoral na School of Global Studies da Universidade de Sussex, Reino Unido.
IHU – A pandemia do novo coronavírus escarnou um dos efeitos mais duros das mudanças climáticas. O que de fato aprendemos e estamos aprendendo com essa experiência?
Caio Maciel – Não se pode dizer ao certo que a pandemia do novo coronavírus tenha uma relação direta com as mudanças climáticas, muito embora seja esperado que outras doenças surjam e se disseminem devido às alterações ambientais provocadas pela humanidade. Enquanto não forem descobertas com precisão as origens do vírus, o que se pode afirmar é que a globalização facilitou sua rápida disseminação por vários territórios de natureza muito diversa, desde países temperados às savanas africanas e brasileiras. As reações dos governos locais, depois de certo vacilo da OMS em admitir a pandemia, é que foram muito díspares, descoordenadas – o que mostra que não estamos preparados para um mundo ultraconectado também pelas pragas e doenças. Esta é a maior lição da pandemia.
IHU – No Brasil, depois do caos gerado pela pandemia, vemos agora as tempestades de verão se agudizarem e causarem destruição em diversos estados, por último na Serra do Rio de Janeiro, em Petrópolis. Como esses dois efeitos das mudanças climáticas têm incidido sobre a percepção das pessoas de que essas mudanças são reais? E o que essa percepção tem gerado de ações concretas, especialmente no poder público?
Caio Maciel – Como observei na questão anterior, ainda não temos como comprovar que a pandemia se deva sobretudo às mudanças climáticas (embora isto seja plausível). Prefiro adotar uma posição mais prudente. Todavia, devemos lembrar que por ocasião de surtos de outras doenças novas – como gripe aviária, ebola etc. - tínhamos a sensação, a partir do Brasil, de que estas questões estavam distantes de nós. A grande virulência do novo coronavírus “navegou” na conectividade do mundo globalizado, demonstrando que estamos unidos para o bem ou para o mal – o que se aplica, de maneira análoga, aos efeitos das mudanças climáticas.
Outro fator que deve ser considerado são as terríveis desigualdades socioeconômicas e os fatores políticos que incidem nas consequências tanto de surtos epidêmicos quanto de eventos climáticos extremos segundo países e regiões. No primeiro caso, a desigualdade no acesso e distribuição de vacinas explica as consequências mais severas da SARS-COV2 no “Sul Global”; enquanto no segundo caso podemos pensar nos Estado Unidos, maior potência mundial, que viveu grande mortalidade decorrente da doença por posturas negacionistas e atitudes pouco colaborativas de dirigentes e de grande parte da população.
No Brasil vivenciamos as duas situações ao mesmo tempo! Isto nos traz à segunda parte de sua questão: como as pessoas percebem as ameaças e como as autoridades agem. Sendo a atual pandemia consequência ou não das mudanças climáticas, acredito que superamos a visão tupiniquim de que “essas doenças são coisas da Ásia ou da África e que não nos atingem”. Apesar da experiência recente com a AIDS haver mostrado que estamos implicados com a aldeia global, grande parte da população (sobretudo os mais jovens) não trazia lembranças vivas daquela devastação.
Estranhamente isto se aplica também a eventos excepcionais como as chuvas torrenciais e recorrentes na Serra Fluminense ou as secas no Nordeste. No Rio de Janeiro se fala em “amnésia do céu azul”: passada a tragédia, como as de 1988 e 2011, as pessoas tendem a esquecer o problema. Acontece que episódios cada vez mais severos e repetidos tendem a transformar tal sistema cognitivo. Se no sertão as pessoas passaram a falar desde duas décadas atrás em “conviver com a semiaridez” e não combater a seca, é provável (ainda que incerto) que os drásticos e inusitados temporais como os que se abateram em várias regiões brasileiras neste verão (sul da Bahia, Minas Gerais, São Paulo, Rio de Janeiro...) provoquem uma mudança de atitude. Ainda assim, isto carrega diferenças notáveis segundo as classes sociais: para os mais pobres que vivem em áreas de risco por estrita falta de opções, o futuro repetirá o passado, inclusive quanto ao racismo ambiental de muitos dirigentes (o próprio presidente da república afirmou, quanto aos atingidos pelas chuvas em São Paulo, que “faltou visão de futuro” às pessoas que viviam em áreas de risco).
Como as ações concretas são onerosas e o risco de desgaste político muito alto, populações permanecerão se arriscando em zonas de alta vulnerabilidade. Quando entra em jogo uma percepção de longo prazo acerca de eventos extremos, sabemos que retirar pessoas que hoje moram em terrenos impróprios é urgente e necessário, sim, porém tal estado de coisas representa amiúde apenas um sintoma, uma consequência da sociedade excludente e desigual que somos. Se não houver uma mudança de natureza política, as remoções e ações pontuais de hoje não evitarão tragédias ainda maiores no futuro. Petrópolis assumiu o paroxismo dessa situação.
IHU – O senhor segue a perspectiva de alguns teóricos que acreditam que passamos de uma sociedade de risco a uma sociedade ameaçada. Gostaria que recuperasse esses conceitos e nos detalhasse como se dá essa passagem de um a outro.
Caio Maciel – Esta é a posição defendida pelos geógrafos Vincent Berdoulay e Olivier Soubeyran, cujo livro L’aménagement face à la menace climatique. Le défi de l’adaptation (Uga éditions, Université de Grenoble Alpes, 2020) eu resenhei (algo como: O planejamento face à ameaça climática: o desafio da adaptação). Nesta obra de 2020 (ainda não publicada no Brasil), aqueles autores propõem, a partir das ideias de Dominique Bourg, Pierre-Benoît Joly e Alain Kaufmann (2013), que passamos de uma sociedade do risco para uma sociedade da ameaça. O que todos esses pensadores querem dizer com isso é que o poder do ser humano em transformar os ambientes excederia em muito a sua compreensão sobre a natureza – e, portanto, a capacidade de imaginar efeitos não intencionais de longo prazo de ações antrópicas sobre a Terra.
As hipóteses que relacionam a eclosão de novas doenças com as dramáticas alterações humanas nos ecossistemas de todo o planeta personificam essa nova geografia ecológica do medo, assim como a percepção de que eventos climáticos extremos são uma espada que nós mesmos postamos sobre nossas cabeças. Risco pode ser algo vago, distante, apenas provável. Ameaça, ao contrário, é um sinal claro de perigo iminente. Encarar as transformações do planeta como certas e ameaçadoras à própria humanidade pode significar a nossa sobrevivência enquanto espécie, de modo que um grande esforço de “adaptação” se inicie o mais breve possível.
Tal noção de adaptação às novas condições do meio poderia problematizar e operacionalizar a sustentabilidade no planejamento territorial e ambiental, ainda segundo os autores supracitados. Ou seja, tratar-se-ia de uma oportunidade a ser compreendida, visando a ações mais efetivas, num cenário de graves ameaças à própria existência humana. Acredito que se isto for aplicado a Petrópolis, por exemplo, poderemos superar a tal síndrome do céu azul. É o que move, também, a troca do paradigma de lutar contra as secas pelo sintagma da convivência com a semiaridez e a possibilidade de estiagens cada vez mais frequentes e severas.
IHU – Que conceito de desenvolvimento sustentável emerge de nossa modernidade racionalista? Em que medida já está superado e como podemos conceber alternativas ou outros conceitos de desenvolvimento?
Caio Maciel – O conceito de desenvolvimento sustentável decorre da afirmação da questão ambiental nos anos 1970, passando a ser praticamente hegemônico no planejamento territorial nos anos 1990. Nos albores do século XXI, tal paradigma compartilha a ideia de resiliência presente na proposta da sociedade da ameaça: a consciência recente das grandes intimidações advindas de desastres naturais até certo ponto imprevisíveis. Resiliência torna-se quase sinônimo de adaptação, interpondo-se o conceito de preempção (significando que a prevenção é superada pela ideia de supressão antecipada de um problema ainda não aparente: ao invés de agir sobre causas, preempção visa interpretar comportamentos para eliminar eventos indesejados).
O ponto crucial para tal mudança epistemológica, na opinião dos autores, é a crescente “desilusão quanto à certeza” na planificação. Na longa caminhada desde as primeiras propostas de sustentabilidade, o horizonte do planejamento não deveria mais estar focado na redução das incertezas, e sim na ação em contexto de surpresa e ignorância que podem emergir de todos os lados (novas doenças, clima, quebras de safras, aumento dos níveis do mar etc.).
As incógnitas seriam responsáveis, assim, por uma retomada da ideia de adaptabilidade em um contexto mundial marcado por crises ameaçadoras e iminentes (não apenas climáticas, como também sociais, culturais, econômicas e políticas – a atual guerra na Ucrânia relembra o quanto devemos estar alertas às incertezas naturais e geopolíticas).
Enfim, os autores criticam propostas de planejamento que visem tornar territórios e sociedades imunes a eventos cada vez mais imprevisíveis, em que estratégias convencionais de adaptação com base em previsões, por mais sofisticadas que sejam, tornam-se frágeis e antiéticas. Os autores denominam tal tendência particularista de “ética do navio de cruzeiro”, típica do sistema capitalista atual: todo planejamento contemporâneo pretende uma autonomia radical, via condições territoriais que se abstraiam do jugo de condições locais. A imagem dos navios de luxo singrando e poluindo mares de países subdesenvolvidos é evocada como exemplo máximo, ao lado dos condomínios fechados e cercados. Traduzindo para uma situação já abordada na entrevista: de nada adianta planejar o desenvolvimento sustentável apenas para as áreas históricas, bairros de luxo e centro de Petrópolis quando, ao redor, as florestas e morros despencam sobre as periferias.
IHU – Como o senhor compreende e responde ao chamado “negacionismo climático”?
Caio Maciel – O negacionismo climático apoia-se mais em convicções (ideologias) do que em evidências científicas. Há um consenso considerável entre os cientistas de que está havendo aquecimento global em decorrência das atividades humanas, o que deve ser tomado enquanto cenário mais provável para quaisquer ações de planejamento e políticas públicas. O relatório do IPCC de 2021 traz indícios sólidos de que as mudanças climáticas causadas pelos seres humanos são irrefutáveis, quiçá irreversíveis, além do que irão piorar nas próximas décadas, mesmo com os esforços atuais para mitigar os estragos já impostos ao planeta. Cientistas contrários perfazem uma minoria – e isto é perfeitamente aceitável na ciência, onde os paradigmas estão sob permanente escrutínio. No entanto, algumas pessoas preferem enfrentar o consenso atual apenas com base em opinião ou convicção político-ideológica, o que é uma desgraça – haja vista a consequência funesta dos movimentos antivacina no caso da pandemia de SARS-COV2.
Portanto, frente aos negacionistas de todas as estirpes, só nos resta dizer que precisamos confiar na ciência. Atenção: isto não significa afirmar que toda e qualquer frente fria mais intensa, qualquer borrasca fora de hora ou seca mais prolongada reflete as mudanças climáticas, pois os sistemas de clima e tempo são muito complexos e há controvérsias sobre os efeitos nas escalas locais. Por isto comecei esta entrevista contestando a assertiva do entrevistador.
IHU – A Geografia também foi acachapada por essa “modernidade racionalista”, acomodando-se na ideia de “adaptabilidade” e perdendo a potência de transformação e ressignificação das relações sociedade e natureza? Por quê?
Caio Maciel – Basicamente, a Geografia, desde os anos 1970, ficou refém das disciplinas devotadas à ecologia e biologia, após ter sido pioneira dos estudos sociedade-natureza. As origens da ideia de adaptação, hoje tão em voga, estão mesmo dentre os geógrafos clássicos. Berdoulay e Soubeyran, na obra já aludida, identificam Jean Bunhes (1925) e Max Sorre (1948) como os mais relevantes nomes da geografia francesa a levar adiante ideias lablacheanas fundamentais ao debate atual da capacidade de acomodação da sociedade às diferentes transformações do meio. Brunhes sublinhou dois pontos que repercutem na releitura contemporânea da contribuição geográfica: primeiro, a adaptação consiste num processo de mão dupla, interativo, no qual homem e meio adaptam-se um ao outro, reciprocamente. Segundo, é preciso ver adaptação como um processo fortemente inacabado. Para ele, a “sabedoria da adaptação geográfica” repousa em reconhecer que a civilização nunca atinge uma vitória face às forças naturais. De forma análoga, Sorre pleiteava a necessidade de uma tolerância ou margem de inadaptação diante das infinitas possibilidades de escolha que as sociedades apresentavam em suas interações com a natureza.
Posturas fortemente antideterministas, naquilo que se convencionou chamar de possibilismo lablacheano: a adaptação seria recíproca, relativamente contingente, dependendo de vicissitudes da organização social. A incerteza é tida como fonte de liberdade, mas também de prudência e respeito, não se confundindo com a ideia de desadaptação ou desequilíbrio. Incerteza, complexidade e meio passam a exigir atitudes de precaução, não muito distantes da ideia de resiliência usada pelo planejamento. Em seguida, Berdoulay e Soubeyran mostram como a adaptação começou a ser relacionada com os limites da transformação humana da Terra. Brunhes e Sorre recolocam a questão em nível planetário, de forma pioneira, denunciando a economia destrutiva e apontando um futuro pessimista para a humanidade com base apenas em benfeitorias técnicas da civilização moderna.
Outro proeminente geógrafo a se interessar pelo devir ecológico da humanidade foi Carl Sauer (1938), que chegou mesmo a organizar, em 1956, o simpósio “O papel do homem na transformação da face da Terra” (Man’s role in changing the face of the Earth). Não por acaso, Sauer foi considerado um dos maiores inspiradores dos movimentos de conservação da natureza nos Estados Unidos. Várias ideias aí debatidas têm ecoado no planejamento territorial: críticas aos paradigmas científicos dominantes, o lugar da incerteza, o imperativo da reflexividade e a necessidade de diálogo entre culturas ocidentais e não-ocidentais, políticas de conservação do patrimônio natural etc. (p. 78-79). De tal sorte que Berdoulay e Soubeyran não hesitam em afirmar que a ideia do chamado “Antropoceno” estava já praticamente formulada naquele evento. Como quer que seja, a ideia de limites ecológicos planetários pôs em questão a modernidade técnica.
No retorno atual da adaptação ao seio do planejamento, tais noções são reavaliadas em favor de questões ligadas não apenas ao sentimento de urgência da ação, como também no plano ético. Na atualidade, relendo tais próceres, a Geografia vem conhecendo uma “revanche”, pois tem se mostrado indispensável para o pensamento planificador em diversas escalas, considerando conceitos como território, lugar e região – todos amalgamados pelas necessidades de adaptação.
IHU – Como a Geografia, enquanto ciência e campo de saber, pode contribuir na concepção de novos caminhos nessa transformação que se faz necessária em decorrência das mudanças climática?
Caio Maciel – As diferentes fontes de retomada da ideia de adaptação, seja ao clima, seja em termos geopolíticos, resultam em muitas ambiguidades em torno de três eixos ou temas:
a) o problema da autonomia relativa dos sistemas sociais e naturais;
b) o papel das ações coletivas e individuais; e, finalmente
c) a ideia de meio. A geografia consagrou-se no debate do primeiro tema, apresentando contribuições importantes também quanto ao segundo e terceiro aspectos.
Em primeiro plano, a geografia nos obriga a levar em conta o meio sobre o qual se exercem as consequências não intencionais de toda ação de planejamento e com o qual é preciso agir. Trata-se de uma contribuição para que o planejamento repense sua “autonomia” em relação ao meio ambiente, ainda mais em tempos de incerteza quanto à estabilidade da Terra.
Por tabela, a própria noção de meio é enriquecida pela perspectiva geográfica, tirando-a dos guetos de ciências físicas e biológicas. Enfim, não se pode esquecer de levar em conta as escalas dos fenômenos e sua integração interescalar, aquilo que o métier de geógrafo apresenta enquanto ponto de partida para suas análises. As mudanças climáticas, portanto, podem ser vislumbradas em seus rebatimentos individuais e societários, com integração dos sistemas antrópicos e naturais, e em diversas escalas de correlação.
IHU – A partir de seus estudos da obra de Vincent Berdoulay e Olivier Soubeyran (L’aménagement face à la menace climatique. Le défi de l’adaptation grenoble: Uga éditions, Université de Grenoble Alpes, 2020), como podemos conceber caminhos para o planejamento de uma outra sociedade, frente às mudanças climáticas?
Caio Maciel – Berdoulay e Soubeyran apontam como geógrafos têm renovado o interesse pela ideia de adaptação às mudanças climáticas naquilo que ela pode trazer de inovação ética ao planejamento: abrindo-lhe novas perspectivas a fim de superar a prisão do que apelidam de “rotinas clássicas” (as convenções repetitivas do planejamento atual). Assim, pensar em termos de adaptação consistiria, segundo os autores, em um convite para considerar de maneira inovadora nossa relação com a natureza, com os outros e até com nós mesmos, mediante a reflexividade dos sujeitos. Vincent Berdoulay, inclusive, tem uma longa apreciação sobre sujeito e ação em sua carreira acadêmica.
A ideia-chave de diálogo clama por uma postura de atenção recíproca: considerar a adaptação como transformadora; desenvolver práticas reflexivas; saber levar em conta consequências não intencionais; desaprender para aprender; aprender a improvisar. Por fim, aumentar a “bússola ética”. No que tange o potencial transformador da adaptação, deve-se planejar um território mediante estratégias que levem em conta ambientes cada vez mais incertos; portanto, as soluções para as mudanças climáticas não são redutíveis aos modelos clássicos de planificação, exigem rupturas, inovações, participação democrática multiescalar.
Já a reflexividade decorre do desafio de pensar a crise ambiental mediante ponderações sobre as consequências não-intencionais da ação humana, o que representa um convite para metodologias e epistemologias do devir, mais do que do prevenir. É justamente a existência de um laço (interação) entre reflexividade e desdobramentos não intencionais que torna possível a efetivação do planejamento pelas consequências. As aprendizagens serão (des)construídas mediante a admissão dos erros, marcando a passagem de uma navegação a priori para uma navegação de improviso. Passando das translações náuticas para as metáforas musicais, Olivier Soubeyran, por sua vez, propõe a importância da improvisação diante das demandas contemporâneas de organização do espaço. Se improvisar consiste, minimamente, na arte da ação em um contexto turbulento, analogias com a planificação podem se beneficiar de mais este diálogo inusitado. Do jazz se sabe que improviso é um modelo de comunicação, resultante de uma ética de ação baseada na escuta, na atenção ao detalhe e ao inesperado, exigindo vigilância, respeito, solidariedade e experiência (p. 200). Tal flexibilidade criativa preencheria o planejamento com a energia positiva do gosto pela vida, mesmo diante da inevitabilidade de navegarmos pelas incertezas das situações críticas.
Os autores sublinham sempre as questões éticas. Se a adaptação às mudanças climáticas se coloca prioritariamente para territórios e populações que são consideradas como “vítimas”, o discurso planificador deve complexificar esses sujeitos, “heterogenizar” o universo dos vitimados e enriquecer as categorias passíveis de abarcar todas as populações tocadas (diferentemente) pelo problema. Acredito que tais ideias perfazem o cerne da contribuição dos autores, que entretanto é muito mais sutil e nuançada – todavia não seria possível tocar em todos os seus aspectos nesta entrevista.
IHU – Que outros autores o senhor tem trabalhado e nos indica para nos inspirar a pensar formas de fazer frente a mudanças climáticas?
Caio Maciel – Não sou especialista no assunto e apenas resenhei o trabalho dos autores a pedido deles. Após a leitura do livro, acredito que devemos voltar aos clássicos para reatar as contribuições históricas da geografia ao tema da “adaptação”, que em outras disciplinas pode ganhar ares de grande novidade, embora tal conceito tem sido debatido por vários geógrafos desde a gênese da própria disciplina. Dos geógrafos brasileiros atuais, indico Rogério Haesbaert por sua importante contribuição no campo do território e desterritorialização, porém tendo apenas relações indiretas com o tema dos efeitos das mudanças climáticas.