Os avanços tímidos da COP26 e as ilusões do desenvolvimento sustentável. Artigo de José Eustáquio Diniz Alves

Foto: Karwai Tang | UK Government | Stenbocki maja | Flickr CC

17 Novembro 2021

 

"Na prática, infelizmente, a preocupação maior dos países tem sido com a economia e não com a ecologia. Porém, sem ECOlogia não há ECOnomia", escreve José Eustáquio Diniz Alves, demógrafo e pesquisador em meio ambiente, em artigo publicado por EcoDebate, 16-11-2021.

 

Eis o artigo.

 

Defender a sustentabilidade ambiental junto ao velho modelo de desenvolvimento consumista e em um quadro de permanente desigualdade social é o mesmo que se deixar levar pelas ilusões da maquiagem verde e pelas falsas promessas do desenvolvimento sustentável

“A Terra está falando. Ela nos diz que não temos mais tempo”
Txai Paiter Suruí (01/11/2021)

 

Líderes governamentais, como John Kerry dos EUA, dizem que o mundo, depois da COP26, está agora mais perto do que nunca da meta de limitar os aumentos de temperatura a 1,5º C e evitar um caos climático. Entretanto, lideranças da sociedade civil consideram que os avanços da COP26 foram tímidos e não serão suficientes para limitar o aquecimento global abaixo de 2º C e que ainda existe a ameaça de colapso ambiental no horizonte. Vejamos.

 

O ser humano é a espécie que melhor se autopromoveu na Terra. Durante milênios, a humanidade foi avançando lentamente até ocupar todos os cantos do Planeta. O progresso do Homo sapiens foi gigantesco. Mas, no conjunto, toda a riqueza humana ocorreu às custas do empobrecimento do meio ambiente e da redução da biodiversidade. Nada ficou intocável e o desenvolvimento da civilização poluiu as terras, as águas e o ar. O lucro foi grande, enquanto o ativo econômico crescia. Mas, no século XXI, a natureza está apresentando a conta dos danos, pois o passivo ambiental extrapolou todos os limites. O equilíbrio homeostático de Gaia foi rompido e alterado. Por conseguinte, o aquecimento global ameaça transformar o paraíso terrestre em um inferno de calor e acidificação dos solos e dos oceanos.

 

Indubitavelmente, a humanidade saiu vitoriosa na luta para controlar a natureza. No início do Holoceno, há 12 mil anos, a população humana do Planeta era de 4 milhões de habitantes e deve chegar a 8 bilhões em 2023, um crescimento de 2 mil vezes. Antes da Revolução Industrial e Energética a esperança de vida ao nascer média da população global estava abaixo de 23 anos e atualmente está acima de 70 anos, um aumento de 3 vezes.

 

No mesmo período, a economia cresceu muitas vezes mais que a população, pois a renda per capita, a despeito das desigualdades, aumentou significativamente, possibilitando que a grande maioria da população mundial tivesse acesso, em maior ou menor grau, a alimentos, moradia, móveis, eletricidade, eletrodomésticos, carros, motos, celular, televisão, Internet, educação, transporte público e particular, lazer, turismo, etc. Evidentemente, uma grande parcela da população mundial tem acesso mínimo a bens e serviços, enquanto uma pequena parcela já se diverte no luxo e em inúteis voos espaciais.

 

Desta forma, o mundo chegou em uma encruzilhada. Seguir em frente, pelo mesmo caminho insustentável, é rumar para o abismo ambiental. Contudo, tomar uma nova direção tem seus custos e a humanidade vai ter que abrir mão de muitos privilégios, pois não dá mais para continuar destruindo os ecossistemas, proporcionar a extinção de milhares de espécies, descartar o lixo como se a Terra fosse uma privada e lançar na atmosfera grande quantidade de gases de efeito estufa. A humanidade precisa fazer uma autocrítica e uma correção de rumo.

 

A questão climática é apenas uma parte do problema (embora seja uma das partes das mais complicadas). A COP26 de Glasgow, em novembro de 2021, teve como objetivo prosseguir na luta para deter o aquecimento global e evitar que a temperatura média do Planeta ultrapasse 1,5º Celsius em relação ao período pré-industrial, conforme estabelecido no Acordo de Paris.

 

Hoje em dia, o negacionismo climático está isolado e a maioria dos países concorda em estabelecer metas para a estabilidade do clima. Todavia, não existe consenso sobre qual caminho a ser trilhado. A primeira grande dificuldade é convencer os membros da Convenção Quadro das Nações Unidas sobre Mudança do Clima (UNFCCC na sigla em inglês) a abandonar o caminho do crescimento econômico ilimitado. A segunda dificuldade é lidar com as desigualdades sociais, econômicas e demográficas para manter unida no mesmo propósito a coletividade e a especificidade das nações. A terceira dificuldade é abrir mão do egoísmo econômico em nome do altruísmo ecológico.

 

A COP26 fez o dever de casa pela metade. Por um lado reforçou a necessidade de cortes nas emissões de gases de efeito estufa (GEE), além de destinar algum recurso para os países em desenvolvimento enfrentarem a crise climática. Mas por outro lado, como dizem diversos críticos, a Conferência foi marcada pela “maquiagem verde”. O mito do “desenvolvimento sustentável” continua intocável, como se fosse possível conciliar o aumento da Pegada Ecológica com a manutenção da Biocapacidade do Planeta. Na verdade, o tripé da sustentabilidade (social, econômico e ambiental) há muito virou um trilema e o desenvolvimento sustentável virou um oximoro. Evidentemente, houve avanços da COP26, mas a impressão que fica é que o que tem sido feito nas COPs é muito pouco e muito tarde (Too little, too late).

 

A COP26 concordou em acabar com o desmatamento, reduzir as emissões de metano e fazer a transição energética para o setor de energia ter emissão líquida zero de carbono até 2050. Porém, mesmo que todas as promessas fossem colocadas em prática ainda haveria um hiato na metade do século. O gráfico abaixo da Agência Internacional de Energia (IEA) mostra as metas estabelecidas em Glasgow ainda estão longe de resolver o problema das emissões de CO2.

 

Gráfico: Agência Internacional de Energia

 

O próprio Secretário-geral da ONU, António Guterres, na abertura da Conferência, em 01/11/2021, disse: “É hora de dizer chega. Chega de nos matar com carbono. Chega de tratar a natureza como uma privada. Estamos cavando nossa própria cova. Mesmo no melhor cenário, a temperatura poderá subir mais de 2º Celsius”.

 

De fato, os próprios líderes que dizem querer abandonar os combustíveis fósseis, na prática, agem de maneira contrária. O presidente dos EUA, Joe Biden, está pressionando os produtores de petróleo (OPEP) para aumentar a produção do óleo para controlar o preço da gasolina e do diesel, enquanto o plano de avanço da infraestrutura vai aumentar a demanda por combustíveis fósseis. O presidente da China, Xi Jinping, autorizou o aumento da produção de carvão para contornar a escassez de energia do país. Portanto o quadro é de mais poluição. A Agência de Energia dos EUA (EIA) projeta um aumento das emissões até meados do século, especialmente nos países não pertencentes à OCDE, como mostrado no gráfico.

 

O Relatório “2021 Production Gap Report”, elaborado por importantes institutos de pesquisa e pelo Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente (PNUMA) e divulgado em 20 de outubro, conclui que, apesar do aumento das ambições climáticas e dos compromissos líquidos de zero carbono, os governos ainda planejam produzir mais do que o dobro da quantidade de combustíveis fósseis em 2030 do que o que seria consistente com a limitação do aquecimento global a 1,5º C.

 

Foto: International Energy Outlook 2021

 

A Índia, por exemplo, prometeu zerar emissões de carbono somente em 2070. O primeiro-ministro Narendra Modi reclamou dos países ricos que foram responsáveis pela maior parte das emissões históricas de carbono e exigiu que os países desenvolvidos disponibilizassem US$ 1 trilhão para o financiamento da mudança da matriz energética e para a recuperação ambiental. O problema é que a Índia já é o terceiro país emissor de CO2 e o segundo emissor, quando considerado as emissões por área (em km2), como mostrado no gráfico abaixo. A Índia já tem as cidades mais poluídas do mundo e milhões de pessoas morrem todos os anos em função da poluição do ar, das águas e do solo, das ondas letais de calor e demais problemas ambientais. Desta forma, a redução das emissões indianas de GEE é bom para o mundo e para a Índia.

 

Fonte: Global Carbon Project

 

Assim, o grande desafio da Índia (como dos demais países “em desenvolvimento”) é reduzir a pobreza, mas sem destruir ainda mais o meio ambiente. Como disse Jake Hess (28/10/2021): “A pobreza não pode ser erradicada em um planeta cujos ecossistemas estão se desintegrando”. Um fato constrangedor é que a Índia possui o terceiro maior gasto militar do mundo, atrás apenas dos EUA e da China. Se o mundo e a Índia reduzissem as despesas de guerra, abriria mais espaço para resolver as questões socais e ecológicas.

 

O Brasil, pressionado pela comunidade internacional, aderiu aos acordos para zerar o desmatamento e reduzir em 30% as emissões de metano até 2030. Mas o final da atual década está longe do horizonte do governo que está mais preocupado com a agenda de 2022 e não necessariamente por conta das questões ambientais. O Brasil tem se tornado um exemplo de país que promete muito para o longo prazo, mas não faz nada no curto prazo.

 

Na verdade, o mundo está a caminho de níveis desastrosos de aquecimento global muito além dos limites do acordo climático de Paris, apesar de uma enxurrada de promessas de redução de carbono dos governos na COP26. Os aumentos de temperatura chegarão a 2,4ºC até o final deste século, com base nas metas de curto prazo que os países estabeleceram, de acordo com o Instituto Climate Action Tracker (CAT), a coalizão de análise do clima mais respeitada do mundo, conforme mostra o gráfico abaixo (The Guardian, 09/11/2011).

 

Gráfico: The Guardian

 

Pressionado pela sociedade civil, o documento final de COP26 insta os países a fortalecerem suas metas de cortes das emissões de gases de efeito estufa para 2030 até o final do próximo ano, em um reconhecimento da enorme lacuna entre as promessas atuais e o marco do acordo de Paris de 2015. Uma aliança entre Costa Rica e Dinamarca têm um novo plano para parar de extrair combustíveis fósseis. A premissa é simples: os países devem criar um plano para acabar com a extração de combustíveis fósseis. Mas deixar os combustíveis fósseis no solo não será fácil devido à enorme demanda mundial. Durante a COP26, os Estados Unidos e a China – os dois países são os principais emissores de gases do efeito estufa do planeta – divulgaram um acordo de compromisso em trabalhar juntos reduzir a liberação de carbono na atmosfera. Mas, como vimos, no plano interno, os EUA estão aumentando o consumo de petróleo e a China aumentando o consumo de carvão.

 

Evidentemente, os delegados que defendem os interesses das indústrias fósseis e das nações que exportam ou dependem dos combustíveis fósseis buscam promover a capitulação da COP (até surgiu o termo COPITULAÇÃO). Os países ricos não querem pagar os custos dos prejuízos de suas emissões de GGE históricas. Os países pobres querem mais dinheiro para promover o tal “desenvolvimento sustentável”. A peça teatral da governança global circula em torno destes temas, o mundo continua girando e o tempo se esgotando. A despeito de todo blá-blá-blá, abandonar os combustíveis fósseis ainda é um sonho distante. A juventude do mundo clama por menos enrolação e mais ação. Decrescimento continua uma palavra proibida.

 

Segundo Greta Thunberg, a COP26 foi “Um festival de maquiagem verde do Norte Global”. A diretora executiva do Greenpeace Internacional, Jennifer Morgan, disse: “Testemunhamos um esforço deliberado e cínico de algumas nações para criar uma carta para trapaças, compensações e brechas. Centenas de lobistas dos combustíveis fósseis estão aqui e suas impressões digitais estão por toda a conferência. Eles querem comprar uma saída da responsabilidade pela crise climática, este lugar está inundado de maquiagem verde e nós estamos aqui para dizer que nosso planeta não está à venda.

 

Mas, decerto, a COP26 deu um passo à frente ao estabelecer o primeiro acordo climático a planejar explicitamente a redução (não a eliminação) do carvão mineral, além de prometer mais dinheiro para os países em desenvolvimento para ajudá-los a se adaptarem aos impactos do clima. Mas, a despeito de todo otimismo, faltam milhares de passos para manter o ritmo das ações contra a urgência da emergência climática.

 

Na prática, infelizmente, a preocupação maior dos países tem sido com a economia e não com a ecologia. Porém, sem ECOlogia não há ECOnomia. Realmente, o mundo já ultrapassou a capacidade de carga do Planeta e a Pegada Ecológica já está mais de 70% superior à Biocapacidade da Terra. Consequentemente, o mundo precisa menos de crescimento e mais de decrescimento demoeconômico. Claro, que ninguém defende uma recessão e a “volta às cavernas”, como costuma deturpar os mais desinformados ou as pessoas mal intencionadas. O decrescimento demoeconômico precisa ser planejado para ocorrer no médio e longo prazo, paralelamente à restauração dos ecossistemas e ao processo de “reselvagerização” (rewilding), com reflorestamento do mundo.

 

Porém, o mito do desenvolvimento e do avanço tecnológico mantem a questão demográfica como um tabu na comunidade internacional. Como disse o cientista James Lovelock (02/11/2021), que nem foi convidado para a COP: “Precisamos resolver o problema da superpopulação e deter com urgência a destruição das florestas tropicais. Acima de tudo, precisamos olhar para o mundo de uma forma holística”. A crise climática e ambiental é uma emergência que precisa ser enfrentada com determinação e sem tergiversação. Sem dúvida, os cenários traçados pelo IPCC e discutido nas COPs hoje em dia são um alerta para a possibilidade de uma “Terra inabitável” e de um cenário catastrófico, em termos climáticos e ecológicos.

 

Mas tudo isto já havia sido indicado há cerca de 50 anos no livro “Limites do Crescimento”, liderado por cientistas do Massachusetts Institute of Technology (MIT) e publicado originalmente em 1972. A principal conclusão do livro (Meadows et. al.) está resumida no seguinte parágrafo: “Se as atuais tendências de crescimento da população mundial, industrialização, poluição, produção de alimentos e diminuição de recursos naturais continuarem imutáveis, os limites de crescimento neste planeta serão alcançados algum dia dentro dos próximos cem anos. O resultado mais provável será um declínio súbito e incontrolável, tanto da população quanto da capacidade industrial” (p. 20).

 

Infelizmente o alerta do livro “Limites do Crescimento” não foi ouvido e a Pegada Ecológica da humanidade ultrapassou a biocapacidade do Planeta a partir do início da década de 1970, sendo que o déficit ambiental se amplia a cada dia. Se o mito do crescimento demoeconômico tivesse sido seriamente questionado naquela época, os problemas ambientais do século XXI seriam muito menos graves. Todos aqueles que negaram os limites do crescimento são, em maior ou menor proporção, corresponsáveis pela crise ambiental atual.

 

Da mesma forma, defender a sustentabilidade ambiental junto ao velho modelo de desenvolvimento consumista e em um quadro de permanente desigualdade social é o mesmo que se deixar levar pelas ilusões da maquiagem verde e pelas falsas promessas do desenvolvimento sustentável.

 

É inútil a tentativa de remendar o tecido econômico que está esgarçado, assim como esconder a sujeira ambiental debaixo do tapete. Sem resolver a crise ecológica, o mundo será regido pela deseconomia. A ansiedade climática poderá ser uma doença onipresente no século XXI.

 

Referências:

ALVES, JED. Cientistas alertam para as consequências da superexploração da Terra, Ecodebate, 18/08/2021. Disponível aqui.

ALVES, JED. Dos limites do crescimento ao decrescimento da Pegada Ecológica, Ecodebate, 28/06/2017. Disponível aqui.

LOVELOCK, James. Beware: Gaia may destroy humans before we destroy the Earth, The Guardian, 02/11/2021. Disponível aqui.

HESS, Jake. Working at the World Bank, I can see how it is failing humanity on the climate crisis, The Guardian, 28/10/2021. Disponível aqui.

UNEP. 2021 Production Gap Report, 20/10/2021. Disponível aqui.

Fiona Harvey. Cop26: world on track for disastrous heating of more than 2.4C, The Guardian, 09/11/2021. Disponível aqui.

MARTINE, G. ALVES, JED. Economia, sociedade e meio ambiente no século 21: tripé ou trilema da sustentabilidade? R. bras. Est. Pop. Rebep, n. 32, v. 3, Rio de Janeiro, 2015 (em português e em inglês). Disponível aqui.

MEADOWS, D. et. al. Limites do Crescimento. Um relatório para o Projeto do Clube de Roma sobre o Dilema da Humanidade, Editora Perspectiva, 2ª ed., São Paulo, 1978. Disponível aqui.

ALVES, JED. Aula 11 AM088: Decrescimento demoeconômico e capacidade de carga do Planeta, IFGW, 11/04/21. Disponível aqui.

 

 

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