25 Mai 2021
No último ano, todos pararam para ouvir Ailton Krenak. A voz do líder indígena, que há décadas alerta para a destruição do planeta em nome do desenvolvimento, nunca fez tanto sentido. “A pandemia mostrou que a ideia de governar o mundo está vencida. No meio da crise, esse pensamento convencido e orgulhoso começou a olhar em volta de si e falar: Será que tem alguma outra coisa pra gente pensar?”, diz Krenak, um dos homenageados pelo prêmio Trip Transformadores 20/21.
“Sair da caixinha, na verdade, é porque a caixinha se desmanchou. Nós estamos todos nus. Talvez aquele espelho que os europeus trouxeram pra trocar com a gente na praia tenha se invertido e agora eles estão vendo a sua própria cara, a cara do engano”.
Uma das figuras mais importantes na defesa do meio ambiente desde os anos 80, Ailton Krenak teve uma atuação determinante para as conquistas dos povos indígenas na Constituição em 1988. Pensador e escritor de livros como O Amanhã Não Está à Venda e Ideias para Adiar o Fim do Mundo, ele esteve entre os autores mais lidos de 2020.
Da região do médio Rio Doce, em Minas Gerais, onde vive com outras 130 famílias no território do povo Krenak, o líder indígena bateu um papo com o cineasta Fernando Meirelles no programa Trip Transformadores, que vai ao ar todo sábado, às 22h, na TV Cultura.
A entrevista é de Fernando Meirelles, publicada pela revista Trip, 22-05-2021.
A pandemia, que já matou um milhão de pessoas no mundo, é uma pequena onda perto do tsunami que está vindo. A visão do que nos espera no futuro, com a crise ambiental, principalmente a crise do clima, é muito pessimista. Por que a gente consegue parar o mundo durante a pandemia e não consegue sensibilizar as pessoas para uma crise, muito maior e mais devastadora, que já está na nossa porta?
Eu ouvi uma vez uma afirmação muito interessante: nenhum povo é capaz de interpretar o tempo que vive. A crise é sempre um fenômeno não entendido pelas pessoas que sofrem suas consequências. Muitas das nossas práticas que já estão se transformando antecipam as mudanças para essa piora que vamos viver. A mais óbvia delas é que a gente teve que parar, e não foi voluntariamente.
A gente ainda não viu que estamos mudando, e às vezes isso cria muita angústia. Mas se sabemos que muita coisa está mudando, e nós também, a gente já está entrando num campo da evolução. A revolução ficou para trás, agora estamos indo para a evolução. Mas essa evolução não supõe que todo mundo vai para essa mudança. Ela pode supor, inclusive, que a maior parte desse "nós", coletivo de humanos que exclui outros seres vivos, pode desaparecer.
Quem sabe uma amostra grátis do Homo sapiens vai compartilhar com outras espécies um mundo para além das mudanças climáticas. A mudança climática é real, vai acontecer e vai desaparecer com um monte da gente. Um milhão não é nada. Vão sumir bilhões de pessoas ao longo dessa crise.
Eu também acho que estamos caminhando nessa direção. Você se sente bem com isso? É o que temos e vamos encarar isso tranquilamente ou não?
Seria mais ou menos como você chegar aos 90 anos e seu neto te perguntar: "Vovô, você está ficando velho?". E você dizer: "Não". Isso é uma bobagem. Nós todos, como humanidade, estamos ficando velhos. Nós perdemos a capacidade de nos atualizar com relação à vida no planeta. Então, nós estamos ficando velhos e vamos ser dispensados numa boa. Qual o problema?
James Lovelock, ambientalista inglês, desenvolveu a hipótese de Gaia. Ele tem uma visão holística do planeta, que a Terra é um grande organismo e que uma coisa afeta a outra. É algo que ele pensou nos anos 70, mas que as culturas tradicionais já sabiam há muito tempo. Nessa visão os humanos seriam como se fosse um vírus, uma bactéria daquelas que engolem tudo muito rápido. E a Covid seria uma espécie de proteção, uma cura que o planeta está mandando pra resolver o problema dessa bactéria que somos nós.
A ideia de Gaia não é mais uma hipótese, ela é uma teoria comprovada e cada vez mais implicada nas experiências científicas contemporâneas. Ninguém mais nega que o organismo vivo da Terra tem uma tolerância à nossa capacidade de explorar. Se a gente explorar demais essa mãe, ela simplesmente para de dar mama pra gente e nos deixa morrer de inanição. Esse vírus, que tira o ar das pessoas, é uma pedagogia amorosa da Mãe Terra dizendo pra gente: se vocês não pararem de fazer besteira, eu mato todo mundo.
Você vê essa transformação acontecendo? Todo mundo tentando criar um "novo normal"?
Não vejo todo mundo. Na verdade, não existe um "todo mundo", é uma ilusão. Assim como você comentou sobre o vírus ser uma reeducação desse mundo pra gente continuar existindo, a gente podia pensar que as mudanças climáticas também são uma clivagem. Um corte que vai tirar tudo o que sobra e deixar o que pode ficar. Se a gente sobrar é porque a gente pôde ficar.
O planeta continua, né? Essa crise do clima é uma ameaça para a nossa espécie, não para o planeta.
Chamam inclusive essa crise de Antropoceno, quer dizer, ela diz respeito exclusivamente ao Homo sapiens. Se a gente conseguisse ter um pensamento de organicidade, que se articula com as abelhas, com as formigas, com a grama que cresce, com as árvores que chacoalham ao vento, que jogam folha fora e trazem brotos novos, entenderíamos que tudo tá o tempo inteiro brotando, crescendo, morrendo, nascendo. O Homo sapiens é o único bicho que quer se eternizar, quer se mumificar, quer essa monocultura de comer o mundo. Então que se dane esse Homo sapiens, entendeu?
A ativista climática e estudante alemã Luisa-Marie Neubauer disse em uma entrevista que a juventude precisa se conectar com a natureza para defender seu futuro. Porque, se você não fizer essa conexão, não vai compreender a dimensão da crise do clima. Queria saber como é sua experiência de contato com a natureza, como são suas conversas com os rios.
Isso é uma devoção. Tem gente que lava a escadaria do Bonfim, que vai à Aparecida à pé, que carrega cruz, e tem outros que conversam com os rios. A voz do rio para mim é um alento. Na América Latina, parentes de várias etnias dão comida para os vulcões, dançam para eles. No Equador, as montanhas são sagradas e os parentes dançam, cantam, dão presentes. Então existe um trânsito entre humanos e não-humanos que é muito sábio e é isso que vai prevalecer quando o pau quebrar. Os outros não vão ter o que falar porque, como disse a menina alemã, eles não se conectaram com a natureza.
Você é muito crítico com as escolhas do capitalismo, com a civilização em geral. Mas, se você olhar culturas como os astecas, os maias, quando elas começam a ficar um pouco mais sofisticadas elas produzem arte, ciência, constroem cidades muito bonitas, mas nesses lugares também existia escravidão, violência, cobrava-se tributo. Talvez o problema não seja a civilização, mas sim o homem. Faz algum sentido?
Sem dúvida. Isso são coisas que dizem respeito exclusivamente ao Homo sapiens. Não tem importância se a gente chama isso de civilização ou não. A questão é que em todas as épocas nós fomos capazes de produzir uma distopia, onde o sonho e a utopia são jogadas de lado e a gente vai pra uma espécie de corpo a corpo.
Quando os maias abandonaram as suas pirâmides, as suas cidades, e deram no pé, eles foram para a floresta, viver uma vida mais simples. Quem sabe a gente vai ficar pendulando entre um ápice de experimento civilizatório e dar no pé dessa experiência e buscar outra vida. Agora nós estamos sendo chamados para voltar para a natureza.
O sonho é uma coisa que faz parte da sua vida também, não é?
Na grande maioria dos povos nativos das Américas, o sonho é uma instituição que a gente coabita. A gente habita esse mundo cotidiano e habita também um outro mundo, que é onde o sonho ensina a gente o tempo inteiro. O sonho não é um evento excepcional, é uma experiência que ajuda a formar a pessoa.
Você fala que a floresta conversa. E nos últimos anos a ciência está chegando a essa conclusão, que existem as micorrizas, as árvores de fato conversam entre si. Quando a cultura tradicional falava isso era uma crença, mas agora virou ciência. Parece que está caindo uma ficha do lado de cá que temos que escutar o lado de lá.
Vamos olhar com boa vontade essa transição onde um campo de produção de ideias, imagens, conhecimentos, estão mesmo com uma disposição amorosa com relação ao que sempre foi dito e sempre ignorado.
Talvez as nossas soluções não tenham funcionado, então é um pouco de desespero. A cultura ocidental está encalacrada, num beco sem saída, e agora estamos começando a olhar as soluções fora da caixinha. E as culturas tradicionais trazem essas soluções.
O pensamento moderno entrou numa espécie de crise epistemológica, uma crise dentro de si mesmo. O final do século 20 mostrou pra gente que os filósofos velhos morreram e os novos não tinham mais nada a dizer sobre esse tempo. É como se a gente tivesse constatado que não levou botes pra todo mundo quando o transatlântico começou a afundar.
Nós chegamos a uma situação em que não tem máscara pra todo mundo, não tem vacina pra todo mundo. A situação da pandemia apavorando os governos globalmente, mostrando que a ideia de governar o mundo está vencida. Talvez por isso, no meio dessa crise, esse pensamento convencido e orgulhoso começou a olhar em volta de si e falar: "Será que tem alguma outra coisa pra gente pensar?".
Tomara que seja isso. Sair da caixinha, na verdade, é porque a caixinha se desmanchou, não tem mais caixinha. Nós estamos todos nus. Talvez aquele espelho que os europeus trouxeram pra trocar com a gente na praia tenha se invertido e agora eles estão vendo a cara deles mesmos, a cara do engano. E que a gente precisa abrir para outras perspectivas.
E como vamos sair dessa, se sairmos?
Quem dera que eu soubesse como a gente pode sair de uma dessas. Porque eu acho que não tem saída. A Terra, Gaia, Pachamama, esse organismo vivo é inteligente e nós vamos ter que negociar com ela a nossa possível saída. Uma pergunta que paira sobre as nossas cabeças é: como as gerações vão dar conta de um mundo em bagaços? Talvez seja com a capacidade de afeto, de abraçar todos os outros seres que não são parecidos com você.
Nós fomos durante muito tempo estimulados a configurar uma ideia de ser humano. E nós chegamos ao absurdo de configurar esse ser humano como sendo do sexo masculino, branco, rico, dominante, e isso excluiu uma fantástica multidão que foi transformada em sub-humana. Transformar o mundo é nos mudar primeiro. Foi Mahatma Gandhi que disse. Às vezes a gente fica querendo que alguém dê uma receita pra gente mudar, mas a mudança está dentro de cada um de nós. O dispositivo para disparar a mudança é o seu coração.
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Ailton Krenak: Por que não conseguimos olhar para o futuro? - Instituto Humanitas Unisinos - IHU