Por: Vitor Necchi | 11 Fevereiro 2017
Uma velha questão debatida na história do Cristianismo era se Jesus sorria. “Mas é óbvio que sorria! Se andava, deitava, chorava, por que não riria?”, provoca a doutora em Letras Salma Ferraz. Ela afirma que esse debate se relaciona ao fato de que “a iconografia que permaneceu da vida de Jesus de Nazaré foi baseada em sua crucificação, e não em sua gloriosa ressurreição”. As primeiras imagens de Jesus sorrindo foram os protestantes dos Estados Unidos que publicaram há cerca de 50 anos. “Jesus gostava de festas, casamento e vinho. Se era humano, e era, sorriu!”, afirma em entrevista concedida por e-mail à IHU On-Line.
Salma propõe o desenvolvimento de uma Teologia do Riso, que pressupõe “exaltar mais a ressurreição e a alegria juntamente com a cruz e a morte de Jesus, uma teologia do riso, da felicidade, inclusiva, onde caibam não apenas pobres, mas pessoas de todas as classes sociais, de todo o amplo leque de gêneros e sem gêneros, casados ou divorciados, celibatários ou não, de todas as raças e de todas as religiões, na qual ninguém herde pecado original e nenhum outro pecado que não lhe pertença, na qual não existam Diabos, daimon ou lucíferes”.
Para a pesquisadora, “o sofrimento faz parte do DNA do catolicismo dogmático”. Mas ela garante: “O humor salva!”. E cita o papa Francisco, que disse em uma entrevista que “a atitude humana mais próxima à graça de Deus é o humor”.
Salma Ferraz | Foto: arquivo pessoal
Salma Ferraz é graduada em Letras pela Faculdades Integradas Hebraico Brasileira Renascença, mestra e doutora em Letras pela Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho. Fez estágio pós-doutoral na Universidade Federal de Minas Gerais. É professora da Universidade Federal de Santa Catarina.
Confira a entrevista.
IHU On-Line – Jesus sorria? Conforme os registros da tradição, como se manifestava a alegria dele?
Salma Ferraz – A questão se Jesus sorriu ou não foi objeto de diversos debates ao longo da história do Cristianismo. Isso está relacionado ao fato de que a iconografia que permaneceu da vida de Jesus de Nazaré foi baseada em sua crucificação, e não em sua gloriosa ressurreição (observe o terrível mau gosto de Mel Gibson em seu famoso filme hemorrágico [A paixão de Cristo, 2004]: lavou a tela de sangue e dedicou um segundo para a ressurreição de Jesus). Basta vermos os quadros de Jesus do período Barroco – só falta sair sangue de verdade das estátuas e das pinturas. Como um Jesus se contorcendo de dor poderia rir? São João Crisóstomo (347, Antioquia – 407, Comana Pôntica), um dos mais ferrenhos adversários do riso, afirmava que Jesus chorou, mas não riu. Mas é óbvio que sorria! Se andava, deitava, chorava, por que não riria?
Observe que foram os protestantes dos Estados Unidos que primeiro publicaram a imagem de Jesus como Bom Pastor sorrindo, e isso não faz 50 anos. Jesus gostava de festas, casamento e vinho. Se era humano, e era, sorriu!
IHU On-Line – A senhora afirma que a Bíblia exige um leitor que saiba ler os silêncios, os segundos planos do texto, e que esse leitor achará o riso. Por que, nas escritas sagradas, o riso não é explícito?
Salma Ferraz – Na realidade, a leitura da Bíblia não é para qualquer um. É uma biblioteca que exige o tal leitor ruminante, termo usado por Machado de Assis, ou leitor modelo, termo cunhado por Umberto Eco. O problema é que muitos cristãos acham que o conhecimento da Bíblia entra via axila e que carregá-la debaixo do braço é atestado de conhecimento. José Saramago já afirmava, em seu ateísmo, o perigo de se ler a Bíblia como um fundamentalista, levando ao pé da letra tudo o que nela está. A leitura dela exige conhecimento, datação, contexto, identificando o que deve ser deixado de lado, o que deve ser mantido.
Ao contrário do que é afirmado nesta pergunta, o riso está mais do que explicito na Bíblia. Acontece que as pessoas fazem uma leitura direcionada e dogmática desta biblioteca. Cito dois exemplos mais do que explícitos de riso na Bíblia:
1) Sara ouvindo a conversa entre o Anjo e Abraão (Gênesis 18:11-15), o que por si só já é muito feio para uma matriarca: “Abraão e Sara eram já velhos, avançados em idade; e a Sara já lhe havia cessado o costume das mulheres. Riu-se, pois, Sara no seu íntimo, dizendo consigo mesma: Depois de velha, e velho também o meu senhor, terei ainda prazer? Disse o SENHOR a Abraão: Por que se riu Sara, dizendo: Será verdade que darei ainda à luz, sendo velha? Acaso, para o SENHOR há coisa demasiadamente difícil? Daqui a um ano, neste mesmo tempo, voltarei a ti, e Sara terá um filho. Então, Sara, receosa, o negou, dizendo: Não me ri. Ele, porém, disse: Não é assim, é certo que riste”. Aqui a matriarca ri, aludindo ao fato de, naquela idade, ter prazer sexual. Há uma discussão de Sara com YHVH [nome do Deus nacional dos israelitas, usado na Bíblia Hebraica], que se irrita com o riso duvidoso dela. Primeiro Ele se dirige a Abrão e depois a Sara. Parece diálogo de comadres: riu, não riu. E a criança se chamará Isaac (aquele que ri).
2) O outro episódio é o relato do roubo da Arca. Os homens de Israel retiram a Arca da Aliança da Tenda da Congregação e a levam como relíquia, ou espécie de amuleto da sorte, para o campo da batalha contra os filisteus. Os filisteus roubam a Arca e são assolados por terríveis hemorroidas. O episódio cômico está relatado em 1 Samuel 5 e 6. A Pentápolis Filisteia inteira é atingida por esta praga: Asdode, Gate, Ecrom, Ascalom e Gaza. Em 1 Samuel 5:12, temos: “E os homens que não morriam eram tão atacados com hemorroidas que o clamor da cidade subia até o céu”. Para expiarem a culpa, os filisteus confeccionam réplicas/imagens das hemorroidas, fazendo o molde em ouro. Observemos 1 Samuel 6:5: “Fazei, pois, umas imagens das vossas hemorroidas e dos vossos ratos, que andam destruindo a terra, e dai glória ao Deus de Israel; porventura aliviará a sua mão de cima de vós, e de cima do vosso Deus, e de cima da vossa terra”.
Existe coisa mais hilária que os poderosos príncipes filisteus tirando o molde de suas próprias hemorroidas? E depois, o objeto sagrado (a Arca) que continha no seu interior um pedaço de maná, as tábuas da Lei e o cajado de Aarão, sendo enfeitada por hemorroidas de ouro e ratos? Um pouco antes, quando o sacerdote Eli recebe a notícia, cai da cadeira e morre. Eu diria que há um intervalo recheado de falcatruas, erros, enganos, logros, com episódios risíveis que vão do nascimento de Isaac (aquele que ri), até a morte do profeta Eli. Sua nora, ao receber a notícia da derrota de Israel, entra em dores de parto, tem um filho e o chama de Icabô, acabou-se a glória de Israel.
IHU On-Line – Na Bíblia, universo tão sisudo e hirto, que personagens são bem-humorados? E que destaque eles têm?
Salma Ferraz – Como podemos ver pelos exemplos acima, o universo bíblico não é nem sisudo, nem hirto. Eu poderia citar dezenas de personagens e episódios hilários. Mas vou citar quatro, um envolvendo Jesus. Não vou falar de Jacó, o anti-herói bíblico, porque apenas sobre ele daria uma tese: covarde, trapaceiro, ladrão (mas é ele que entra na galeria da fé, e não Esaú).
1) O rei Acabe tem um grande senso de humor ao chamar o profeta Elias de o Perturbador de Israel.
2) Mas Elias, o grande profeta, tem um senso de humor muito maior do que o de Acabe. No episódio em que desafia e enfrenta os 450 profetas de Baal, ele dança, entra em transe e provoca: Por volta do meio-dia, Elias começou a zombar deles e a dizer: ‘Gritem o mais que puderem! Afinal, ele é um deus!. Talvez ele esteja entretido em seus pensamentos ou tenha ido fazer necessidades”. No final, Elias manda matar todos os profetas de Baal. O troféu de profeta mais mal humorado do Primeiro Testamento vai para Eliseu. O episódio em que ele é vítima de bullyng pelos rapazinhos está relatado em 2 Reis 2:23-25: “Então subiu dali a Betel; e subindo ele pelo caminho, uns rapazinhos saíram da cidade, e zombavam dele, e diziam-lhe: Sobe, calvo, sobe, calvo! E virando-se ele para trás, os viu, e os amaldiçoou no nome do Senhor; então duas ursas saíram do bosque e despedaçaram quarenta e dois daqueles meninos”. Não teria sido mais fácil ter pedido ao Senhor que lhe dessem cabelos como os de Sansão? Este episódio foi base para a criação da música CRISTÃ cantada em vários aniversários de crianças. A música se chama A Careca do Eliseu, da compositora Sandrinha:
Porque eles riram, rá rá rá
Do careca, rá rá rá
Criança educada assim não faz
Porque eles riram, rá rá rá
Do careca, rá rá rá
Riram uma vez pra nunca mais
Eram 42 meninos de rua
Que zombaram da careca de Eliseu
Saíram duas ursas lá do mato
Com a boca grande fez: UAU!!
E os comeu!
3) O humor de Jesus era um humor mais "britânico", contido, com jogo de palavras. Podemos observar isso na maneira em que provoca a mulher sírio-fenícia, num dos encontros mais intrigantes que teve em sua missão. Em São Mateus 15:25-28, temos este relato: “A mulher veio, adorou-o de joelhos e disse: ‘Senhor, ajuda-me!’. Ele respondeu: ‘Não é certo tirar o pão dos filhos e lançá-lo aos cachorrinhos’. Disse ela, porém: ‘Sim, Senhor, mas até os cachorrinhos comem das migalhas que caem da mesa dos seus donos’. Jesus respondeu: ‘Mulher, grande é a sua fé! Seja conforme você deseja’. E naquele mesmo, instante a sua filha foi curada”.
Jesus é duro, rápido nas palavras, domina diálogo socrático, testa a fé da mulher com rudeza. De certa forma, indiretamente a chama de cadelinha, o que é muito grave para um estrangeiro. Jesus era inteligente, sabia muito bem que sua ascendência incluía Rute e Raabe, ambas estrangeiras. Por que então afirma que não pode atender a estrangeiros e que foi enviado somente à casa de Israel? Pura e simplesmente porque queria testar a fé da mulher e porque era um especialista neste tipo de diálogo (o que deixou Pilatos impressionado). Mas a mulher sírio-fenícia, em sua humildade aparente, reponde a Jesus à altura do diálogo proposto. Sai vencedora, e Jesus se rende. Aliás, ele queria que ela saísse vencedora.
IHU On-Line – A senhora propõe o desenvolvimento de uma Teologia do Riso. Do que se trata? Nestes termos, que espaço haveria para tal proposição?
Salma Ferraz – Exaltar mais a ressurreição e a alegria juntamente com a cruz e a morte de Jesus, uma teologia do Riso, da Felicidade, inclusiva, onde caibam não apenas pobres, mas pessoas de todas as classes sociais, de todo o amplo leque de gêneros e sem gêneros, casados ou divorciados, celibatários ou não, de todas as raças e de todas as religiões, na qual ninguém herde pecado original e nenhum outro pecado que não lhe pertença, na qual não existam Diabos, daimon ou lucíferes. E que cada um seja responsável pelos seus atos e não um mísero títere nas mãos de deuses e demônios disputando a pobre alma humana que não deseja mais ser tutorada. Que outras bibliotecas sejam respeitadas tal como a Bíblia o é, em que as mulheres, se o desejarem, sejam ordenadas, e que tenham vez e voz, na qual não precisamos de tantos intermediários, anjos, santos e igrejas para termos acesso direto ao sacro, na qual até os sem deus sejam respeitados, uma teologia que abomine o matar em nome do seu deus e que respeite outros deuses e outros paraísos. Finalmente nas quais os homens possam apenas ser tão veredas próprias.
Cabe lembrar aqui um dos meus teólogos preferidos, Dietrich Bonhoeffer [1], um pioneiro na luta pelo ecumenismo. Em suas Prédicas e alocuções, afirma que “a cruz não é propriedade privada de ninguém, mas pertence a toda a humanidade e tem a ver com toda a humanidade” (2007, p. 18).
Se a cruz não pode ser privatizada por ninguém na terra e por nenhuma religião – não se pode fazer usucapião da cruz, nem deter os seus direitos autorais –, o mesmo pode ser dito sobre o rosto de Deus e de Jesus: podem estar sorrindo! Alegremo-nos!
Precisamos aprender a ver pelas frestas dos dedos de Deus, o seu rosto escondido na fenda da rocha! Se ele estivesse sorrindo, certamente não morreria jamais e nós seríamos muito mais felizes. Humanos e miseráveis que somos, apenas pó, incrustados na fenda da rocha do tempo, mergulhados no mistério da existência humana, não queremos mais ver Deus pelas costas!
O espaço para proposição da Teologia do Riso é a Teopoética.
IHU On-Line – Quando se pensa no judaísmo e no cristianismo, violência e culpa são elementos que se sobressaem nas narrativas. O riso e o humor são dissonantes na tradição dessas religiões?
Salma Ferraz – A resposta é muito complexa e demandaria uma análise muito grande. Eu indico o livro História do riso e do escárnio, de George Minóis. No geral, o riso e o humor estão mais presentes no Judaísmo do que no Cristianismo. Mas veja que, nos últimos 30 anos, dezenas de programas de humor ao redor do mundo, na televisão e na internet, tem no Cristianismo uma fonte inesgotável de paródia e riso. Cito alguns: Monty Python, George Carlin, South Park, Os Simpsons, Porta dos Fundos, Pastor Adélio, Um sábado qualquer.
E sem falar na Unção do Riso, em que o riso é visto como manifestação do Espírito Santo, mas isto daria outra entrevista.
IHU On-Line – No romance O nome da rosa, de Umberto Eco, e no filme homônimo de Jean-Jacques Annaud baseado na obra que se passa na Idade Média, o riso motiva um embate entre os monges beneditino Jorge de Burgos e o franciscano Guilherme de Baskerville. Burgos considerava o riso um ato demoníaco que deforma o rosto. Baskerville, baseado em Aristóteles – cujo segundo livro da Poética, considerado perdido, tratava do riso e suas virtudes –, apresentava o riso como algo próprio do homem, típico da racionalidade humana. Para além dessa obra ficcional, o debate acerca do riso foi importante na tradição cristã?
Salma Ferraz – Sim, foi importante para aquele momento histórico. Mas, olhando com os olhos de hoje, eu diria que foram debates de quem não tem o que fazer de mais importante na vida, assim como hoje se debate e se questiona se Jesus foi casado ou não. São fatos que não são essenciais para o cristianismo.
IHU On-Line – Em datas como a Sexta-Feira Santa, é comum que cristãos tradicionais cumpram alguns protocolos de recato: não ouvir música alegre, não falar alto, não sorrir, por exemplo. Que festas ou rituais são alegres?
Salma Ferraz – O Domingo de Ramos, que celebra a entrada triunfal de Jesus em Jerusalém. Analisemos este episódio. Jesus humilde? Você decide. Aqui ele faz quase que uma paródia das entradas triunfais dos generais romanos em Roma, o famoso Triunfo Romano.
Sobre a malhação do Judas, fico pensando: por que Judas é malhado e Pedro, que negou Jesus, foi o Pai da Igreja? Sim, sei que a resposta é que Pedro se arrependeu... mas há muitos mistérios envolvendo Judas. Basta ler o conto de Jorge Luis Borges As três versões de Judas. Há outro conto magnifico do monge Julio de Queiroz, que se chama Encontro de culpas, no qual Pedro e Judas discutem suas culpas. Pedro afirma que será muito mais infeliz que Judas, porque os galos sempre cantarão em sua cabeça.
IHU On-Line – Por que cerimônias católicas mais alegres costumam gerar críticas?
Salma Ferraz – O sofrimento faz parte do DNA do catolicismo dogmático. Fiz uma disciplina no seminário sobre ascese cristã e descobri que ainda existe a ordem das virgens... Consagração da vida e virgindade ao Senhor... O Senhor não precisa disto. A ascese está ligada ao sofrimento, meditação, silêncio, o castelo interior. A alegria é o contrário de tudo isso! Bem-aventurados os alegres, porque deles é o reino na Terra e no Céu.
O humor salva!
O papa Francisco deu uma entrevista sobre o humor no ano passado, na qual afirmava: “A atitude humana mais próxima à graça de Deus é o humor”. Quem ri é seguro de si, tem autoconfiança, não atribui seus fracassos nem a Deus nem ao Diabo. Quem ri assusta porque toma sua vida e seu destino nas suas mãos. Quem ri não tem medo.
IHU On-Line – Deseja acrescentar algo?
Salma Ferraz – Já que você citou Umberto Eco, gostaria de terminar a entrevista com uma frase de O Nome da Rosa: “Talvez a missão daqueles que amam a Humanidade seja fazer com que as pessoas se riam da verdade, porque a única verdade consiste em aprender a libertar-nos da paixão insana pela verdade”.
[1] Dietrich Bonhoeffer (1906–1945) foi um pastor luterano, professor universitário com doutorado em Teologia, pioneiro do movimento ecumênico, escritor prolífico, poeta e figura central na luta contra o regime nazista. Mais sobre sua bibliografia aqui.
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O humor salva. Entrevista especial com Salma Ferraz - Instituto Humanitas Unisinos - IHU