06 Abril 2015
O riso faz parte da emotividade divina. Por isso, é possível tentar – através da Bíblia inteira – uma teologia do riso e até do cômico.
A opinião é do cardeal italiano Gianfranco Ravasi, presidente do Pontifício Conselho para a Cultura, em artigo publicado no jornal Il Sole 24 Ore, 05-04-2014. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Eis o texto.
No dia 2 de maio do ano passado, fui convidado pela Universidade de Perugia para proferir o discurso de abertura do congresso da associação dos teólogos europeus que dialogam com os cientistas (a Essat,The European Society for the Study of Science).
A associação era então presidida por uma renomada teóloga sueca, Antje Jackelén, que pertencia à Igreja Luterana, da qual tinha sido bispa primeiro em Lund, onde lecionava, e recentemente havia sido eleita arcebispa de Uppsala e, portanto, primaz da Suécia.
A minha palestra era dedicada às "emoções", como são representadas na Bíblia, onde são concebidas como uma verdadeira gnoseologia, talvez mais incisiva do que a racional, mesmo que não se separe desta. Um conhecimento dotado de órgãos específicos como o coração, as entranhas, os rins, o nariz e o fígado, e confiado a uma gramática epistemológica bastante sofisticado. Uma editora italiana, a San Paolo, decidiu publicá-la depois em um pequeno livro, e o título escolhido foi bastante surpreendente, mas sugestivo: Ride Colui che sta nei cieli [Ri Aquele que está nos céus].
Sim, porque o riso faz parte da emotividade divina (como o desdém, a inveja, a angústia, a ternura e assim por diante), a tal ponto que Deus está pronto para opor ao riso cético de uma mulher, Sara, esposa do patriarca Abraão, uma risada sua viva e ecoante em um menino, o filho inesperado Isaac, que, em hebraico, significa precisamente "O Senhor riu" (leia-se Gênesis 18, 21).
Agora, é publicado outro livreto com um título semelhante ao meu citado acima, E Dio sorrise [E Deus sorriu], e o subtítulo acrescenta: "Na Bíblia e além". Nessas páginas, de fato, há também aprofundamentos sobre a cultura grega, sobre o humor judaico, sobre a ironia puritana de Mark Twain e até mesmo sobre a pós-moderna dos Simpsons, mas sempre em conexão com as Sagradas Escrituras sobretudo judaicas, isto é, antigo-testamentárias.
Escrituras que estão no centro do primeiro artigo, na verdade, bastante simplificado, que se refere, dentre outras coisas, ao delicioso escrito bíblico que tem como protagonista um profeta de nome Jonas, em hebraico "pomba", mas semelhante pela sua índole a um falcão fundamentalista.
A história desse profeta relutante ao chamado divino, hostil a toda abertura ecumênica, é tingida de ironia, como se poderá descobrir ao ler o texto muito agradável, provavelmente fonte de inspiração também para o Pinóquio de Collodi, na barriga do tubarão.
O que é certo é que, no Antigo Testamento, muitas vezes transborda sobre a face da terra a risada divina, expressada com um antropomorfismo bastante ousado: "Ri Aquele que está nos céus, o Senhor se diverte" à custa dos inimigos do seu Messias, diz o Salmista (2, 4).
À boca famélica do malvado que "range os dentes", o próprio Salmista opõe a boca divina que "ri, pois vê que vem chegando o dia" do julgamento dos ímpios (37, 13).
Quando, contra os fiéis judeus, está avançando a armada dos gójim, os estrangeiros opressores, é uma risada colossal de Deus que os detém: "Tu, Senhor, tu ris à custa deles e te divertes com todas as nações!" (59, 9). "É um riso que desarma no sentido mais verdadeiro, que desprovê de força todo aparente predomínio poderosíssimo", comentava o teólogo Gerhard Ebeling.
Jó, porém, no seu crescente acusatório contra Deus, indiferente à sua tragédia, beira a blasfêmia quando grita: "Se uma catástrofe semeia morte repentina, Ele zomba da desgraça dos inocentes" (9, 23).
Poderíamos continuar buscando nas dobras de muitas páginas bíblicas essa presença do riso divino que, às vezes, se transfigura em sorriso: no artigo acima citado (que é do exegeta Daniele Garrone) há uma curiosa pesquisa do humor, até mesmo em um texto dramático e hierático como o relato do chamado "pecado original" em Gênesis cc. 2-3.
Também é vasto o registro do rir humano, incrédulo, estúpido, cruel, mas também santo, justo, sereno e festivo. Há, porém, uma objeção que parte de um dado desconcertante, assim sintetizado por um autor cristão desconhecido, rubricado, no passado, sob um São Agostinho apócrifo: Dominum nunquam risisse, sed flevisse legimus, isto é, lemos nos Evangelhos que o Senhor Jesus chorou, mas nunca que riu.
No Novo Testamento, o verbo gheláo, "rir", é usado apenas para as choradeiras que zombam de Cristo, que considera como "dormente" a filha morta de Jairo, chefe da sinagoga de Cafarnaum (Mateus 9, 24).
Jesus, nas "Bem-aventuranças" presentes em Lucas (6, 21.25) declara: "Bem-aventurados vocês que agora choram", mas também ameaça: "Ai de vocês, que agora riem, porque irão chorar".
E São Tiago, na sua Carta (4, 9) assume tons de pregador: "Reconheçam a própria miséria, ó pecadores, cubram-se de luto e chorem! Que o riso de vocês se transforme em luto, e a alegria de vocês, em tristeza".
No entanto não se pode ignorar que todo o anúncio de Jesus é "evangelho", isto é, notícia boa e alegre de salvação e libertação, que o seu nascimento está envolto na festividade celeste, que ele reza "exultando no Espírito Santo" (Lucas 10, 21), que a tragédia da cruz desemboca na luz da felicidade pascal.
Essa alegria da ressurreição, dentre outras coisas, deu origem ao curioso fenômeno medieval do risus paschalis, estudado por Catarina Jacobelli em um ensaio de 1990 (Ed. Queriniana): nas celebrações pascais, introduziam-se elementos de alegria tão festiva e excessiva que beirava a vulgaridade!
Por isso, é possível tentar – através da Bíblia inteira – uma teologia do riso e até do cômico, como tentaram fazer, obviamente com recortes diferentes, tanto Kierkegaard quanto Chesterton, enquanto ao tema um teólogo alemão, Werner Thiede, dedicou um ensaio inteiro, L'ilarità promessa [A hilaridade prometida] (Ed. Paoline, 1989).
A simbologia lúdica foi frequentemente assumida na tradição cristã como analogia teológica; prova disso, por exemplo, é o Homo ludens de Hugo Rahner (Ed. Paideia, 1969) e muitas páginas do norte-americano Harvey Cox.
O monge Notker de Saint-Gall (século IX) retratava a Igreja como que imersa em uma espécie de jogo eterno e paradisíaco na vinha de Deus: Ecce sub vite amoena, Christe, ludet in pace omnis Ecclesia tute in horto.
E Lutero, embora sisudo, descrevia assim a escatologia: "O homem brincará com céu, terra e sol e com todas as criaturas. E as criaturas provarão um prazer, um amor, uma alegria lírica e rirão convosco, Senhor".
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O riso vos salvará. Artigo de Gianfranco Ravasi - Instituto Humanitas Unisinos - IHU