24 Novembro 2014
Ocorre na próxima semana, em Buenos Aires e Córdoba, o Átrio dos Gentios dedicado ao grande autor argentino Jorge Luis Borges. Antecipamos aqui a análise teológica do cardeal italiano Gianfranco Ravasi, presidente do Pontifício Conselho para a Cultura, sobre a obra do escritor, a partir da questão: ainda podemos definir Borges como agnóstico?
O artigo foi publicado no jornal Avvenire, 21-11-2014. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Eis o texto.
Para Jorge Luis Borges, as fronteiras são cada vez mais móveis e finas: nunca há uma cortina de ferro entre verdade e ficção, entre vigília e sonho, entre realidade e imaginação, entre racionalidade e sentimento, entre essencialidade e ramificação, entre concreto e abstrato entre teologia e literatura fantástica, entre icasticidade anglo-saxônica e ênfase barroca...
As duas parábolas gêmeas que fecham o Sermão da Montanha de Jesus (Mateus 7, 24-27), onde estão em cena os dois construtores antitéticos sobre a rocha e sobre a areia, são assim invertidas, mas não desmentidas por Borges no seu programa existencial e literário global: "Nada se constrói sobre pedra, tudo se constrói sobre areia, mas devemos construir como se a areia fosse pedra". E, no fim, floresce o paradoxo supremo: "A vida é pobre demais para não ser também imortal." [...]
Nas suas leituras, um primado indiscutível foi o designado à Bíblia como ele tinha confessado a María Esther Vázquez: "Devo lembrar a minha avó que conhecia a Bíblia de cor, de modo que eu posso ter entrado na literatura através do caminho do Espírito Santo".
A avó paterna, Fanny Haslam Arnett, de fato, era inglesa e anglicana observante e havia sido ela a iniciar o pequeno Jorge Luis nas Escrituras e na língua inglesa elevada. Em uma conferência realizada em Harvard em 1969, dedicado à Arte de contar histórias, Borges, exaltando a épica como a forma mais antiga de poesia, remetia a um tríptico as obras capitais para a humanidade: "A Ilíada, a Odisseia e um terceiro 'poema' que se destaca notavelmente sobre os outros: os quatro Evangelhos... As três histórias – a de Troia, de Ulisses e de Jesus – bastaram para a humanidade... Mas, no caso dos Evangelhos, há uma diferença: acredito que a história de Cristo não pode ser narrada melhor."
Os Evangelhos, portanto, revelam-se como uma espécie de cânone supremo que não é passível a outra hermenêutica senão a da "reescritura" literal ou, no máximo, do recurso ao desvio do apócrifo ou à alteração a caleidoscópio. Neste último sentido, é famosa a metamorfose operada na poesia Cristo na cruz, onde Jesus se torna o "terceiro crucificado" e não mais o central: "Cristo na cruz. Os pés tocam a terra. / Os três madeiros são de igual altura. / Cristo não está no meio. É o terceiro...".
Além disso, para Borges, a linguagem poética é análoga à sagrada; é fruto de uma ''inspiração" transcendente, um pouco como a Bíblia já havia intuído, ao usar a mesma raiz verbal que define o profeta (nb') para designar a arte musical dos cantores do templo (1Crônicas 25, 1).
Borges declarava na sua Profissão de fé literária: "Do meu credo literário, posso asseverar o que val para o religioso: é meu porque creio nele, não por ser inventado por mim".
Neste ponto, antes de exemplificar o seu contato profundo com a Bíblia, objeto, ademais, de uma ampla bibliografia, é legítimo interrogarmo-nos sobre a "fé" de Borges, para além do costumeiro rótulo de "agnóstico" atribuído a ele pela vulgata crítica. Esta última, porém, acha-se forçada logo a uma série de esclarecimentos, até porque – como se dizia acima – o ecletismo, a curiositas, a fluidez ideal do escritor obrigam os seus intérpretes a contínuas retificações.
É significativa a definição que lhe foi aplicada por um importante e simpático escritor como Leonardo Sciascia: "É o maior teólogo do nosso tempo: um teólogo ateu". Esse oxímoro havia sido desenvolvido por outro admirador e colega seu, John Updike, desta forma: "Se o cristianismo não está morto em Borges, porém, nele está dormente e sonha caprichosamente. Borges é um pré-cristão que preenche a recordação do cristianismo de premonições e de horror".
O que é certo é que uma preocupação metafísica pelo transcendente como um calafrio por toda a obra borgeana e é algo mais do que aquela "consolação da filosofia" à la Boécio que Luis Harss lhe atribuía. De fato, aqui se confirma aquela oscilação entre polos extremos que já ressaltamos.
Ao contrário do Abbé Cénabre, do Imposture, de Georges Bernanos, que, a partir da ausência, mergulhava no nada e no vazio de negação plenamente ateia, Borges oscila constantemente entre ausência e presença, entre sonho e verdade. De fato, ele escrevia: "Nas fendas, está Deus, que espreita... Meu Deus, meu sonhador, continua sonhando-me". [...]
Em uma das Siete conversaciones con Borges, Fernando Sorrentino (1996) citava esta declaração do escritor: "De todos os livros da Bíblia, os que me impressionaram são o livro de Jó, o Eclesiastes e, evidentemente, os Evangelhos".
O nosso percurso só será evocativo procedendo por exemplificações, particularmente em relação aos Evangelhos, que constituíram uma referência capital para Borges. É indiscutível, porém, que a Bíblia ofereceu a Borges uma espécie de léxico temático, simbólico, metafórico, arquetípico e até estilístico-retórico.
No Antigo Testamento, a predileção vai ao livro de Jó, ao qual o autor dedicou, dentre outras coisas, uma conferência ao Instituto de Intercâmbio Cultural Argentino-Israelense de Buenos Aires, cujo texto foi reunido em 1967 nas suas Conferencias.
Além disso, ele tinha escrito um prefácio para a Exposición del Libro de Job, de Fray Luis de León, um clássico espanhol do "siglo de oro", particularmente caro a ele. É preciso reconhecer que Borges capta um núcleo hermenêutico significativo dessa obra bíblica. Ela é tão proteiforme a ponto de merecer o julgamento afiado de São Jerônimo: "Interpretar Jó é como tentar aferrar uma enguia ou uma pequena moreia: quanto mais a apertas, mais ela te escapa da mão". Uma característica cara obviamente a um autor tão fugidio e refratário a toda classificação como Borges.
Pois bem, ele centra a sua análise no ápice do livro bíblico, isto é, nos dois discursos divinos finais dos capítulos 38-39 e 40-41: neles, Deus promete a Jó, através da técnica da interrogação e do mistério, a existência de uma ordem transcendente, que consegue compor em unidade a totalidade do ser e do existir através de uma 'esah, um "projeto".
Portanto, trata-se não de uma irracionalidade absurda e fatal que compõe os antípodas da realidade de modo casual, mas de uma metarracionalidade que é sustentada, por isso, por uma lógica transcendente e inescrutável. Por isso, Jó tem razão em protestar porque ela transborda da racionalidade humana limitada, mas, ao mesmo tempo, está errado em aplicar e impôr a ela a sua circunscrita capacidade "visiva", um pouco como acontece com quem – ao contemplar uma obra-prima pictórica – se detém apenas na análise das pinceladas ou dos quadros de cor, sem voltar um olhar panorâmico para a obra.
Portanto, seria só pela revelação divina (que é justamente o olhar de conjunto) que Jó poderia compreender a colocação da sua dor no desígnio infinito da 'esah divina: "Eu te conhecia só de ouvir. Agora, porém, os meus olhos te veem", o grande sofredor confessará no final (42,5).
Os enigmas do cosmos e da história só se dissolvem nessa perspectiva transcendente, em que, justamente, também se posiciona o enigma temático do livro, o do mal e da dor. [...]
Para selar este itinerário muito simplificado e apenas exemplificativo no mundo bíblico de Borges é sugestivo evocar o décimo e penúltimo conto de O manuscrito de Brodie (1970), publicado de modo autônomo em 1971 sob o título El Evangelio según Marcos.
Através de um percurso parabólico paradoxal, o escritor exalta a qualidade fortemente performática, quase "sacramental" do texto sagrado. Borges, ecoando a tese da obra Mimesis (1946) de Erich Auerbach, segundo a qual a Odisseia e a Bíblia são os arquétipos simbólicos do Ocidente, está convencido de que "os homens, ao longo do tempo, repetiram sempre duas histórias: a de uma embarcação perdida que busca pelos mares mediterrâneos uma ilha querida, e a de um deus que se faz crucificar no Gólgota".
De um lado, portanto, domina a "repetição", mas que não é mera reiteração, mas retomada e reatualização, da maneira do famoso escrito homônimo do filósofo Søren Kierkegaard (1843). De outro, porém, essa retranscrição não é nem mecânica nem literal, mas tem em si uma energia constantemente transformadora, a ponto de tornar a história sagrada primigênia sempre nova e eficaz.
Esses dois componentes – repetição e performance – são estupenda e terrivelmente representadas justamente no Evangelio según Marcos de Borges.
Como se sabe, a história narrativa é ambientada em um chuvoso março de 1928, na fazenda La Colorada, em Junín, no Peru. O estudante de medicina Baltasar Espinosa chega de férias junto a alguns fazendeiros de ar um pouco rude e primitivo, os Gutre, pai, filho e "uma jovem de paternidade incerta".
Uma inundação isola a fazenda, e Baltasar descobre uma Bíblia em inglês: para passar o tempo, ele começa a ler todas as noites, traduzindo-o, o Evangelho de Marcos para a família que o acolhe. Eles, na sua simplicidade, não ficam só fascinados, mas também completamente conquistados e se convencem, pouco a pouco, de que esses eventos devem se reproduzir no seu presente.
É assim que os Gutre identificam justamente no jovem estudante o Messias apresentado por Marcos. E, antes que ele parta, ao baixar das águas, eles já prepararam o seu Gólgota. "Fincados no piso de pedra, pediram-lhe a bênção. Depois o maldisseram, cuspiram nele e o empurraram até os fundos. A jovem chorava. Espinosa entendeu o que lhe esperava do outro lado da porta. Quando a abriram, viu o firmamento. Um pássaro gritou; pensou: é um pintassilgo. O galpão estava sem teto; tinham arrancado as vigas para construir a Cruz".
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A Bíblia segundo Borges. Artigo de Gianfranco Ravasi - Instituto Humanitas Unisinos - IHU