31 Março 2022
Descrevendo a forma como Putin usa a linguagem religiosa para justificar sua invasão, o diretor jesuíta da revista La Civiltà Cattolica, próximo ao Papa Francisco, explica como a lógica tribal que emerge é o oposto do Evangelho.
O artigo de Antonio Spadaro é publicado por La Croix, 29-03-2022. A tradução é do Cepat.
Foi à história que Vladimir Putin apelou, preso no atoleiro de uma invasão que o papa definiu como cruel, sem sentido, bárbara e sacrílega. Uma guerra que ele poderia perder precisamente no dia seguinte à sua vitória, se tivesse que administrar um delicado “depois”, ou seja, uma ocupação inaceitável. Um pouco como a França durante a guerra da Argélia entre 1954 e 1962.
No entanto, a ficção imperial é em grande parte alimentada por um pensador como Aleksandr Dugin – definido como o ideólogo de Putin –, que queria escrever no Facebook (!) em inglês (e, portanto, para o mundo inteiro): “A Rússia restabelecerá a ordem na Ucrânia, assim como a justiça, a prosperidade e um nível de vida digno”. Por quê? Porque “a Rússia traz a liberdade. A Rússia é o único país eslavo que conseguiu se tornar um império mundial, prossegue ele: Construir o Império Mundial é a nossa missão, e sabemos como fazê-lo. É por isso que somos Roma”. Seu objetivo apocalíptico é derrubar “a onipotência da Prostituta da Babilônia”. “Jamais podemos abandonar os modelos da história sagrada”, conclui Dugin, atribuindo à construção do Império Russo os traços do sagrado. Um novo Sacro Império Romano?
O presidente russo Vladimir Putin apareceu no estádio Luzhniki, em Moscou, para um banho de multidão após um breve discurso. Uma mudança de retórica em relação à imagem distante e gelada que Putin havia dado até então. Era 18 de março, o oitavo aniversário da anexação da Crimeia, mas sobretudo a data de nascimento de Fyodor Fyodorovich Ushakov, um ilustre almirante russo invicto da era czarista proclamado santo pela Igreja Ortodoxa Russa em 2001. A mensagem simbólica é clara: a guerra em curso estaria sob a proteção de um santo guerreiro que foi, entre outras coisas, declarado em 2005 o santo padroeiro dos bombardeiros nucleares.
Recordemos então o que Putin disse em 2007 durante uma coletiva de imprensa: “A fé tradicional da Federação Russa e o escudo nuclear da Rússia são duas coisas que fortalecem o Estado russo e criam as condições necessárias para garantir a segurança dentro e fora do país”. A fé cristã e as bombas nucleares estão aqui tragicamente ligadas ao serviço do Estado e sua “segurança”.
No início de março, o Patriarca de Moscou, Kirill, havia falado da invasão da Ucrânia como de “um combate que não tem um significado físico, mas metafísico”. Foi assim que ele projetou a ofensiva beligerante de cunho político no cenário de um combate apocalíptico, um confronto final, entre o bem e o mal. A divindade torna-se a projeção ideal do poder constituído. A nação é o “povo eleito”, e a própria fé a opõe àqueles que não lhe pertencem, ou seja, ao “inimigo” e ao dissidente, definido por Putin como “mosquito sobre o qual se deve cuspir”. O apelo militar ao apocalipse sempre justifica o poder desejado por um deus. Trata-se, por exemplo, do jihadismo, mas também das formas de suprematismo neocruzado vistas recentemente nos Estados Unidos.
É por isso que o Papa Francisco disse ao Patriarca Kirill, com quem dialogou como irmão por videoconferência, que “a Igreja não deve usar a linguagem da política, mas a linguagem de Jesus”, que é a linguagem da reconciliação, da paz e do amor. Sim, do amor. Foi precisamente Putin quem disse, no estádio Luzhniki, as seguintes palavras: “Ninguém tem maior amor do que aquele que dá a vida por seus amigos”. São as palavras de Jesus no Evangelho de São João (15, 13), que são usadas aqui para justificar a invasão e o ódio. A concepção tribal da religião e da amizade, no entanto, é o oposto do Evangelho, que se baseia em “amar seus inimigos” (Mt 5, 43). A retórica religiosa do poder e da violência é, portanto, blasfema, porque apela a Deus para corrompê-lo naquilo que é a sua identidade: precisamente o amor.
A intensificação comunicativa de Putin consiste em ganhar um apoio teológico para justificar o poder e o conflito. E, diz-nos o Papa Francisco: “Como é triste quando pessoas e povos orgulhosos de serem cristãos veem os outros como inimigos e pensam em travar guerra contra eles!” A tragédia ucraniana é, portanto, também uma tragédia cristã. É por isso que devemos manter aberta a porta do diálogo ecumênico, para influenciar o futuro político em favor de uma reconciliação entre dois povos, tão distante quanto necessária. Devemos, portanto, esperar um novo encontro entre Francisco e Kirill. Também seria bom que Francisco fosse para Kiev, mas atenção!, porque o papa não constrói “pontes” inúteis, especialmente em terras ortodoxas, e esta é uma ortodoxia dividida e ferida. Ele só irá se a sua presença se tornar uma oportunidade de reconciliação – como foi o caso de Bangui e será em Juba –, e não de divisões posteriores.
O que devemos esperar como crentes? Certamente, a vitória da liberdade e o fracasso da invasão, mas também a carta das negociações e não a das armas, sem jamais desejar a humilhação da Rússia como país. Por outro lado, devemos esperar por uma Rússia integrada numa visão europeia que vai do Atlântico aos Urais, aquela sonhada por João Paulo II, e que até parecia transparecer no discurso que o jovem Putin fez em 2001 no Bundestag. Por fim, a história da Segunda Guerra Mundial demonstra que é impossível construir uma ordem internacional com uma potência humilhada em busca de vingança.
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Guerra na Ucrânia: “A retórica religiosa é blasfematória”. Artigo de Antonio Spadaro - Instituto Humanitas Unisinos - IHU