27 Março 2021
Os símbolos, os ritos, as imagens e as palavras escolhidas pelo pontífice expressam a convicção de que esta trágica experiência coletiva pode se transformar em uma oportunidade para preparar o amanhã de todos.
O comentário é de Miguel Gotor, historiador italiano, ex-senador e professor da Universidade de Turim, em artigo publicado em La Repubblica, 26-03-2021. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
A pandemia da Covid-19 representou um desafio inédito também para o Papa Francisco e o seu magistério. Como o vírus mudou a imagem e a mensagem do pontífice? E com que repertório de símbolos, ritos e palavras ele interpretou, em escala global, um flagelo antiquíssimo como a epidemia, que de repente voltou a bater nas portas hipertecnológicas do mundo de hoje?
Em primeiro lugar, ele o fez servindo-se do poder da experiência, com um processo de identificação com a doença que lhe permitiu valorizar ao máximo o título de “Servo dos servos de Deus”. Em um recente livro, Francisco usou precisamente a imagem do vírus para narrar as três “situações Covid” – como ele as chamou – da sua vida: a doença pulmonar de 1957, que fez com que ele soubesse, “por experiência direta, como se sentem os doentes de coronavírus que lutam para respirar, ligados a um respirador”; o desenraizamento e a solidão vividos durante os estudos na Alemanha em 1986, “a Covid do exílio”, que culminou com o revés do doutorado inacabado; e o isolamento em Córdoba, de 1990 a 1992, “como uma longa quarentena”, com a qual ele aprendeu “que você sofre muito, mas, se você se deixar mudar, você sai melhor”.
Em segundo lugar, o papa usou o poder das imagens exercitando o título de “Vigário de Roma” para lançar uma mensagem universal. Isso ocorreu graças à sábia administração de um capital simbólico de valor inestimável, o tesouro da tradição, ao qual, porém, ele acrescentou o toque tipicamente jesuíta de uma sutil dialética com a transgressão.
Existem duas imagens fortes que permitem entrever isso. A primeira, do dia 15 de março de 2020, retrata o papa ao longo da Via del Corso, enquanto ele caminha – autoridade soberana autocertificante, sem necessidade de certificação – em uma Roma interditada por causa do lockdown para chegar à Igreja de São Marcelo e se ajoelhar diante do Cristo milagroso, que, segundo a tradição hagiográfica, deteve a peste em 1522.
A segunda imagem, do dia 27 de março, captura Francisco no átrio deserto e fantasmagórico de São Pedro, debaixo do barulho da chuva e do chilrear das gaivotas – os únicos ruídos que acompanham a estrondosa invocação do papa: “Te imploramos, Deus, que não nos deixes à mercê da tempestade”, encontramo-nos “amedrontados e perdidos” no mesmo barco, mas “todos chamados a remar juntos”. O papa reza tendo às suas costas o ícone de Maria salus populi romani e o Crucifixo milagroso da Via del Corso, e aquela simbologia da tradição do povo da Urbe ressurge a uma nova vida, transformando-se em uma mensagem de sofrimento criatural em escala global.
Em terceiro lugar, o papa escolheu o poder do rito da peregrinação, exaltando o título de “Sumo Pontífice da Igreja universal”. A viagem ao Iraque, missão de esperança e de recomeço, foi um sinal poderoso: diante de um mundo assustado, Francisco quis nos dizer que a vida de todos pode recomeçar a partir de onde a civilização nasceu, em um lugar de conflito entre dois rios que mistura o passado arqueológico da terra de Abraão com o presente decaído dos escombros da guerra do Iraque, o arquétipo das fés com a história das bombas.
O Iraque ainda martirizado transformou-se assim na metáfora do mundo dilacerado pela pandemia, mas, com essa viagem, o papa quis enviar uma mensagem transgressiva de paz e de escandaloso otimismo: os tecidos podem se recompor e as feridas podem se curar, porque a esperança sempre sobrevive à morte, e a luz é mais forte do que as trevas.
Naturalmente, o poder do papa é também o poder da palavra. Nos longos meses do confinamento, as suas intervenções fizeram referência à pandemia como índice revelador da principal doença social do nosso tempo, a das desigualdades. A certeza é de que “ninguém se salva sozinho” e de que é preciso combater “o vírus do individualismo radical” para vencer “a globalização da indiferença” e a “paralisia do egoísmo”.
O papa disse ter se sentido tocado “por uma fotografia, de Las Vegas, em que os sem-teto foram postos em quarentena em um estacionamento. E os hotéis estavam vazios. Mas um sem-teto não pode ir para um hotel. Aqui se vê em ação a teoria do descarte”, e perguntou: “Quem vai nos contar sobre a expectativa de cura nos vilarejos mais pobres da Ásia, da América Latina e da África?”.
O outro grande problema denunciado por Francisco é a dilacerante distância social e psicológica que a Covid escavou entre as gerações: essa tragédia priva os jovens da sabedoria e dos abraços dos idosos, e os idosos das energias do futuro dos jovens, e a ambos o papa pede que não deixem de ter esperança.
Os símbolos, os ritos, as imagens e as palavras escolhidos pelo papa para interpretar a pandemia expressam a convicção de que esta trágica experiência coletiva pode se transformar em uma oportunidade para preparar o amanhã de todos, “porque, pior do que esta crise, só o drama de desperdiçá-la, fechando-nos em nós mesmos”. Desde que “voltemos a sonhar”, tendo a coragem e a criatividade de retomar a viagem: de Roma a Las Vegas, passando por Mosul, mas começando, sobretudo, a partir de dentro de nós.
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As três vacinas de Francisco. Artigo de Miguel Gotor - Instituto Humanitas Unisinos - IHU