07 Outubro 2020
"O Papa escreve com dor sobre o cinismo generalizado, adverte as redes sociais com palavras que causam esmaecimento e coloca na berlinda o 'dogma' do 'neoliberalismo', único dogma citado, que a partir de 1989 em diante parece ser a rota segura finalmente traçada para a navegação de todos nós. Agora vemos como está terminando a temporada do pensamento único do mercado. Para quem ainda não percebeu, só há um conselho: ler a 'Fratelli Tutti'", escreve Alberto Bobbio, editor-chefe da revista Famiglia Cristiana, em artigo publicado por Eco di Bergamo, 06-10-2020. A tradução é de Luisa Rabolini.
É o subsidiário do Pontificado, mas também a bússola para o rumo certo. A terceira encíclica do Papa Francisco é uma síntese orgânica como se fosse necessário parar para pôr ordem, retomar o fio, voltar a observar os dados objetivos com inteligência, evitando que alguns caiam no esquecimento, e oferecer juntos um critério de leitura. O Papa só tem palavras e as trabalha como um artesão para recompor uma narrativa e um compromisso perante um mundo que está se despedaçando e que ele teimosamente insiste em recompor de uma maneira nova, com uma lógica que desarruma as lógicas rasas, onde o que não é proibido é permitido, onde o desejo de poucos supera a vontade de muitos e os que ficam para trás podem no máximo se consolar com a esmola e a eventual boa vontade de alguns.
Ele já havia escrito muitas coisas na Laudato si'. Mas, evidentemente, o ensinamento não foi acolhido. Há quem a compreendeu como um manifesto ecológico do mesmo Francisco de sempre, que "não fala o suficiente de Deus".
Há quem tenha tirado frases do contexto feliz de suas análises progressistas ou, ao contrário, entristecido pelo magistério de um Papa negacionista da fúlgida tradição da Igreja, a ponto de acusá-lo de tropeçar no cisma. Existem 172 citações na Laudato si' e 50 na Lumen Fidei, sua primeira encíclica. Não se deve temer a extensão (287 parágrafos divididos em 8 capítulos), a leitura é fluida, a narração dos problemas do mundo e as soluções são claras e profundas. Compreender Francisco e seu pontificado, para compreender a continuidade com o magistério de seus predecessores é uma leitura crucial. Bergoglio decidiu assumir uma grande responsabilidade, transformando e desenvolvendo o raciocínio sobre a fraternidade contido no documento de Abu Dhabi.
Aquela palavras também foram pouco consideradas, como se fossem o resultado de um capricho repentino, relegadas ao perímetro do diálogo inter-religioso entre cristianismo e islã, do qual muitos não gostam e, aliás, até parece blasfemo para a doutrina católica. Hoje aquele raciocínio torna-se magistério e o conceito de fraternidade, caro à Revolução Francesa ao lado da liberdade e da igualdade e apagado pela ordem pós-revolucionária por ser muito pesado, exigente e justamente revolucionário, colocado de volta no centro das atenções por um Papa não por puro espírito romântico, não para polir um mito extravagante, mas para indicar com que tecer uma nova cultura política, econômica e social e uma nova responsabilidade pessoal e institucional. A encíclica não é uma crítica aos estilos de vida.
É um desafio avassalador a como as coisas estão hoje para alguém que decidiu não se retirar para o recinto sagrado e tranquilo, não ir além como fizeram todos aqueles que desceram de Jericó naquele dia, exceto um: "Todo dia enfrentamos à escolha de ser bons samaritanos”. Padre Antonio Spadaro, diretor da Civiltà Cattolica escreveu ontem, no prefácio do texto, que Bergoglio "subverte a lógica do apocalipse", o integralismo daqueles que contrastam um mundo oposto a Deus, adoram a Deus, sem intenção de viver como agrada a Deus. Os cristãos não podem se colocar por fora da desordem mundial, mas podem recolocar nos trilhos o trem da história, que hoje parou na estação de uma pós-globalização convulsiva, anárquica, às vezes furiosa, violenta e certamente ruinosa.
O Papa escreve com dor sobre o cinismo generalizado, adverte as redes sociais com palavras que causam esmaecimento e coloca na berlinda o "dogma" do "neoliberalismo", único dogma citado, que a partir de 1989 em diante parece ser a rota segura finalmente traçada para a navegação de todos nós. Agora vemos como está terminando a temporada do pensamento único do mercado. Para quem ainda não percebeu, só há um conselho: ler a “Fratelli Tutti”.
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O Papa desarruma as lógicas rasas. Artigo de Alberto Bobbio - Instituto Humanitas Unisinos - IHU