"Estamos diante de um homem, o Papa Francisco, que no seguimento de sua fonte inspiradora, Francisco de Assis, se fez também um homem universal, acolhendo a todos e se identificando com os mais vulneráveis e invisíveis de nosso mundo cruel e sem humanidade. Ele suscita a esperança de que podemos e devemos alimentar o sonho da fraternidade sem fronteiras e do amor universal", escreve Leonardo Boff, ecoteólogo, filósofo e escritor brasileiro e escreveu: “Francisco de Assis e Francisco de Roma”, Editora Mar de Ideias, Rio 2015.
A nova encíclica do Papa Francisco, assinada sobre a sepultura de Francisco de Assis, na cidade de Assis, no dia 3 de outubro, será um marco na doutrina social da Igreja. Ela é vasta e detalhada em sua temática, sempre procurando somar valores, até do liberalismo que ele fortemente critica. Certamente será analisada em detalhe por cristãos e não cristãos pois se dirige a todas as pessoas de boa vontade. Ressaltarei neste espaço aquilo que considero inovador face ao magistério anterior dos Papas.
Em primeiro lugar tem que ficar claro que o Papa apresenta uma alternativa paradigmática à nossa forma de habitar a Casa Comum, submetida a muitas ameaças. Faz uma descrição das “sombras densas” que equivalem, como ele mesmo afirmou em vários pronunciamentos, “a uma terceira guerra mundial em pedaços”. Atualmente não há um projeto comum para a humanidade (n.18). Mas um fio condutor passa por toda a encíclica: “a consciência de que ou nos salvamos todos ou ninguém se salva”(n32). Esse é o projeto novo, expresso nestas palavras: “Entrego esta encíclica social como uma humilde contribuição à reflexão para que frente às diversas formas de eliminar ou de ignorar os outros, sejamos capazes de reagir com um novo sonho de fraternidade e de amizade social” (n.6).
Devemos compreender bem esta alternativa. Viemos e estamos ainda dentro de um paradigma que está na base da modernidade. É antropocêntrico. É o reino do dominus: o ser humano como senhor e dono da natureza e da Terra que só possuem sentido na medida em que se ordenam a ele. Mudou a face da Terra, trouxe muitas vantagens mas também criou um princípio de autodestruição. É o impasse atual das “sombras densas”. Face a esta cosmovisão, a encíclica Fratelli tutti propõe um novo paradigma: o do frater o do irmão, a fraternidade universal e da amizade social. Desloca o centro: de uma civilização técnico-industrialista e individualista à uma civilização solidária, da preservação e do cuidado de toda a vida. Essa é a intenção originária do Papa. Nessa viragem está nossa salvação; superaremos a visão apocalíptica da ameaça do fim da espécie por uma visão de esperança de que podemos e devemos mudar de rumo.
Para isso precisamos alimentar a esperança. Diz o Papa: “convido-os à esperança que nos fala de uma realidade enraizada no profundo do ser humano, independentemente das circunstâncias concretas e dos condicionamentos históricos em que vive”(n.55). Aqui ressoa o princípio esperança, que é mais que a virtude da esperança, mas um princípio, motor interior para projetar sonhos e visões novas, tão bem formulado por Ernst Bloch. Enfatiza: “a afirmação de que os seres humanos somos irmãos e irmãs, que não é uma abstração senão que se faz carne e se torna concreta, nos coloca uma série de de desafios que nos deslocam, nos obrigam a assumir novas perspectivas a e desenvolver novas reações”(n.128). Como se depreende, se trata de um rumo novo, de uma viragem paradigmática.
Por onde começar? Aqui o Papa revela sua atitude de base, com frequência repetida aos movimentos sociais: “Não esperem nada de cima pois vem sempre mais do mesmo ou pior; comecem por vocês mesmos”. Por isso sugere:” É possível começar de baixo, de cada um, lutar pelo mais concreto e local, até o último rincão da pátria e do mundo”(n.78). O Papa sugere o que hoje é a ponta da discussão ecológica: trabalhar a região, o biorregionalismo que possibilita a verdadeira sustentabilidade e a humanização das comunidades e articula o local com a universal (n.147).
Tem longas reflexões sobre a economia e a política, mas realça: ”a política não deve submeter-se à economia e esta não deve submeter-se aos ditames e ao paradigma eficientista da tecnocracia”(n.177). Faz um crítica contundente ao mercado:” O mercado sozinho não resolve tudo como nos querem fazer crer no dogma de fé neoliberal; trata-se de um pensamento pobre, repetitivo que propõe sempre as mesmas receitas para qualquer desafio que se apresente; o neoliberalismo se reproduz a si mesmo como o único caminho para resolver os problemas sociais”(n.168). A globalização nos fez mais próximos mas não mais irmãos(n.12). Cria apenas sócios mas não irmãos (n.101).
À mão da parábola do bom samaritano procede a uma análise rigorosa dos vários personagens que entram em cena e os aplica à economia política culminando com a pergunta: ”com quem você se identifica (com o ferido na estrada, com o sacerdote, o levita ou com o forasteiro, o samaritano, desprezado pelos judeus)? Esta pergunta é crua, direta e determinante. Com qual deles você se parece” (n.64)? O bom samaritano é feito modelo do amor social e político (n.66).
O novo paradigma da fraternidade e do amor social se desdobra no amor em sua concretização pública, no cuidado dos mais frágeis, na cultura do encontro e do diálogo, na política como ternura e amabilidade.
Quanto à cultura do encontro, toma-se a liberdade de citar o poeta brasileiro Vinicius de Moraes em seu Samba da Bênção na faixa “Encontro Au bon Gourmet” de 1962 onde diz: ”A vida é a arte do encontro embora haja tantos desencontros na vida”(n.215). A política não se reduz à disputa pelo poder e à divisão dos poderes. Afirma de forma surpreendente: ”Também na política há lugar para o amor com ternura: aos mais pequenos, aos mais débeis, aos mais pobres; eles devem enternecer-nos e tem o ‘direito’ de nos encher a alma e o coração; sim, são nossos irmãos e como tais temos que amá-los e assim tratá-los”(194). E se pergunta que é a ternura e responde: ”é o amor que se faz próximo e concreto; é um movimento que procede do coração e chega aos olhos, aos ouvidos, às mãos”(n.196). Isso nos faz recordar a frase de Gandhi, uma das inspirações do Papa, ao lado de São Francisco, Luther King, Desmond Tutu: a política é um gesto de amor ao povo, o cuidado das coisas comuns.
Junto com a ternura vem a amabilidade que nós traduziríamos por gentileza, lembrando profeta Gentileza que nas ruas do Rio de Janeiro proclamava a todos os passantes “Gentileza gera gentileza” e “Deus é gentileza” bem no estilo de São Francisco. Assim define a amabilidade: “um estado de ânimo que não é áspero, rude, duro senão afável, suave, que sustenta e fortalece; uma pessoa que possui esta qualidade ajuda aos demais para que sua existência seja mais suportável” (n.223). Eis um desafio aos políticos, feito também aos bispos e padres: fazer a revolução da ternura.
A solidariedade é um dos fundamentos do humano e do social. Ela “se expressa concretamente no serviço que pode assumir formas muito diversas e de tomar para si o peso dos outros; em grande parte é cuidar da fragilidade humana” (n.115). Essa solidariedade se mostrou ausente e só depois eficaz no combate ao Covid-19. Ela impede a bifurcação da humanidade entre o ‘meu mundo’ e os ‘outros’, ‘eles’, pois “muitos deixam de ser considerados seres humanos com uma dignidade inalienável e passam a ser apenas “eles” (n.27). E conclui com um grande desejo: “Oxalá no final não haja “os outros” mas apenas um “nós” (n.35).
Para esse desafio de dar corpo ao sonho de uma fraternidade universal e de amor social convoca todas as religiões pois “elas oferecem uma contribuição valiosa na construção da fraternidade e para a defesa da justiça na sociedade” (n.271).
No final evoca a figura do irmãozinho de Jesus Charles de Foucauld que no deserto do norte da África junto à população muçulmana queria ser “definitivamente o irmão universal” (n.287). Fazendo seu este propósito o Papa Francisco observa: “Só identificando-se com os últimos chegou a ser o irmão de todos; que Deus inspire esse sonho em cada um de nós. Amém” (n.288).
Estamos diante de um homem, o Papa Francisco, que no seguimento de sua fonte inspiradora, Francisco de Assis, se fez também um homem universal, acolhendo a todos e se identificando com os mais vulneráveis e invisíveis de nosso mundo cruel e sem humanidade. Ele suscita a esperança de que podemos e devemos alimentar o sonho da fraternidade sem fronteiras e do amor universal.
Ele fez a sua parte. Compete a nós não deixar que o sonho seja apenas sonho, mas seja o começo seminal de uma nova forma de habitar juntos, como irmãos e irmãs e mais a natureza, na mesma Casa Comum. Teremos tempo e sabedoria para esse salto? Seguramente continuarão as “sombras densas”. Mas temos uma lâmpada nesta encíclica de esperança do Papa Francisco. Ela não dissipa todas as sombras. Mas basta para vislumbrar o caminho a ser percorrido por todos.