30 Setembro 2008
José Datrino é o Profeta Gentileza, o poeta que nasce da tragédia do esquecido Gran Circus Norte-americano, que incendiou em 17 de dezembro de 1961 e vitimou 500 pessoas, em sua maioria crianças. Dias depois, Datrino acordou ouvindo vozes astrais, conforme suas palavras, que o diziam para abandonar o mundo material e se dedicar ao mundo espiritual. Ele imediatamente foi para o local do incêndio, plantou um jardim e uma horta sobre as cinzas do circo. Durante quatro anos, viveu naquele local e incutiu nas pessoas o sentido das palavras Agradecido e Gentileza, tornando-se um consolador voluntário daqueles que perderam um ente querido na tragédia. Assim, ficou conhecido como Profeta Gentileza. Ao deixar o local, tornou-se um andarilho do Rio de Janeiro. Era visto freqüentemente em ruas, praças, barcas, trens e ônibus fazendo sua pregação de amor, bondade e respeito pelo próximo e pela natureza. Aos que o chamavam de louco, ele respondia: "Sou maluco para te amar e louco para te salvar". Morreu em 1996, ao 79 anos.
Uma homenagem feita ao Profeta Gentileza é a peça Univvverrsso Gentileza, produzida por Junior Perim. Em entrevista concedida por e-mail à IHU On-Line, Perim fala do espetáculo e reflete acerca da obra e do pensamento de Datrino. “A idéia de uma sociedade humana, respeitadora dos direitos e garantias sociais, individuais e coletivas não é nova. O Profeta Gentileza construiu um verbo, um mito, uma identidade visual para (re)atualizar este sonho e detalhe, com uma visão globalizante”, disse ele.
Junior Perim é produtor circense e coordenador da ONG carioca Crescer e Viver.
Confira a entrevista.
IHU On-Line – Como o senhor tomou conhecimento do trabalho do Profeta Gentileza e por qual motivo veio a ligação com ele?
Junior Perim – Na verdade, o andarilho eu já conhecia desde adolescente. Quase todo mundo que andava pelas ruas do Rio de Janeiro na época em que o Profeta era vivo acabava topando com ele. Lembro de estar dentro de um ônibus com o meu pai quando passamos por ele próximo à rodoviária Novo Rio. Meu pai me disse que ele havia perdido seus familiares no incêndio do Gran Circo Norte Americano em Niterói, me fazendo acreditar no mito que um monte de gente até hoje pensa ser verdade.
A real da relação dele com o circo eu descobri no ano passado. Nós estávamos em cartaz na lona de circo Crescer e Viver com o Vida de artista, espetáculo que criamos com a direção de Alice Viveiros de Castro. Em uma das sessões, ela me apresentou o professor Leonardo Guelman que na ocasião era o diretor do Centro de Artes da Universidade Federal Fluminense. Batemos um papo, falamos de arte de cultura e ele me deu um livro de presente que havia escrito chamado Brasil: Tempo de Gentileza (Rio de Janeiro: Editora da Universidade Federal Fluminense, 2000). Num final de semana, eu devorei os capítulos e um deles me chamou mais a atenção – "O circo mundo" Este capítulo mostra a dimensão da "piração" do José Datrino – nome de batismo do Profeta Gentileza.
O que as pessoas entendiam como loucura eu li como uma reflexão e inteligência intuitiva que poucos seres humanos desenvolvem. O cara construiu de uma tragédia o signo de uma revelação, o início de uma missão a base de sua mitopoiesis. Fui arrebatado pela reflexão do Profeta e pela sua decisão de ir para o "cinzeiro humano" que havia se transformado o local do incêndio, largando tudo o que tinha, para consolar as pessoas que tinham perdido parentes e amigos na tragédia. Viveu no local por quase quatro anos e plantou um jardim, que denominou de "Univvverrsso Gentileza e dos passarinhos".
Estou envolvido com circo há um tempo, desde que fundamos o Crescer e Viver. Tenho andado pelo Brasil e pelo mundo e pouco se fala da tragédia que se tornou um tabu. Então pensei: a mensagem do Profeta Gentileza é uma proposta atual, precisamos construir um novo paradigma relacional para a humanidade e a gentileza é um caminho. Ele pensou isso através de uma tragédia e viu nela a degradação dos valores, da natureza, enfim da humanidade, porque não fazer um espetáculo sobre isso? Liguei para o Guelman e propus fazer a concepção, ele entendeu a idéia e demos o primeiro passo.
IHU On-Line – A inspiração para o espetáculo Univvverrsso Gentileza tem a ver com a prédica "a derrota de um circo queimado é um mundo representado, porque o mundo é redondo e o circo arredondado", como dizia o Profeta?
Junior Perim – Pactuamos uma crença institucional no Crescer e Viver: nós acreditamos que podemos vir a ser uma instituição de referência na formação, produção, fruição e difusão da arte circense, fazendo tudo isso do nosso jeito. Nós começamos em São Gonçalo, onde até hoje mantemos as ações de circo. Começamos numa escola de samba e agora estamos em uma escola pública, onde atendemos 200 crianças, adolescentes e jovens. Iniciamos a expansão em 2004, quando implantamos a lona na Praça Onze. Começamos sem nada, só com a lona de circo e alguns equipamentos. Nem banheiro tinha e com uma semana a gente já estava atendendo a uma molecada formada por meninos de ruas e da comunidade que totalizavam cem educandos. Chegamos só para replicar a metodologia que já tínhamos consolidado em São Gonçalo, mas o território foi nos impondo muitos desafios, inclusive a de uma revisão metodológica do nosso fazer. Não dá mais para ficar na onda de só ensinar a técnica produzir espetáculos como espaços de formação e aprimoramento artístico foi um passo importante que demos na melhoria da metodologia.
Estamos no berço do circo brasileiro. A Praça Onze é também uma referência do desenvolvimento econômico e cultural da cidade do Rio de Janeiro desde a época do Brasil colônia. Não é a toa que está lá o Sambódromo: Darcy Ribeiro [1] e Oscar Niemeyer [2] não o colocaram ali sem qualquer motivo. Então, temos refletido muito sobre o nosso papel naquele território como uma organização que fazedora não só em sua dimensão social e cidadã, mas também na dimensão simbólica e econômica. Queremos cada vez mais que a lona de circo Crescer e Viver se transforme num espaço de geração de desenvolvimento do território e aí falamos de desenvolvimento humano, social e econômico. Trata-se de um desenvolvimento transversal para isso precisamos consolidar a lona de circo Crescer e Viver como um equipamento cultural democrático da cidade do Rio de Janeiro.
Pode parecer ousado e é, mas nós estamos certos de que a cada ano vamos ampliar o impacto da nossa intervenção e achamos que este impacto pode reverberar para uma atualização estética da produção circense brasileira, sobretudo porque nós não compramos o discurso do circo tradicional e do circo novo, estamos na onda de que a tradição e o desafio estético do circo é se preservar como uma expressão da contemporaneidade. O circo é parte da memória afetiva da humanidade. Ele mexe com força no imaginário de todo mundo, então a pergunta no fazer circense precisa ser sempre uma: o que pode tocar as pessoas? Se a cada ação e atitude em só fazer descobrirmos uma resposta a esta pergunta, estaremos fazendo o certo; esta é a nossa crença. Além disso tudo, o Crescer e Viver integra a Rede Circo do Mundo Brasil e a representa na Rede Internacional de Formação em Circo Social, o que tem nos possibilitado conhecer e trocar experiências com projetos de circo social de excelente nível no Brasil e no mundo e com escolas de referência na formação circense como a École Nationale de Cirque, do Canadá, o National Institute of Circus Arts, da Austrália, entre outras.
IHU On-Line – Muito se fala da violência nas grandes cidades, e o Rio de Janeiro está entre os protagonistas nesta estatística urbana brasileira. Além da mensagem visual, vide o acervo fotográfico e os murais que estão sendo restaurados, é possível afirmar que a mensagem espiritualizada de José Datrino tem espaço e eficácia entre os cidadãos do cotidiano globalizado?
Junior Perim – A idéia de uma sociedade humana, respeitadora dos direitos e garantias sociais, individuais e coletivas não é nova. O Profeta Gentileza construiu um verbo, um mito, uma identidade visual para (re)atualizar este sonho e detalhe, com uma visão globalizante. Quando ele foi pintar as pilastras, porque elas são um portal de entrada no Rio de Janeiro, estavam discutindo a organização da ECO-92. Os chefes de Estado chegavam por esse lugar; os ônibus vindos do Brasil inteiro para a rodoviária continuam a chegar por ali, então ele quis afetar consciências do mundo inteiro com as suas mensagens que não se limitavam a uma verve espiritualizada. O Profeta Gentileza denunciava o "capeta-capital", o "capetalismo", como razão de todo o mal, como origem da crise de valores.
A sociedade há muito tempo se divide entre aqueles que acumulam o "vil metal" em detrimento daqueles que não acessam os recursos, bens e riqueza produzida. Também não é novo o discurso de que a violência resulta da pobreza. Aliás, tem se falado muito em "tecnologia social" para a geração de renda como meio de "salvar" os pobres. O Profeta, em seus escritos, já denunciava a acumulação de terras, o manejo irresponsável dos recursos naturais e até o manejo do poder para a garantia dos interesses privados, como razão da pobreza. Nosso desafio é falar, lutar e buscar um modelo de sociabilidade e de poder que coloque os recursos à disposição do resgate da humanidade e do seu desenvolvimento.
IHU On-Line – Do legado do Profeta Gentileza, o que podemos ver espelhado nas manifestações do povo brasileiro?
Junior Perim – Para dizer a verdade muito pouco. Vivemos, nos últimos anos, desde a ditadura militar na verdade, um processo de despolitização da sociedade, esta despolitização do povo brasileiro se reflete nas instituições. Vou tomar por base as opções de organizações da sociedade civil: algumas pessoas estão fazendo um trabalho louvável de assistência social, de educação, de cultura e nas mais diversas áreas. Muitas alcançando resultados excelentes. Não estamos no papo de “ah, ensina o moleque a fazer arte circense”, tirando ele do risco social que já demos conta. O Profeta Gentileza usava como apliques cata-ventos de papel e aquilo tinha um sentido, não era só um adereço que dava forma a sua plasticidade, era um elemento simbólico que ele dizia servir para "arejar a mente da humanidade distraída". Nosso intuito é o de atualizar a obras, ensinamentos e o legado, colocando à disposição de uma fração do povo brasileiro para que ele volte a pensar. Nosso papel é usar a arte como elemento lúdico de politização e formação de massa crítica.
IHU On-Line – Já na década de 1970, o Profeta Gentileza percebia o mal-estar que avançava sobre o mundo. Em sua opinião, de que forma ele agiria vendo a sociedade atual, se desenvolvendo a partir das novas tecnologias?
Junior Perim – Primeiro é bom resgatar o conceito de "tecnologia". Tecnologia significa engenho humano. Em minha opinião, ele tinha as suas tecnologias, foi um profeta em evolução. Quem pegar os livros do professor Leonardo Guelman, para estudar, irá perceber que o Profeta teve fases diferentes: a “riponga”, a positivista, a tropicalista, e para cada uma delas ele foi construindo engenhos de comunicação, grafia, linguagem, apliques, vestimenta, estandartes e o próprio livro urbano que escreveu nas pilastras do viaduto do Caju. Ele era uma figura inteligente. Certamente, iria encontrar e desenvolver as suas próprias e inovadoras tecnologias para comunicar sua crença.
IHU On-Line – Qual a repercussão do evento entre os espectadores? Existem perspectivas para percorrer outros estados?
Junior Perim – Na minha avaliação, a repercussão está para além do público- espectador. A temporada do espetáculo, que vai até o dia 11 de outubro na lona de circo Crescer e Viver, gera renda e trabalho para 46 jovens. Estou falando aqui de 13 jovens artistas do elenco e mais uma galera que atua na produção, nos serviços de atendimento ao público, na bilheteria, na contra-regragem, enfim em todos os elos da cadeia de produção do espetáculo. Esta é a principal repercussão. Agora sobre público, este espetáculo tem um papel, ou seja, ele não é só uma peça de entretenimento, mas também um instrumento de comunicabilidade de uma ética relacional, da ética da gentileza. Então nosso esforço primeiro é levar, para a lona, jovens da comunidade, estudantes, participantes de organizações beneficentes, sociais e culturais. Por semana, são 450 ingressos doados para ONGs e escolas públicas. Temos tido uma média de 200 pessoas por sessão. Pode parecer pouco, mas estamos falando de uma ocupação de 70% em média da capacidade do nosso circo.
Isso é um feito na cidade do Rio de Janeiro, que, embora tenha a pecha de "tambor cultural do Brasil", vive uma mediocridade. As pessoas não vão a teatros, museus, nem a espetáculos cênicos. Isso é um pouco o fenômeno da televisão. Parafraseando o Profeta Gentileza, que chamava a humanidade de distraída, existe o que podemos chamar de "Público Distraído" pelas telenovelas, pelos reality shows, enfim por toda aquela baboseira que produzem para colocar na caixa preta, que deveria estar prestando um serviço público de informação e formação da identidade. Pode parecer preconceito meu e talvez seja mesmo, mas a cada dia pego menos o controle remoto, pois a cada zapeada tenho a sensação de que há uma conspiração para me transformar e transformar as pessoas em idiotas. Queremos percorrer outros estados com o espetáculo. Estamos em vias de aprovar um projeto na Lei de Incentivo à Cultura para viabilizar isso, principalmente nos estados onde o Profeta Gentileza foi pregar. Ele visitou 54 cidades nas várias regiões brasileiras, e queremos ir a algumas delas.
Notas:
[1] Darcy Ribeiro foi um antropólogo, escritor e político brasileiro. Durante o primeiro governo de Leonel Brizola no Rio de Janeiro (1983-1987), ele criou, planejou e dirigiu a implantação dos Centros Integrados de Ensino Público (CIEP), um projeto pedagógico de assistência em tempo integral a crianças, incluindo atividades recreativas e culturais para além do ensino formal – dando concretude aos projetos idealizados décadas antes por Anísio. Também foi ministro-chefe da Casa Civil do presidente João Goulart, vice-governador do Rio de Janeiro de 1983 a 1987 e exerceu o mandato de senador pelo Rio de Janeiro, de 1991 até sua morte, anunciada por um lento processo canceroso, que comoveu todo o Brasil em torno de sua figura. Poucos anos antes de falecer, publica O povo brasileiro, obra na qual, dentre outras impressões, Ribeiro relativiza a suposta ineficiência portuguesa.
[2] Oscar Ribeiro de Almeida de Niemeyer Soares Filho é um arquiteto brasileiro, sendo considerado um dos nomes mais influentes na Arquitetura Moderna internacional. Foi pioneiro na exploração das possibilidades construtivas e plásticas do concreto armado.
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Universso Gentileza. Entrevista especial com Junior Perim - Instituto Humanitas Unisinos - IHU