26 Setembro 2020
"O predomínio do homem sobre a natureza põe em risco a vida humana, e sua sobrevivência depende agora de ouvir os antes considerados 'não modernos'. Inúmeros povos, corpos dissidentes e seres vivos nos mostram e indicam caminhos", escreve Jean Tible, militante e professor de Ciência Política na Universidade de São Paulo, autor de Marx Selvagem (Annablume, 2013; 2. edição, 2016) e co-organizador de Junho: Potência das Ruas e das Redes (Fundação Friedrich Ebert, 2014) e Cartografias da Emergência: Novas Lutas no Brasil (FES, 2015), em artigo publicado por Outras Palavras, 24-09-2020.
Este texto faz parte do livro Ofensivas – a potência do não retorno à normalidade, do cientista político e trabalhador da saúde (SUS) Paulo Spina, como posfácio, assinado pelo professor e militante Jean Tible. A publicação é o primeiro lançamento da série “Câmara Hermética” da GLAC edições, que conterá outros três livros que nasceram com a pandemia de covid-19, quais se caracterizam por fazerem proposições programáticas e imaginações políticas diante a múltipla crise provinda junto a doença. São eles: O vírus como filosofia | A filosofia como vírus – reflexões de emergência sobre a COVID-19, de Andityas Soares de Moura Costa Matos & Francis García Collado; À imaginação revolucionária – instantes de perigo e aberturas no presente pós-apocalíptico, organizado por Jonnefer Barbosa; e Mármore e Barbárie – história da experiência das epidemias no Brasil, de Cláudio Medeiros.
Em meio à nossa época de múltiplas crises conjugadas (econômica, política, sanitária, climática, existencial), o pesquisador, militante e trabalhador da saúde Paulo Spina nos desafia, com sua intervenção, a imaginar-realizar práticas de libertação. Se nos espreita a atualização (distópica e tecnológica) da sinistra doutrina do choque,[1] Ofensivas nos convoca a ampliar as brechas que esse momento trágico pode abrir. O apocalipse, nas suas origens gregas, significa des-vendar, des-cobrir. O que nos revela a pandemia? A miséria das nossas relações sociais, com suas desigualdades aberrantes; a fraqueza das infraestruturas coletivas, fragilizadas pelas cruéis políticas de austeridade; as mentiras e autoritarismos dos governos[2] e, também, dois pontos de partida cruciais (para a compreensão e para a ação): o chão e a terra.
Uma fissura fundamental desses tempos pandêmicos: a irrupção e maior “visibilidade” da questão de classe (apesar dela ter estado sempre presente). Quem segurou a onda? Enfermeiras, cuidadoras e profissionais da saúde, condutores, lixeiros, coveiros, entregadores, caixas de supermercado, mães, avós, vizinhos e linhas e pontos de solidariedade e tantas trabalhadoras dos serviços essenciais e da logística da vida cotidiana. Cinco anos atrás, Judith Butler refletia sobre o momento político-econômico vivido sob o signo da precariedade, compreendendo-a como a “situação politicamente induzida na qual determinadas populações sofrem as consequências da deterioração de redes de apoio sociais e econômicas mais do que outras, e ficam diferencialmente expostas ao dano, à violência e à morte”. Nesse contexto, ela percebia uma “guerra contra a ideia de interdependência, contra (…) uma rede social de mãos que busca minimizar a impossibilidade de viver uma vida vivível”,[3] que se torna ainda mais aguçada hoje.
A potência do cuidado das profissões desprezadas, mal pagas, de pouco prestígio social, com péssimas condições de trabalho e empecilhos (ocasionados pelos poderes instituídos) para se reunir e inventar, ficou escancarada. David Graeber já apontava a mudança na classe trabalhadora estadunidense, onde a figura típica transitou do homem metalúrgico do cinturão de ferro para a mulher – enfermeira ou professora – por toda parte, dando um sentido mais forte à classe que cuida, que se importa, que sustenta a vida.[4] Poderia essa nova situação dar um fôlego às lutas nos locais de trabalho e de vida, com renovados modos de se organizar coletivamente?
Chão de fábrica, de ruas, vielas, bairros, aldeias que remetem a certas tradições revolucionárias e seu “tesouro perdido” na forma de criações políticas que brotam “em todas as revoluções genuínas ao longo dos séculos XIX e XX”[5] na forma de conselhos (operários), mas também comunas, comunidades, quilombos, assentamentos, retomadas, ocupações, coletivos artísticos e tantos espaços de encontros-vidas-lutas. Um elemento fundamental da imaginação política radical conecta-se à (re)ativação dessas práticas – a autogestão generalizada, “a posse direta dos trabalhadores sobre todos os momentos de suas atividades”.[6] Algo disso ocorreu no fim dos anos 1970 no Brasil – e ali abateu a ditadura militar –, com os laços entre levante operário, camponês e seringueiros, movimento negro emergente, movimentos das mulheres nas periferias e organização de alianças como a dos povos da floresta. Ou com as insurreições democráticas da última década, que buscavam e ainda buscam o revés da precariedade, ou seja, a constituição dessa interpendência – das infraestruturas da vida contra essas políticas da morte. E que procuram, também, uma reformação das redes de interdependência dos organismos vivos, bem como expressam uma noção e prática de habitar territórios.
Torna-se fundamental, nesse plano, traçar elos entre capitalismo e “natureza”. O novo coronavírus (e seus antecessores de 2003, as chamadas gripes aviária e a suína) foi “gestado no nexo entre a economia e a epidemiologia”, passando de animais para pessoas humanas. Esse “salto de uma espécie para outra é condicionado por questões como proximidade e regularidade do contato, que constroem o ambiente em que a doença é forçada a evoluir” e se alimenta da “panela de pressão evolutiva criada pela agricultura e urbanização capitalistas”.[7] O agronegócio, a agricultura industrial e suas monoculturas (de grãos e animais, mas também a monocultura existencial que expressam) constituem um meio ideal para seu desenvolvimento.
O tempo anterior, o Holoceno, “foi um longo período em que os refúgios, os locais de refúgio, ainda existiam, e eram até mesmo abundantes, sustentando a reformulação da rica diversidade cultural e biológica”. O debate contemporâneo a respeito de estarmos vivendo no Antropoceno, Capitaloceno ou Plantationceno reflete, assim, a “destruição de espaços-tempos de refúgio para as pessoas e outros seres”.[8] Na contramão dessa empobrecedora (e antes celebrada e chamada de) “revolução verde”, se situam os povos indígenas no Brasil, cuja ação foi e é decisiva para o “o enriquecimento da cobertura e dos solos da floresta”, mantendo “por conta própria, por gosto e tradição, as variedades em cultivo e observam as novidades”. Existem na Amazônia uma centena de variedades de mandioca e dezenas de batata-doce, favas e pimentas cultivadas pelos Kaiapó, Wajãpi, Baniwa e outros povos, que, “mais do que selecionadores de variedades de uma mesma espécie”, são, “de fato, colecionadores”[9].
O clássico do pensamento político Thomas Hobbes pensa a natureza (e as relações sociais) na chave da célebre frase o homem é o lobo do homem, ou seja, na chave da competição bruta e permanente[10]. Essa chave – que inspira posteriormente leituras equivocadas de Darwin (do chamado darwinismo social) – compõe uma falsa imagem dos lobos, que, na verdade, são gregários e cooperam entre si, distribuindo a caça para os mais frágeis da alcateia.[11] Tal concepção se traduz igualmente numa forma de fazer ciência, pensar, pesquisar e lutar.
A esse modelo de conhecimento hipermasculinizado e dominador da natureza, das mulheres e pessoas racializadas, se opõem Paulo e seu pensamento-ação, com sua aposta pela solidariedade transversal. Uma reflexão situada, a partir do seu trabalho e engajamento cotidianos num setor-chave para todas as pessoas: a saúde coletiva. O coronavírus traz uma sinistra revelação hobbesiana: o aumento das desigualdades combinado com mais autoritarismo; um aprofundamento ainda maior da guerra contra a população e da destruição do que nomeamos – equivocadamente – de natureza ou meio ambiente. Um outro caminho, espinosiano,[12] seria trilhar o sentido etimológico do termo catástrofe (fim súbito ou grande virada), mas agora em relação ao vírus chamado capitalismo – compreendendo esse sistema como a enfermidade mesma, causadora de adoecimento das pessoas. Quais medicinas, curas e cuidados conseguiremos resgatar e inventar?
Inúmeros povos, corpos dissidentes e seres vivos nos mostram e indicam caminhos. Os mesmos que foram tantas vezes, nos últimos séculos, colocados no campo da natureza e, assim, situados como descartáveis após o exercício da exploração. Esse predomínio do Homem sobre a Natureza põe em risco a vida humana, e sua sobrevivência depende agora de ouvir os antes considerados “não modernos”, cujos relatos sempre levaram em conta as atividades das vidas, humanas e não humanas. Muitas das vidas que estavam fora do estatuto de Homem impuseram sua presença pelas lutas, passando a ser imprescindíveis – e, agora que estamos nos livrando do Homem e da Natureza, os “entrelaçamentos interespécies que pareciam coisa de fábulas são agora material para debate sério entre biólogos e ecologistas, que mostram como a vida requer a interação de vários tipos de seres. Humanos não podem sobreviver pisoteando todos os outros”.[13]
Essa perspectiva atravessa, de distintas formas, os povos indígenas do continente americano e suas lutas contemporâneas, numa insurgência em curso que questiona e desloca as concepções políticas habituais (inclusive da chamada esquerda). Tal entendimento está presente na oposição Mapuche no contexto da disputa a respeito da extração de petróleo no campo de Vaca Muerta na Argentina, para quem seus territórios “não são ‘recursos’, mas vidas que fazem o Ixofijmogen do qual somos parte, e não proprietários”. E, igualmente, nas lutas camponesas no Istmo de Juchitán em Oaxaca, no México, que “rejeitaram a instalação de moinhos de vento que transformariam a relação entre ar, pássaros, água do oceano, peixes e pessoas”. Nazario Turpo, pampamisayoq (“especialista em rituais”) Quechua, diz à antropóloga peruana Marisol de la Cadena que Ausangate (uma montanha) não iria permitir a mina em Sinakara (outra montanha, situada no mesmo complexo) – despertaria sua ira e isso poderia matar pessoas. Para evitar essa fúria, seria prudente não mexer com ela, o que se reforça por conta das novas técnicas de extração que causam a destruição total das montanhas (quando antes eram traçados túneis que não as suprimiam).[14]
Nesses contextos não funcionam as distinções entre natureza e cultura, que fundam as compreensões predominantes de política (e ciência) e questionam o monopólio da ciência para definir o que é natureza e os entendimentos oficiais-estatais do que é política e o despem de sua pretensa universalidade. Planeta comum e mundos incomuns? Defesa do espaço sócio-natural e oposição à voracidade capitalista se articulam, mas também – e sobretudo – manifestam um modo de vida. De la Cadena traz as palavras de Leni, liderança AwajunWampi, que ao falar do rio diz estar se referindo aos “irmãos que matam nossa sede, que nos banham, que cuidam das nossas necessidades”. Por isso, “não usamos o rio como esgoto; um irmão não pode esfaquear outro irmão”. Daí sua oposição às empresas transnacionais que se “importam apenas em se beneficiar economicamente, em acumular fortuna. Não entendemos por que o governo quer arriscar nossa vida com esses decretos”. Tais vidas-lutas explicam a força e contundência do enfrentamento a esses enormes projetos de infraestrutura que destroem sítios sagrados, mundos, formas de vida – e se expressam, de diversos modos, em vários povos ameríndios, operando do norte ao extremo sul do continente passando por praticamente todos os países (Standing Rock contra o Dakota Access Pipeline nos EUA, o acampamento Unist’ot’en no Canadá, Belo Monte no Brasil, Yasuní no Equador, além dos exemplos citados acima e muitos outros que podem compor um longo levantamento). Fios que se conectam, mas sempre remetem a situações locais particulares, essas narrativas expõem, em diferentes registros, uma política que envolve “não apenas um rio, também uma pessoa; não apenas água universal, também água local; não apenas montanhas, também seres da terra; não só terra, também Ixofijmogen”.[15]
Terra comum habitada contra a propriedade privada, apropriação, expropriação e exploração capitalistas. Confronto entre mundos. A busca do controle e da disciplina dos corpos coletivos, a perseguição dos saberes e práticas expressam o combate a essas relações – o capitalismo sendo, assim, compreendido como destruição de mundos, como parte de uma longa guerra colonial ininterrupta nas Américas, à qual se contrapõe um anti-capitalismo com fertilidade cósmica. Isso envolve uma outra concepção de pensamento e de prática política. Davi Kopenawa define os espíritos xapiri como “um tipo de médico: trabalhando, curando e espantando espírito mau. Também chamando a riqueza da terra. O povo precisa da riqueza da terra: caça, peixe, chuva, verão…”[16]
Haveria, assim, um confronto antigo entre hierarquias e suas subversões e, como dito pelo Indigenous Action, o “colonialismo é uma praga” e o “capitalismo é uma pandemia” frente aos quais “nós somos os anticorpos”.[17] Como? Pelas ações de apoio mútuo e cuidado-cura contra o capitalismo tóxico que se alia ao espírito Xawari da epidemia – como o chamam os Yanomami. Desde a floresta viva, as retomadas de terra, as danças dos corpos terrenos e celestes, os ritos, atos e protestos, as sublevações e insurreições, pequenas e grandes, os encontros e lutas na biosfera, irrompem novos materialismos. Tudo está conectado, desde as bactérias – “nossos ancestrais”, que indicam “o verdadeiro continuum da vida sobre a Terra” e sem as quais não estaríamos aqui, nem mesmo nossa “primeira célula”[18] – até os espíritos que, em todos os tempos e espaços, lutam-cuidam.
Como indica Paulo, isso envolve e implica numa transformação radical-existencial que faz lembrar uma famosa frase dos parceiros Marx e Engels: “na atividade revolucionária, o transformar a si mesmo coincide com o transformar as circunstâncias”.[19] Contra as pandemias (coloniais, capitalistas, extrativistas, racistas, machistas, etnocidas…), novas alianças entre espécies, associação de redes das existências e internacionalismo intergaláctico. Vida selvagem.
[1] Naomi Klein, “Coronavírus pode construir uma distopia tecnológica”, em The Intercept Brasil, 13.mai.2020. Disponível aqui.
[2] Esses pontos estão mais desenvolvidos no meu texto, “apocalipse e/é revelação”, em Quarentena Times #2 – jornal da pandemia da Autonomia Literária (São Paulo, Autonomia Literária, 2020).
[3] Judith Butler,Corpos em aliança e a política das ruas: notas para uma teoria performativa de assembleia [2015], trad. Fernanda S. Miguens (Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 2018), p. 40; 76.
[4] David Graeber, Um projeto de democracia: uma história, uma crise, um movimento [2013], trad. Ana Beatriz Teixeira (São Paulo, Paz e Terra, 2015); e David Graeber, “Caring too much. That’s the curse of the working classes”, em The Guardian, 26.mar.2014. Disponível aqui.
[5] Hannah Arendt, Sobre a Revolução [1963], trad. Denise Bottmann (São Paulo, Companhia das Letras, 2013), p. 313.
[6] Guy Debord, La société du spectacle (Paris, Gallimard, 1967), p. 47.
[7] Coletivo Chuang, Contágio social: coronavírus e luta de classes microbiológica na China (São Paulo, Veneta, 2020), p. 23.
[8] Donna Haraway, “Antropoceno, Capitaloceno, Plantationoceno, Chthuluceno: fazendo parentes”, em ClimaCom, ano 3, n.5, “Vulnerabilidade”, 2016.
[9] Manuela Carneiro da Cunha, “Povos da megadiversidade: o que mudou na política indigenista no último meio século”, em Revista Piauí, n. 148, jan. 2019.
[10] Ver Thomas Hobbes, Leviathan or The Matter, Forme and Power of a Common-Wealth Ecclesiasticall and Civil [1651], ed. e trad. Ian Schapiro (New Haven, Yale University Press, 2010); ed. bras.: Leviatã, trad. João P. Monteiro e Maria B. N. Silva (São Paulo, Martins Fontes, 2003).
[11] Ver Frans de Waal, Eu, primata: por que somos o que somos, trad. Laura Motta (São Paulo, Companhia das Letras, 2005).
[12] Ver Espinosa, Tratado Político [1677], trad. Diogo Pires Aurélio (São Paulo, Martins Fontes, 2009).
[13] Anna Lowenhaupt Tsing, The mushroom at the end of the world: on the possibility of life in capitalist ruins (Princeton University Press, 2015), p. vii.
[14] Marisol de la Cadena, “Indigenous cosmopolitics in the Andes: conceptual reflections beyond “Politics”, em Cultural Anthropology, v. 25, Issue 2, 2010, pp. 346.
[15] Marisol de la Cadena, “Natureza incomum: histórias do antropo-cego”, em Revista do Instituto de Estudos Brasileiros, Brasil, n. 69, abr. 2018, p. 106-108; 97-98; 111.
[16] Davi Kopenawa, “Fala, Kopenawa! Sem floresta não tem história (Entrevista a Carlos M. Dias Jr. e Stelio Marras”, em Mana 25(1): 236-252, 2019, p. 240.
[17] Indigenous Action, “Repensando o apocalipse: um manifesto anti-futurista indígena”, trad. Amauri Gonzo, em Blog da GLAC edições, 2020, disponível aqui.
[18] Anônimo, “Monólogo do vírus”, em lundimatin, 16.mai.2020, disponível aqui.
[19] Karl Marx e Friedrich Engels, A Ideologia Alemã [1845-1846], trad. Rubens Enderle e outros (São Paulo, Boitempo, 2007), p. 209.
FECHAR
Comunique à redação erros de português, de informação ou técnicos encontrados nesta página:
Chão e terra: pontos de partida para o pós-apocalipse - Instituto Humanitas Unisinos - IHU