20 Agosto 2020
“Rejeitar e resistir ao capitalismo corporativo e predatório não é loucura, é uma postura eminentemente sadia. Agarrarmos à nossa humanidade não é loucura, defender a democracia não é loucura e lutar por um futuro sustentável não é loucura”, escreve Robert Jensen, escritor, jornalista e professor de jornalismo na Universidade do Texas e na Escola de Comunicações de Austin, em artigo publicado por El Salto, 08-08-2020. A tradução é do Cepat.
Para Jensen, “loucura é engolir a história de que um sistema desumano, antidemocrático e insustentável - esse mesmo que deixa metade da população mundial imersa na pobreza abjeta - é o único que existe, o único que pode haver, e o único que haverá”.
Sabemos que o capitalismo não é apenas a forma mais sensata de organizar uma economia, mas que agora, também, é a única opção possível. Sabemos que quem não concorda com esta convenção pode e deve ser ignorado. Já nem mais é preciso perseguir esses hereges, claramente, são insignificantes.
Como sabemos de tudo isso? Porque nos contam, sem trégua, aqueles que muitas vezes têm muito a ganhar com essas afirmações, especialmente os empresários e seu grupo de funcionários e apologistas em escolas, universidades, meios de comunicação de massa e na política em geral. O capitalismo não é uma opção, é simplesmente um estado natural. Talvez não um estado natural, mas o estado natural. Hoje em dia, opor-se ao capitalismo é como opor-se ao ar que respiramos. Derrotar o capitalismo, dizem-nos, é simples e claramente uma loucura.
Repetidamente, contam-nos que o capitalismo não é apenas o sistema que temos, mas o único sistema que podemos ter. No entanto, essas frases contêm algo que assusta muitos de nós. Esta é realmente a única opção? Dizem-nos que nem sequer devemos pensar nessas coisas. Mas não podemos deixar de pensar: será este o “fim da História”, no sentido em que os grandes pensadores se referem à vitória definitiva do capitalismo mundial? Se este é o fim da história nesse sentido, cabe perguntar-se se o verdadeiro fim do planeta está muito longe.
Essas dúvidas nos assaltam, nos abalam, nos incomodam, e com toda a razão. O capitalismo (ou, de maneira mais precisa, o capitalismo corporativo e predatório que define e domina nossas vidas) acabará com nós, se não escaparmos dele. Para as políticas progressistas, é fundamental encontrar uma linguagem que articule essa realidade, não apelando a um dogma ultrapassado e estrangeiro, mas com palavras simples que permitam às pessoas se identificar com elas. Deveríamos procurar maneiras de explicar aos nossos colegas, junto à máquina de café (uma política radical em cinco minutos ou menos), por qual razão devemos abandonar o capitalismo corporativo e predatório. Se não conseguirmos, estaremos diante do fim da civilização, um fim que trará mais tormento do que êxtase.
Aqui, segue minha proposta de linguagem para esses argumentos:
Está claro que o capitalismo é um sistema incrivelmente produtivo que criou uma avalanche de bens sem precedentes neste mundo. Também é um sistema fundamentalmente 1. desumano, 2. antidemocrático e 3. insustentável. O capitalismo deu muitas coisas para nós que vivemos no Primeiro Mundo (muitas delas de valor marginal e questionável) em troca de nossas almas, nossa esperança na política progressista e a possibilidade de nossos filhos terem um futuro decente.
Em resumo, ou mudamos ou morremos política, espiritual e literalmente.
Existe uma teoria que respalda o capitalismo contemporâneo. Dizem-nos que, como somos animais egoístas e interessados, um sistema econômico deve recompensar comportamentos egoístas e interessados para ter êxito.
Somos egoístas e interessados? Claro. Ao menos, às vezes, sou assim. Mas também somos capazes de ser empáticos e desinteressados de uma maneira igualmente evidente. Claro que podemos agir de forma competitiva e agressiva, mas também temos a capacidade de mostrar solidariedade e tender à cooperação. Em última análise, a natureza humana é ampla. Claro que nossas ações estão enraizadas em nossa natureza, mas, pelo que sabemos, esta última tem muitas variações. Em situações em que a empatia e a solidariedade são a norma, agimos de acordo, em situações em que a competitividade e a agressividade são recompensadas, a maioria tende a se comportar assim.
Por que temos que escolher um sistema econômico que menospreza os aspectos mais valiosos de nossa natureza e reforça os mais desumanos? Porque nos falam que as pessoas são assim e não há mais o que falar. Qual é a evidência disto? Olhe ao seu redor, dizem-nos, veja como as pessoas se comportam. Para onde quer que olhemos, veremos ganância e interesses egoístas. Uau, então a prova de que predominam traços egoístas em nossa natureza é que quando somos forçados a viver em um sistema que recompensa o egoísmo, as pessoas agem dessa forma. Não parece um raciocínio ligeiramente circular?
Esta é simples: o capitalismo é um sistema que concentra riqueza. Se a riqueza de uma sociedade está concentrada, o poder está concentrado. Existe um exemplo na história que prova o contrário?
Apesar de todos os gestos de democracia formal nos Estados Unidos de hoje, todo mundo entende que são os ricos que definem amplamente as linhas de políticas públicas que a vasta maioria dos governantes eleitos está disposta a aceitar. O povo pode resistir e age assim. De vez em quando, algum político se junta a seu bando, no entanto, a resistência requer um esforço extraordinário. Aqueles que resistem alcançam vitórias, algumas animadoras, mas hoje a riqueza concentrada continua dando as cartas. Que forma é esta de conduzir uma democracia?
Se entendermos que a democracia é um sistema que oferece ao cidadão comum uma forma de participar de forma significativa na formulação das políticas públicas, ao invés de lhe oferecer meramente o papel de ratificar as decisões tomadas pelos poderosos, então fica claro que o capitalismo e democracia se excluem mutuamente.
Vejamos um exemplo. Em nosso sistema, acreditamos que a regra de uma pessoa, um voto, aliada à proteção da liberdade de expressão e associação, é o que garante a igualdade em termos políticos. Quando vou às urnas, tenho um voto. Quando Bill Gates vai às urnas, tem um voto. Tanto Bill como eu podemos falar livremente e nos associar a outras pessoas por razões políticas. Então, como cidadãos iguais em nossa maravilhosa democracia, Bill e eu temos as mesmas oportunidades de acesso ao poder político, está certo?
Isso é ainda mais fácil. O capitalismo é um sistema baseado na ideia de crescimento ilimitado. Pelo que sei, este planeta tem limites. Existem apenas duas maneiras de sair deste atoleiro. Talvez, logo, damos o salto para outro planeta. Ou, talvez, porque precisamos encontrar maneiras de lidar com esses limites físicos, inventaremos tecnologias cada vez mais complexas para superar esses limites.
As duas posições são igualmente enganosas. As enganações podem nos consolar temporariamente, mas não servem para resolver os problemas. De fato, tendem a causar mais problemas, problemas que parecem que vão se acumulando.
É claro, o capitalismo não é o único sistema insustentável traçado pela humanidade, mas é o mais óbvio, e é o sistema no qual estamos presos. É o sistema que nos dizem que é natural e inevitável, como o próprio ar.
A ex-primeira-ministra do Reino Unido, Margaret Thatcher, respondia com esta conhecida fórmula, quando questionada sobre os desafios do capitalismo: TINA (There Is No Alternative, “não há alternativa”). Se não há alternativa, quem se atreve a questionar o capitalismo está louco.
Aqui, temos outra sigla, mais comum, que ilustra a vida sob o capitalismo corporativo e predatório: TGIF (Thank God It’s Friday, “graças a Deus, é sexta-feira”). Essa frase se refere a uma triste realidade sofrida por muitos dos trabalhadores desta economia. Os empregos que desempenhamos não nos preenchem, não gostamos e, na realidade, não valem a pena serem realizados, são coisas que fazemos para sobreviver. Depois, na sexta-feira, saímos para nos embebedar para esquecer aquela realidade, na esperança de encontrar algo no fim de semana que nos permita levantar e voltar à rotina na segunda-feira.
Lembrem-se, um sistema econômico não produz apenas bens, também produz pessoas. Nossas experiências de trabalho nos afetam. Nossas experiências de consumo com esses bens nos afetam. Estamos cada vez mais nos tornando uma nação de pessoas infelizes, que consomem corredores quilométricos de bens de consumo baratos na esperança de aliviar a dor do trabalho estúpido. É isso que queremos ser?
Dizem-nos que não há alternativa neste mundo que segue de sextas em sextas. Não é um pouco estranho? Verdadeiramente, não há alternativa neste mundo? Claro que existe. Para qualquer coisa que seja fruto das decisões humanas, podem ser tomadas outras diferentes. Não é necessário projetar um novo sistema até o último detalhe para perceber que sempre há alternativas. Podemos fortalecer as instituições existentes que oferecem um refúgio de resistência (por exemplo, os sindicatos) e experimentar novos formatos (como as cooperativas locais). Mas o primeiro passo é chamar o sistema pelo seu nome, sem garantias do que está por vir.
No primeiro mundo, lutamos contra essa alienação e contra o medo. Frequentemente, não gostamos dos valores do mundo ao nosso redor, não gostamos das pessoas que nos tornamos e temos medo do que o futuro reserva para nós. No entanto, no primeiro mundo, a maioria de nós faz várias refeições por dia. Este não é o caso em todos os lugares. Vamos avançar além das condições que enfrentamos em um sistema capitalista corporativo e predatório, se vivemos no país mais rico da história do mundo, vamos extrapolar isso para o contexto global.
Metade da população mundial vive com menos de 2 dólares por dia, o que significa mais de 3 bilhões de pessoas. Mais da metade da África Subsaariana vive com menos de 1 dólar por dia, ou seja, mais de 300 milhões de pessoas.
Aqui está outra estatística: cerca de 500 crianças morrem na África de doenças relacionadas à pobreza. A maioria dessas mortes poderia ser evitadas com medicamentos simples e mosquiteiros impregnados com inseticida. São 500 crianças não por ano, não por mês e não por semana. Não são 500 crianças por dia. As doenças relacionadas à pobreza ceifam a vida de 500 crianças na África a cada hora.
Quando tentamos nos apegar a nossa humanidade, estatísticas como essas podem nos deixar loucos. Mas que você não pense em nenhuma loucura para mudar este sistema, lembre-se da TINA: não há alternativa ao capitalismo corporativo e predatório.
Estamos nos reunindo no grupo Last Sunday [1] para fazer loucuras juntos. Nós nos reunimos para dar voz às coisas que conhecemos e sentimos, embora a cultura dominante nos diga que acreditar e sentir essas coisas é loucura. Talvez sejamos todos um pouco malucos aqui, então, vamos nos assegurar que somos realistas. Ser realista é importante.
Uma das respostas que mais ouço quando critico o capitalismo é: "bem, tudo isso pode ser verdade, mas temos que ser realistas e fazer o que está ao nosso alcance". Seguindo esse raciocínio, ser realista implica aceitar um sistema que é desumano, não democrático e insustentável. Para sermos realistas, somos informados de que devemos nos render a um sistema que rouba nossas almas, que nos torna escravos do poder concentrado e que um dia destruirá o planeta.
Mas rejeitar e resistir ao capitalismo corporativo e predatório não é loucura, é uma postura eminentemente sadia. Agarrarmos à nossa humanidade não é loucura, defender a democracia não é loucura e lutar por um futuro sustentável não é loucura.
O que é uma loucura é engolir a história de que um sistema desumano, antidemocrático e insustentável - esse mesmo que deixa metade da população mundial imersa na pobreza abjeta - é o único que existe, o único que pode haver, e o único que haverá.
Se isso fosse verdade, então logo não restaria nada. Para ninguém.
Não acredito que seja realista aceitar esse destino. Se isso é ser realista, prefiro ficar louco todos os dias da semana, todos os domingos do mês.
[1] N. T: Um movimento que se reunia em Austin, Texas, no último domingo de cada mês e do qual Robert Jensen fazia parte.
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O anticapitalismo em 5 minutos - Instituto Humanitas Unisinos - IHU