19 Setembro 2020
“A sociedade neoliberal, com seus consensos espontâneos e seu apego a tradições não questionadas, com sua desvalorização da política e da busca da verdade, com seu Estado que oscila entre a necessidade de proteger o rebanho e a aceitação de certos sacrifícios de vidas em favor da economia, é incompatível com a ilustração geral que a ciência necessita e é fonte de um renovado obscurantismo”, escreve Juan Domingo Sánchez Estop, filósofo, em artigo publicado por El Diario, 11-09-2020. A tradução é do Cepat.
Hoje, no debate público, estamos assistindo, tanto nos meios de comunicação, como no discurso político ou nas redes sociais, uma crescente convergência do discurso que assume a ciência como referência e o medo.
Por um lado, a epidemia de coronavírus mobilizou a atividade de pesquisa científica, a curiosidade pública diante de um fenômeno inquietante e a comunicação política destinada a gerir a expansão social da doença. O trabalho dos cientistas foi se realizando conforme os protocolos habituais, marcado pelo ritmo da observação, a formulação de hipóteses e as comprovações experimentais.
Por seu lado, a curiosidade pública buscava e busca explicações que deem algo de coerência a uma situação caótica, mas também pode abrir a oportunidade para que se atenda a discursos que causam admiração ou espanto.
A comunicação política tem procurado se basear nas referências do trabalho dos cientistas, ao mesmo tempo em que reserva a possibilidade, mediante a apresentação dos dados, de modular o clima afetivo da sociedade, gerindo medos e esperanças para produzir obediência às consignas dos governos.
A atuação dos meios de comunicação, durante a crise atual, parece consistir em ampliar o discurso do poder político ou em se opor a ele em nome de outras posturas que geram seus próprios medos e suas próprias esperanças e, por conseguinte, suas próprias formas de obediência.
A necessária discrição e austeridade do trabalho científico pode, às vezes, contrastar com as tomadas de posição públicas dos cientistas, nas quais não é tanto a ciência – uma prática baseada em métodos e protocolos rigorosos –, mas a ideologia do cientista que chega ao público. A responsabilidade pública do político que gere a pandemia, a partir de instâncias de governos, por sua vez, se vê determinada por seus vieses ideológicos e por sua vontade de se manter no poder. Poucas vezes, apresentou-se melhor oportunidade aos governos de reforçar seu comando como a atual, pois hoje é possível impor, em nome da luta contra uma pandemia mortífera, ou apresentada como tal, praticamente qualquer medida.
No entanto, a imagem de poder total que os governos oferecem hoje deve ser ponderada, pois estes governos não apenas sãos os zelosos guardiões da saúde pública, como também aqueles que devem velar pelo bom andamento da economia e oferecer aos mercados financeiros internacionais uma imagem de solvência do país.
Os imperativos sanitário e econômico parecem em boa medida contraditórios, o que introduz certa cacofonia na comunicação pública governamental. Daí que o vírus, conforme o momento e as pressões às quais os governos estão submetidos, ora seja um monstro perigoso capaz de gerar gravíssimas implicações ou inclusive matar pessoas ou, então, um patógeno muito mais benigno, ora muito contagioso ou então apenas transmissível em circunstâncias muito precisas.
Quando se trata de mobilizar a população para que retorne a seus postos de trabalho e use massivamente o transporte público, o perigo se minimiza, mas quando é o caso de continuar impondo medidas restritivas da vida social fora do trabalho e da escola, o vírus mostra o seu rosto mais temível. Sendo assim, parece que vírus tem grande paixão por bares e danceterias e pouco interesse por locais de trabalho.
O vírus se apresenta a nós, para além dessa característica jocosa, como uma realidade versátil. A Covid-19 está, desde o início da epidemia, associada a diversas espécies de animais exóticos (o pangolim) e um pouco sinistros (o morcego) que teriam transmitido o vírus aos humanos por caminhos ainda não muito determinados, atravessando a barreira interespécies. Isto é algo que, nas últimas décadas, parece estar se repetindo, do HIV ao Ebola.
No entanto, o que caracteriza a Covid-19 – se é que isto pode ser considerado uma característica – é o seu catálogo de sintomas, digno de um Don Giovanni dos patógenos, um catálogo que superas as famosas “mil e três” conquistas do personagem de Da Ponte-Mozart e é capaz de produzir quase todos os tipos de implicações, como uma panaceia ao inverso.
Disseram que produzia graves patologias respiratórias e parece ser, com efeito, a pneumonia a causa da morte de muitas pessoas que adoecem com a Covid-19, mas a gama de sintomas não para por aí, parece se ampliar às frieiras, dores intestinais, lesões no fígado e pâncreas, danos cerebrais e do sistema nervoso em geral, perda do olfato e do apetite, depressão e um longo etc.
O corpo inteiro e, aparentemente, também a mente parecem expostos a esta força do Mal sumamente plástica. Além disso, este vírus deixaria, mesmo após a cura do paciente, perigosas e persistentes sequelas, que afetariam as mais variadas funções orgânicas. Dá a impressão de que se o que se deseja é provar a periculosidade do vírus, está sendo muito provada...
Um dos princípios do racionalismo básico que inspira as ciências e a filosofia na era moderna é que uma causa produz uma série de efeitos determinada. A natureza é uma rede infinita de causas, mas cada uma das causas é uma causa finita que, como tal, produz efeitos finitos e delimitados. Quando parece produzir efeitos que vão além dos que cabe lhe atribuir, costuma obedecer a que esta causa esteja associada a outra que também pode ser determinada.
No caso em questão, parece que a Covid-19 tem prevalentemente efeitos sobre o sistema respiratório, mas atinge também, de maneira preferencial, pessoas com outras patologias prévias, como doentes crônicos e idosos com patologias graves. É disso que muito provável provenha uma parte da enorme multidão de sintomas que se atribui ao coronavírus e não de uma capacidade essencial deste para produzir todos os tipos de implicações e de sintomas que afetam, conforme os casos, uma ou outra parte do corpo humano.
É muito provável que a observação clínica tenha lançado quadros sumamente diversos entre os doentes da Covid-19, mas isto não significa que todos estes males devam ser associados apenas a um vírus. Se um determinado sintoma, como as frieiras, aparece em pessoas com um resultado positivo nos testes PCR, isso não significa, enquanto não for provado o mecanismo pelo qual estes efeitos são produzidos, que deva se associar ao coronavírus. O mesmo cabe afirmar de quase todos os outros sintomas.
Não basta a observação para estabelecer uma relação causal estável entre o suposto patógeno e seu suposto sintoma. É necessário percorrer um longo processo descrito há um século e meio por Claude Bernard, no qual se conta com a observação, a formulação de hipóteses, a experimentação e as conclusões que confirmam ou invalidam as hipóteses. Isso requer tempo, mas fornece resultados verificáveis e “verdadeiros”, dentro das condições estabelecidas pelos protocolos de experimentação e, portanto, revisáveis em função de outros parâmetros.
Não existe nada nesse método experimental a não ser um processo infinito de trabalho racional que determina relações verificáveis dentro da natureza, nunca uma atribuição essencial e definitiva de uma causalidade determinada a um elemento da realidade. Daí que seja absurda e profundamente anticientífica a atribuição a este elemento de inúmeras patologias. Isto, sem dúvida, pode ser feito, mas nunca em nome da ciência e de seus métodos, mas dentro de procedimentos retóricos de amálgama das causas e relações características da magia, que submete as relações internas à natureza, a uma sobredeterminação infinita, sem controle experimental.
Deste modo, um taumaturgo pode curar os leprosos, ressuscitar os mortos ou converter a água em vinho ou transformar uma vara em uma serpente... Igualmente, um determinado mineral pode estar relacionado em sua natureza e em suas virtudes com uma erva, uma estrela, um estado de ânimo, etc... Estes mesmos princípios do razoamento mágico, utilizados de maneira deliberada, serviram para modificar o pensamento e a conduta das multidões por meio da propaganda.
Assim nos conta Bernays, em sua obra clássica “Propaganda”, como o consumo de cigarros foi associado, nos anos 1970, a um novo papel social das mulheres e inclusive a certos benefícios para a saúde..., referendados por painéis de médicos. Vimos também como a propaganda de guerra inventa armas de destruição em massa nas mãos de déspotas arruinados ou multiplica a fábula de terror das crianças retiradas dos berços das maternidades e esfaqueadas. Fábula que foi utilizada na Bélgica, durante a Primeira Guerra Mundial, para desacreditar alguns alemães identificados com os Hunos e contra as tropas de Saddam Hussein, por ocasião da invasão iraquiana ao Kuwait.
Em todos esses casos, trata-se de associar essencialmente com a figura do inimigo traços malignos de todos os tipos, sem que seja necessário para isso apresentar a mínima prova. Do que um inimigo não será capaz! A justificativa destas afirmações é sempre circular: como X é mau, X efetua por essência toda espécie de atos malvados! Substitua X pela Covi-19 ou por Saddam Hussein ou Soros, conforme convenha. Trata-se de elaborar retoricamente, por procedimentos muito conhecidos de substituição e condensação, uma causa de medo tão indefinida em sua relação com seus supostos efeitos, como for possível.
A Covid-19 é hoje um monstro e, em primeiro lugar, um monstro epistemológico que atende não tanto ao saber científico que vai sendo elaborado a esse respeito, mas à comunicação de governos e meios de comunicação sobre a pandemia. Esta comunicação assume como base de autoridade a ciência, mas, na realidade, consiste em uma exploração regressiva e precipitada de resultados parciais do procedimento científico: a observações clínicas, mais do que conclusões. Desta maneira, torna-se a Covid-19 um monstro versátil e universalmente temível.
Não é necessário insistir, depois de Hobbes, na utilidade que tem para os governos - inclusive para o núcleo mais sólido dos Estados – a troca de proteção por obediência. A proteção diante das ameaças, inclusive, ou sobretudo, a ameaça que supõem seus próprios congêneres para o indivíduo humano proprietário é a principal justificativa da obediência ao Estado e, por conseguinte, da existência deste como realidade separada da sociedade. Um inimigo universal e sem contornos como a Covid-19, nomeado como tal inimigo por um soberano que diz estar “em guerra” contra ele, permite ao Estado se apresentar como protetor na situação de extrema necessidade que a pandemia supõe.
Daí que o Estado se incline a agigantar as consequências do vírus, em vez de se ater com a devida prudência à simples observação dos dados. Assim, o uso interessado da estatística é o complemento indispensável da transformação do vírus em monstro. Desse modo, baseando-se em projeções arbitrárias a partir de números de contágios muito pouco confiáveis, agigantou-se, em um primeiro momento, a letalidade do vírus. Hoje, quando essa letalidade não pode ser confirmada, após as medidas de confinamento, afirma-se que sem o confinamento teriam morrido centenas de milhões de pessoas ou até mesmo milhões em nossos países.
Graças a que agora que se têm números de contágios mais confiáveis e em forte alta, sustenta-se, contra toda a evidência, que existe uma correlação direta entre número de contágios e número de doentes e mortos. Isso quando os números de contágios não param de crescer e as hospitalizações e falecimentos se mantêm a níveis comparativamente muito mais baixos. Diante da incongruência, o crente no coronavírus como força maligna se justificará dizendo que se essa correlação direta não acontece hoje, nada impede que ocorra amanhã... Assim, o crente favorece sua macabra esperança de que a causa do medo se perpetue ou até mesmo se amplie.
Diante desta situação, é possível dizer que não saímos da admiração ou até mesmo da estupefação frente ao poder terrível que se confere ao vírus. Uma estupefação que não é mais produto do conhecimento científico, que tende a dissolver os fantasmas de nossa imaginação em um conjunto de relações naturais, mas de um dispositivo de verdade específico do neoliberalismo.
Não nos enganemos, não estamos diante de nenhum tipo de conspiração que pretenda nos enganar, mas diante de um mecanismo interno ao regime neoliberal que foi descrito, há décadas, por Friedrich von Hayek, em seu livro “A Constituição da liberdade” (1960), uma obra importante que constitui um autêntico manifesto político e epistemológico do neoliberalismo.
Nesse texto, Hayek afirma que a capacidade intelectual humana é limitada e incapaz de abarcar a multidão de fatores que intervêm no funcionamento de uma sociedade e uma economia. Por isso, deve se evitar que a economia se baseie na planificação e no comando, pois estes pressupõem um conhecimento suficiente da realidade por parte do planejador, conhecimento que simplesmente não está a seu alcance. Só o livre jogo espontâneo de atores econômicos e sociais livres permitiu historicamente o progresso social e econômico. Este jogo espontâneo se manifesta, em primeiro lugar, no mercado, lugar no qual se gera, para além da consciência e a vontade de qualquer um dos agentes, um consenso sobre o preço das mercadorias.
Além disso, existem outras realidades surgidas desta ordem espontânea, como as instituições “tradicionais” que foram se consolidando, ao longo dos séculos, sem apelar à consciência, nem à vontade de qualquer engenheiro social consciente: a família, as igrejas, as comunidades étnicas, etc., que são manifestações desta ordem espontânea. Inclusive o próprio Estado, na medida em que se limita a proteger esta “ordem espontânea”.
No terreno da verdade, esta lógica da espontaneidade também aplicável, pois o que determina o funcionamento de uma sociedade e uma economia não é um conhecimento verdadeiro possuído pelo dirigente, mas uma “convenção”, um consenso espontâneo sobre o valor das mercadorias ou das instituições, como também sobre o próprio valor da verdade dos enunciados. Sendo assim, esta convenção pode ter em cada um dos indivíduos motivações de todos os tipos, entre as quais não prevalece o cálculo racional, mas, sim, os afetos dos agentes e a esperança e o medo de cada agente a respeito do comportamento dos outros. Comportamento de rebanho.
O valor de uma ação no mercado não depende de considerações objetivas como a produtividade ou rentabilidade de uma empresa, mas de um consenso sobre o valor presente e futuro dessa ação. Esse consenso se baseia em um conjunto de apreciações dos diferentes agentes, que às vezes convergem e outras vezes se opõem em uma permanente e instável flutuação.
Esta lógica da “convenção” espontânea domina hoje todo o campo discursivo e se torna visível nos discursos sobre a Covid-19, que oscilam entre um forte consenso sobre a sua periculosidade e um consenso não menos forte sobre a sua inocuidade, gerando-se também consensos parciais ampliados por meios de comunicação e governos sobre seus sintomas, sequelas, etc.
Tudo isso sem que o trabalho dos cientistas possa influenciar de maneira efetiva sobre a opinião, pois no melhor dos casos este trabalho é utilizado de modo enviesado, ainda que na maioria das vezes simplesmente é ignorado ou deformado, gerando assim um consenso sobre o patógeno como monstro ou consensos alternativos sobre a inexistência ou a inocuidade do patógeno real ou sobre supostas conspirações.
Não considero que se deve colocar em dúvida a necessidade de prudência diante da pandemia, mas seria bom que esta prudência fosse guiada pela razão e se baseasse em informação contrastada, em vez de ser orientada por um consenso aterrador. No momento, ignora-se muito sobre este fenômeno e restam muitos elementos a ser investigados. Esta ignorância não deve, no entanto, se tornar argumento, não deve criar monstros a partir de uma falta de conhecimento.
Nem a vontade de Deus, nem a do sujeito humano e nem a maldade intrínseca de um vírus servem como explicação. Um monstro não é senão uma entificação de nossa ignorância e de nossa néscia admiração diante do desconhecido. A razão nos permite nos libertar dessa néscia admiração, colocando as coisas em seu lugar, ou seja, na trama de relações que constitui a natureza. Libertando-nos dessa admiração, também podemos nos libertar da ignorância por meio da produção coletiva de conhecimento, na qual o trabalho da ciência tem um papel relevante, pois a ciência só pode se desenvolver em uma sociedade com um mínimo de ilustração e capacidade crítica.
A sociedade neoliberal, com seus consensos “espontâneos” e seu apego a tradições não questionadas, com sua desvalorização da política e da busca da verdade, com seu Estado que oscila entre a necessidade de proteger o rebanho e a aceitação de certos sacrifícios de vidas em favor da economia, é incompatível com a ilustração geral que a ciência necessita e é fonte de um renovado obscurantismo. Um obscurantismo que se manifesta tanto naqueles que atribuem ao vírus um ilimitado poder maligno, como entre aqueles que consideram que o próprio vírus é o produto – real ou imaginário – de uma obscura conspiração.
Se não conseguirmos estabelecer entre todos as condições de uma emancipação moral, política e intelectual, de uma nova ilustração, continuaremos à mercê de algumas convenções cada vez mais distantes da realidade, que nos impedem de ver os riscos reais e nos ocultam as possibilidades de ação efetiva.
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Entre a verdade e o relato: Covid-19, terror e epistemologia neoliberal - Instituto Humanitas Unisinos - IHU