20 Mai 2020
"Inúmeros governantes, ao redor do mundo, não deveriam mais dormir tão profundamente. No curso da história, as revoltas e revoluções são produzidas por muito menos", escreve a socióloga franco-israelense Eva Illouz, em artigo publicado por Le Nouvel Observateur, 11-05-2020. A tradução é de Fagner França e a revisão é de Edgard Carvalho.
Enquanto escrevia “Eichmann em Jerusalém” (1963), Hannah Arendt utilizou um método de análise que podemos qualificar de “anti-histórico”: ela recusava compreender o presente com analogias tiradas do passado; ela rejeitava a utilização de antigas categorias filosóficas para dar sentido a algo inteiramente novo. O livro era um questionamento que jamais a abandonou até sua morte: como julgar o presente? Suas reflexões a levaram a subscrever a afirmação de Tocqueville segundo a qual, em tempos de crise, “o espírito caminha nas trevas”. A crise do coronavirus é sem precedentes em muitos sentidos, mas podemos desde já aprender algumas lições “a partir das trevas”.
4,6 bilhões de habitantes do planeta renunciaram voluntariamente a sua mobilidade, seu trabalho e sua vida social, sem muitos protestos. Estes bilhões de pessoas abandonaram de bom grado os aspectos mais fundamentais de sua liberdade, enquanto faltam ainda, de fato, informações-chaves (por exemplo, quantos indivíduos estão realmente contaminados e qual a porcentagem real de mortos). Eles estão confinados em seus domicílios (supondo que tenham um), confirmando a assertiva de Thomas Hobbes segundo a qual o medo da morte é o afeto político mais poderoso, e que estamos sempre prontos a sacrificar nossa liberdade por nossa segurança. O que o confinamento destes bilhões de pessoas demonstrou é o extraordinário poder do Estado no mundo inteiro, e a extraordinária capacidade de obediência dos cidadãos a ele.
Como sabemos que o Estado tornou-se extraordinariamente poderoso? Pela facilidade com a qual ele emitiu e fez cumprir os decretos e decisões muitas vezes absurdos. Israel proibiu seus cidadãos de andar além de 100 metros de seu domicílio (enquanto que a França, com 10 vezes mais pessoas contaminadas, autorizou um perímetro de 1 km); Modi confinou mais de um bilhão de Indianos, de um dia para o outro, sem tempo para se prepararem, precipitando milhões de pobres pelas estradas, onde alguns certamente morreram. Israel autorizou as orações públicas, mas não os cursos de Yoga. Todas estas aberrações e incoerências provam o enorme poder do Estado para a submissão de seus cidadãos.
Há 40 anos os neoliberais se enganam quanto ao poder do Estado: ineficaz, inútil, supérfluo. Mas são muitos entre eles a voltar atrás, de um dia para o outro. Após dezenas de anos vislumbrando um crescimento econômico sem fim como condição incontornável da sociedade, a dimensão política e moral das questões humanas fizeram seu grande retorno ao primeiro plano das preocupações públicas.
A política que se nos apresenta é de um gênero totalmente novo: trata-se de uma política sobre “as condições de vida”, que produzirão cada vez mais catástrofes naturais – ecológicas e biológicas. O coronavírus nos oferece uma percepção sobre o que poderia ser uma política cujo sentido seria garantir as condições de vida enquanto o meio ambiente e o clima nos ameaçam de destruição.
A crise do coronavírus revelou aos países e às nações todas as forças e fraquezas de seus regimes políticos. Israel provou ser aquilo que já sabíamos: o país onde os problemas civis são tratados como problemas de segurança. Os serviços secretos utilizaram sem nenhuma dificuldade as tecnologias de rastreamento antiterrorismo para seguir os portadores do vírus – o que confirma que todos os israelenses, há tempos, estão sob controle. Os EUA mostraram a que ponto sua concepção da noção de liberdade é extrema: alguns Estados, como o Kansas, rejeitaram os decretos de confinamento em nome do direito de associação religiosa nas igrejas (encontramos aqui uma forte analogia com o apelo do rabino Kaniewski para reabrir as escolas talmúdicas em Israel), enquanto que outros americanos reclamavam ruidosamente o direito de ir às compras. O libertarismo cultivado pelo direito radical nas ultimas décadas se opõe radicalmente à gestão de uma crise sanitária.
Israel também fechou suas fronteiras enquanto não lamentava uma única morte, enquanto que a França deixou sua fronteira com a Itália aberta, mesmo em plena hecatombe. As democracias iliberais, como Israel, Polônia, Turquia e Hungria se serviram da crise do coronavírus para fazer crer que o Reichstag estava em chamas e aproveitaram para suspender as liberdades civis e revogar o poder dos parlamentos e dos tribunais (Netanyahu aproveitou para escapar a um processo que o esperava dia 17 de março). Mesmo uma sólida democracia como os EUA flerta hoje com o autoritarismo antidemocrático de um Trump cada vez mais errático.
Outros países como Suécia, Holanda ou Alemanha preferiram confiar a responsabilidade a seus cidadãos para cuidar deles mesmos e dos outros; assim, gerenciaram a crise combinando espírito cívico e liberdade (os resultados destas políticas poderão ser avaliadas em alguns meses).
Porque o vírus é tudo menos biológico: em primeiro lugar, é um acontecimento político, profundamente revelador das relações entre Estado e sociedade. A lição que podemos tirar para o futuro é que somente a combinação “democracia forte – estado providência” poderá oferecer o luxo de defender a vida dos cidadãos encontrando um equilíbrio entre liberdade, sobrevivência econômica e saúde. Enquanto as democracias semi-liberais ou iliberais servem-se de crises (sanitárias ou outras) para promover golpes de Estado e corroer os direitos civis.
O neoliberalismo jamais cessou de erodir os recursos públicos e mesmo de pilhar o Estado em proveito dos ricos. Não surpreende que os dirigentes neoliberais, em seu conjunto, foram os mais lerdos para reagirem à crise. Trump, Bolsonaro, Duterte, Johnson, os industriais do norte da Itália, promoveram inicialmente o “darwinismo biológico” (sobrevivam os fortes), que refletia seu “darwinismo social” (quem puder lutar vencerá; quem não puder vai morrer). Mas, como descobriram rapidamente, o Estado moderno formou um pacto sanitário com seus cidadãos: mesmo os EUA – onde os cuidados de saúde são privatizados e dificilmente acessíveis aos pobres e à classe operária -, os cidadãos esperam que o Estado seja responsável pela gestão de uma crise sanitária. O neoliberalismo minou as condições deste pacto.
Os homens de negócios que dirigem cada vez mais a política pensam e agem como homens de negócios: realizar investimentos em setores não rentáveis (como a prevenção de epidemias) está na contramão de um estado de espírito direcionado ao lucro. Trump cortou os recursos da agência federal encarregada das epidemias (a Fema), e, neste momento, acaba de reduzir os fundos alocados para a luta contra a pandemia. Apreender o domínio do social como contabilidade, no qual os benefícios devem prevalecer sobre os custos, desestabiliza as relações sociais e desumaniza o poder.
O neoliberalismo foi muito vantajoso para os ricos e os políticos que os servem, mas é terminantemente perigoso para o resto de nós porque ele destrói a noção mesma de “bem público” enquanto contrato social entre Estado e cidadãos. Se a gestão desta crise seguir o modelo de 2008 (socorrer os ricos) mais que o do New Deal (ajudar todas as classes sociais, em particular os desempregados), ela acabará em neofundamentalismo e problemas sociais massivos.
A maior parte dos países do mundo está extremamente mal preparada e não dispõe de equipamento médico de base para fazer face à pandemia. Antes de tudo porque a mundialização e o deslocamento da economia colocaram a maior parte dos países dependentes da China em relação aos equipamentos médicos. Mas os governantes minaram sistematicamente a confiança dos cidadãos, bem além da questão dos equipamentos.
Netanyahu de forma ultrajante utilizou a crise para escapar à lei sem nenhuma vergonha. Trump convocou sua base supremacista branca a violar as regras de confinamento, nos estados democratas de Minnesota e Michigan. O presidente Jair Bolsonaro juntou-se a uma manifestação anti-confinamento. Por fim, o ministro israelense da Saúde, Yaakov Litzman, tornou-se motivo de chacota universal por violar as regras fundamentais de distanciamento social emitidas por seu próprio ministério e predisse com segurança desenvolta que o messias nos salvaria da pandemia até abril. O mesmo Litzman é suspeito de corrupção e ameaçado por um processo. Contudo, Netanyahu confiou a ele uma outra pasta, essencial para retomar a economia.
Em inúmeros países do mundo, uma grande parte da população se sente profundamente traída por seus dirigentes. Podemos dizer que os lugares mais afetados do globo serão aqueles (como Israel) onde a crise sanitária gera ao mesmo tempo uma crise econômica e política. A questão sanitária será ela a origem de insurreições cidadãs por todo o mundo? A interrogação persiste, mas não é certo que a revolta surja lá onde nós esperamos.
Em tempos de guerra, o medo da morte existe, mas nós a enfrentamos geralmente com outras pessoas, sabemos quem é o inimigo e podemos nos apoiar sobre o vasto repertório simbólico do heroísmo para lutar ou nos esconder. Ora, no contexto atual de medo do vírus, somos reduzidos a pequenas unidades, e às vezes mesmo inteiramente isolados do resto do mundo, não há nenhuma ação a ser tomada, e temos à nossa disposição pouco repertório simbólico conhecido no qual nos apoiar. A bomba mortal pode provar não ser aquela que o inimigo projeta sobre nós, mas aquela que nós mesmos, sem saber, trazemos em nós e propagamos a qualquer pessoa.
Isso porque estamos todos confinados em nossas casas ou nas proximidades, com medo de qualquer coisa de invisível que suspendeu nossa relação com os outros. Mas se aprendemos alguma coisa durante este período, é que a casa não pode substituir a ausência de um mundo compartilhado. A produção e o consumo tornaram-se os principais meios pelos quais os contemporâneos criam seus próprios valores, socializam e forjam até mesmo sua vida íntima. O trabalho e o lugar onde exercemos nossas competências nos dão um objetivo e um status. Os lazeres nos proveem de experiências e prazeres, as ocasiões de jogo e a possibilidade de ver e ser visto pelos outros. Em confinamento, aprendemos também que a casa só é suportável enquanto o mundo exterior está integrado via televisão, internet e outros serviços. Além disso, a doçura do lugar torna-se amarga, em particular para aqueles que vivem em alojamentos exíguos concebidos para classes médias e operárias das zonas urbanas e periféricas.
Nas redes sociais, vimos circulando uma piada sobre Cristiano Ronaldo, que ganha milhões de dólares, e os enfermeiros, que recebem salário de miséria. A piada incitava os necessitados a pedir socorro e ajuda financeira ao jogador de futebol. A graça sublinhava a inversão de valor e de prestígio da qual somos testemunhas. Devemos efetivamente nossa vida às mulheres e homens que trabalham nos supermercados, hospitais, limpam as ruas, entregam comida em domicilio, que cuidam da nossa eletricidade; são estas pessoas que se tornaram essenciais à nossa existência. As celebridades ou os financistas aparecem em todo esplendor do vazio de seu trabalho, enquanto que aqueles que ocupam as atividades habitualmente invisíveis e desvalorizadas revelam-se nossos pilares. Se há uma lição a tirar aqui, é que nosso mundo “normal” funciona com uma escala de valores falsa e invertida. Porque as pessoas que nos protegem e que contribuem para manter a ordem social se encontram em uma baixa escala de valores, enquanto aqueles que se situam no topo mostram-se, em geral, inteiramente inúteis.
Tanto em suas reações à crise quanto na forma de geri-la, as divergências entre os religiosos e os laicos foram exacerbadas como nunca. Os evangélicos nos EUA e os ultra-ortodoxos em Israel não têm grande respeito pela ciência, eles levam uma existência insular e não escutam senão as recomendações de seus pastores e rabinos. Os laicos, por sua parte, se comportam com um senso exemplar de responsabilidade coletiva: os jovens seguem as recomendações do ministério da Saúde e fazem grandes sacrifícios em termos de liberdade e sobrevivência econômica, a fim de proteger os mais velhos.
No contexto de Israel, sempre houve um tipo de suficiência em relação aos ditos “panier vide” dos laicos (essa ideia, em hebreu, segundo a qual somente os religiosos teriam acesso a um mundo rico de símbolos). Em todo caso, nós fizemos a experiência concreta do extraordinário senso cívico da população laica, graças à disciplina da qual os cidadãos fizeram prova e às redes de voluntariado que estabeleceram. Isso deve permanecer um marco na consciência e identidade dos laicos. Seu comportamento durante a crise demonstra que a religião não pode mais reivindicar uma superioridade moral.
Inúmeros governantes, ao redor do mundo, não deveriam mais dormir tão profundamente. No curso da história, as revoltas e revoluções são produzidas por muito menos.
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A partir das trevas, o que aprendemos? - Instituto Humanitas Unisinos - IHU