22 Agosto 2018
A disputa da eleição pela direita, como aponta Geraldo Alckmin (PSDB), é quem vai levar o apoio do agronegócio rifando a Amazônia.
A reportagem é de Eliane Brum, escritora, repórter e documentarista, publicada por El País, 20-08-2018.
A realidade, como se sabe, é um delírio. É a partir dessa consciência que podemos analisar a atual disputa pela presidência do Brasil. Como o que vale são os espasmos, as cenas que rendem emoção, como a de Marina Silva (Rede) dando pito em Jair Bolsonaro (PSL) no debate de 17/8, ou memes, como qualquer aparição do Cabo Glória a Deus Nação Brasileira Daciolo, o que acontece em tom moderado e com os bons modos das elites que se empenham em parecer limpinhas vai passando batido. Só assim Geraldo Alckmin (PSDB+Centrão+3) pode representar uma direita moderada. Metido em ternos muito bem cortados, camisas brancas impecáveis, toda aparência dele é asséptica, como se emergisse diariamente de uma banheira de desinfetante. É com essa imagem imaculada, falando como um padre não carismático, que ele vai desfiando tanto afirmações arrepiantes quanto declarações nonsense, com a impassibilidade de quem pronuncia provérbios e parábolas.
Até a aparição de Jair Bolsonaro, o terror da maior parte da esquerda e mesmo daqueles que de fato se identificam com o centro ideológico, e com razão, era Geraldo Alckmin. E então aparece o tosco dos toscos e todas as atenções se voltam para a performance daquele que não consegue articular uma frase com sentido em qualquer assunto que não envolva bater ou atirar em alguém, mas que sem Lula lidera as intenções de votos. E Alckmin pode voltar a fingir ser um “picolé de chuchu”.
Para quem chegou de fato ao século 21, a afirmação mais perigosa do último debate foi dita por Alckmin, quando escolheu Ciro Gomes (PDT) para responder à sua pergunta. “Quero ser o candidato que vai recuperar o emprego. Um dos setores mais pujantes da economia é o agronegócio. (...) No caso do agronegócio, infraestrutura. Estou indo amanhã cedo para o Pará para ir lá na beira do rio Tapajós, lá em Itaituba, para integrar. Vamos fazer um grande canteiro de obras, de ferrovias, de hidrovias, trazendo a iniciativa privada pra investir no Brasil”.
A região que Alckmin escolheu para fazer a primeira viagem oficial como candidato a presidente é uma das mais sensíveis da Amazônia. É no Tapajós que Lula e Dilma Rousseff, do PT, tentaram fazer as grandes hidrelétricas de São Luís e de Jatobá, além de outras no Rio Jamanxim, um afluente do Tapajós, seguindo com seu projeto de construir grandes barragens nos rios amazônicos, custasse o que custasse. E sempre custou demasiado, em todos os sentidos. Quem conseguiu impedir, até agora, que as usinas se materializassem na bacia do Tapajós foram os guerreiros e guerreiras do povo Munduruku.
Como os governos do PT se recusaram a demarcar a terra, eles mesmos fizeram a demarcação, com a ajuda dos ribeirinhos da comunidade de Montanha e Mangabal, que também seriam atingidos pelas hidrelétricas. Depois, foram os ribeirinhos de Montanha e Mangabal que começaram a fazer a autodemarcação de sua terra ajudados pelos Munduruku. Este é um mérito dos 13 anos do PT no poder: seu projeto de construir obras megalômanas na Amazônia uniu povos da floresta que durante mais de um século se encaravam com mútua desconfiança. Diante do tamanho da ameaça, escolheram superar divergências profundas e apostar no que têm em comum. Indígenas e ribeirinhos hoje lutam lado a lado contra aqueles que querem destruir sua casa.
O PT – e o PMDB – conseguiram fazer as hidrelétricas de Jirau e Santo Antônio, no Rio Madeira, em Rondônia, e Belo Monte, no Rio Xingu, no Pará. Fizeram ainda as usinas de São Manoel e Teles Pires, no Rio Teles Pires. Só um total desinformado não conhece os custos humanos e ambientais dessas obras, sem contar as suspeitas de corrupção investigadas pela Operação Lava Jato especialmente em Belo Monte. Mas PT e PMDB não conseguiram fazer as hidrelétricas no Tapajós. Alckmin, que de bobo não tem nada, não citou hidrelétricas na sua manifestação no debate. Mas falou as palavras mágicas: “agronegócio”, “ferrovia” e “canteiro de obras”.
A disposição de construir uma ferrovia para transportar especialmente soja rendeu algumas das piores notícias internacionais no desgoverno de Michel Temer (MDB), o presidente mais impopular desde a redemocratização. A Ferrovia do Grão, com 1.142 quilômetros de extensão, foi planejada para ligar a região produtora do Centro-Oeste do Brasil ao Rio Tapajós, principal afluente do Rio Amazonas, para a exportação de soja e outras matérias-primas para mercados estrangeiros.
Para que seja possível construir a Ferrogrão, como é chamada, e responder à pressão de grileiros que querem se legalizar e comercializar as terras públicas que roubaram, o desgoverno Temer desprotegeu a floresta amazônica. Como fez isso? Reduziu o tamanho das áreas protegidas do Parque Nacional do Jamanxim e da Floresta Nacional do Jamanxim através de medidas provisórias. A resistência dos povos da floresta e a pressão internacional contra a destruição da Amazônia obrigou Temer a recuar. Ainda assim, ele retirou a proteção de 862 hectares do Parque Nacional do Jamanxim, por onde deve passar a ferrovia. Em seguida, o ministro do meio ambiente José Sarney Filho apresentou ao Congresso um projeto de lei mudando o status de 394 mil hectares da Floresta Nacional do Jamanxim. Essa imensa área de floresta, equivalente a duas vezes a cidade de São Paulo, passaria a ser Área de Proteção Ambiental (APA) – e não mais Floresta Nacional.
O que isso significa? A APA é um tipo de unidade de conservação que permite um número muito maior de atividades humanas na área de floresta, inclusive compra e venda de terras. Os grileiros, como são chamados aqueles que roubam grandes quantidades de terras públicas, poderão reivindicar a legalização das terras – ou seja, a legalização do crime contra o patrimônio público e contra o meio ambiente –, para comercializar a terra que deixou de ser pública para se tornar privada. Na prática, o desgoverno Temer pareceu recuar para apaziguar os ânimos internacionais, mas para pagar sua conta impagável com a bancada ruralista, grande fiadora do sua manutenção no Planalto, pegou outro caminho para fazer a mesma coisa.
É nessa cumbuca que Alckmin meteu sua mão de apóstolo. Mas não porque é bobo. E sim porque o chuchu quer ser o melhor amigo da soja. Mais do que isso. Quer mudar o status no Facebook para relacionamento sério com o agronegócio, o que para alguém tão religioso na política quanto Alckmin significa casamento com comunhão total de bens.
Ele não é o único. Ciro Gomes tem se empenhado ao máximo para ser o noivo escolhido, tanto que botou como vice uma latifundiária, Katia Abreu, ex-ministra da Agricultura e amiga pessoal de Dilma Rousseff. Entre as pérolas pronunciadas por Katia Abreu vale lembrar a seguinte, em entrevista à jornalista Mônica Bergamo, na Folha de S. Paulo: “O problema é que os índios saíram da floresta e passaram a descer na área de produção”.
A vice de Ciro poderia ter dito que o problema é que os indígenas tiveram o mau gosto de estarem em casa quando os europeus invadiram o território que chamariam de Brasil. Mas não é preciso voltar cinco séculos. A questão segue bastante atual, porque Katia Abreu inverte também a história recentíssima. A produtividade da soja não se alterou desde o início deste século, como mostra reportagem de Mauricio Torres e Sue Branford para a série “Tapajós sob ataque”, no The Intercept. Para aumentar a produção da monocultura, os latifundiários precisam aumentar o seu latifúndio. E quais são as regiões que consideram “disponíveis” para sua expansão privada? A floresta amazônica e o Cerrado.
Em apenas dois meses, entre abril e maio deste ano, a Floresta Nacional do Jamanxim, no Pará, perdeu 57 quilômetros quadrados de cobertura vegetal, o equivalente a 36 parques do Ibirapuera, o principal de São Paulo. O cálculo é do Instituto do Homem e do Meio Ambiente da Amazônia (Imazon). O aumento do desmatamento se deve em grande parte à expectativa do afrouxamento da proteção da unidade de conservação que está em curso no Congresso. É o processo costumeiro na Amazônia. A cada frase pronunciada em Brasília, os grileiros aumentam a pressão sobre a floresta, derrubando árvore e colocando boi. E novos invasores aparecem. Sabem que tudo indica que terão seu crime legalizado. Então tratam de invadir e desmatar para consolidar a ocupação. A Floresta Nacional do Jamanxim foi criada por Lula em 2006 exatamente para servir de proteção para o avanço do desmatamento trazido pelo asfaltamento da BR-163, obra levada adiante pelo seu governo para beneficiar os grandes produtores de soja e de gado. É assim que a floresta vai sendo colocada abaixo. Avança por um lado, avança pelo outro, avança pelo meio. Já não há qualquer pudor.
Em janeiro de 2018, o Ministério do Meio Ambiente divulgou que a soja ocupou ilegalmente 47,3 mil hectares de floresta desmatada na Amazônia na última safra, quase 30% a mais do que no ano anterior. Mesmo assim, ministro e parte das organizações ambientais comemoraram o resultado porque o plantio em área ilegal corresponderia a pouco mais de 1% do total de soja plantada. A conclusão é que a soja impactaria pouco no desmatamento da Amazônia. O que se esquecem de mencionar é que parte significativa das terras de agropecuária na Amazônia, produto de pilhagem do patrimônio público e de destruição da floresta, tem sido legalizadas pelos últimos governos e pelo Congresso mais corrupto da história recente. O que é legal hoje era roubo ontem.
É assim que grileiros viram fazendeiros, eliminando o crime por força de um Congresso e um governo dominados pela bancada ruralista. O agrobanditismo vira agronegócio. Basta uma canetada, como aconteceu com aquela que ficou conhecida como a Lei da Grilagem, a número 2, sancionada por Temer em julho de 2017: a partir dela, grileiros que ocupavam terras públicas sabendo que eram públicas até 2011 – ontem – “regularizaram” seus grilos até 2.500 hectares, o equivalente a cinco Vaticanos. De 2.500 em 2.500 a floresta vai sendo tomada, e bandidos, com grande números de laranjas a seu serviço, viram “produtores rurais” e formam latifúndios em plena floresta. Antes, em 2009, ainda no governo de Lula, já havia sido aprovada aquela que foi batizada como Lei da Grilagem, a número 1, também conhecida como “Terra Legal”, que beneficiava os grileiros que tinham invadido terras até 2004, no limite de 1.500 hectares por vez. Temer ampliou o processo de legalização do crime que já havia começado nos governos do PT.
Os crimes contra a floresta compensam cada vez mais para uns poucos, mas poderosos. E a disputa desesperada de candidatos pelo apoio do agronegócio mostra que a ideia é que compensem ainda mais. Em apenas dez anos, a área de soja multiplicou-se quatro vezes na Amazônia, passando de 1,14 milhão de hectares na safra de 2006/07 para 4,48 milhões de hectares na safra 2016/17. A soja não alimenta a população. Cerca de 80% da soja produzida e exportada é usada para fazer ração animal. Ou seja, para a produção de carne.
A pecuária é a atividade que mais contribui para o desmatamento da Amazônia, ocupando 65% da área desmatada. O rebanho bovino na Amazônia legal, segundo o Imazon, saltou de 37 milhões de cabeças em 1995, o equivalente a 23% do rebanho nacional, para 85 milhões em 2016, quase 40% do rebanho nacional. Os bois, por meio de seu processo digestivo (basicamente puns e arrotos) são responsáveis pela liberação de grande quantidade de metano na atmosfera, um gás de efeito estufa com potencial de aquecimento 25 vezes maior que o CO2. Mesmo sem se preocupar com o sofrimento dos animais criados em campos de concentração, consumir carne é um péssimo negócio para a Amazônia, para o planeta e para todas as espécies, incluindo a humana. Os criadores de gado são grandes clientes das terras de floresta, mas pagam bem mais no mercado por áreas já desmatadas. Soja e boi formam um círculo íntimo na destruição da floresta amazônica.
Estima-se que até 2024 a demanda chinesa por soja, segundo Torres e Branford, chegue a 180 milhões de toneladas por ano: mais do que a soma dos três produtores mundiais – Estados Unidos, Brasil e Argentina. É o Brasil que supostamente teria mais condições de aumentar a sua produção, avançando ainda mais sobre o Cerrado e a Floresta, situação que se acirra com as recentes divergências entre a China e os Estados Unidos de Donald Trump.
Num país que depende da exportação de matérias-primas em pleno século 21, como o Brasil, o peso da soja na balança comercial dá ao agronegócio um enorme poder de chantagem. É o que temos testemunhado nas últimas décadas no Brasil, de forma sempre crescente e cada vez mais desavergonhada, o que determina tanto o desmantelamento da Funai e o loteamento dos órgãos de proteção socioambiental e de fiscalização da questão agrária quanto o afrouxamento das regras do licenciamento ambiental.
Este é o grande impasse do momento atual do Brasil e vai determinar seu futuro: em tempos de crise climática, a maior floresta tropical do mundo, fundamental para a regulação do clima, vai seguir sendo convertida em soja, boi, minério e hidrelétricas? É o que apontaram os últimos governos e é também o objetivo explícito de alguns dos principais candidatos desta eleição.
É por isso que Geraldo Alckmin passou o último final de semana na região do Tapajós tentando fazer amigos. Estava lá para garantir que o agronegócio, parte dele agrobanditismo, continuará a ser fiador do governo, mesmo com a mudança do inquilino no Planalto. Michel Temer não mentiu quando disse, em entrevista à Folha de S. Paulo, que Alckmin era o candidato mais identificado com o seu governo. A promessa é de que tudo continuará ainda melhor do que já está para quem quer derrubar a floresta para que ela vire soja, boi, minério e hidrelétrica.
A pedra nos impecáveis sapatos de Alckmin é que grileiros e grandes fazendeiros de várias regiões do país se identificam bem mais com o estilo de Bolsonaro. No Pará, as caminhonetes estão coalhadas de adesivos do candidato de extrema-direita. Notórios expoentes da grilagem se alinharam com ele, alguns com uma folha corrida de serviços prestados às funerárias da região. E alguns prefeitos do PSDB, mesmo que não declarem publicamente, se abraçam a Bolsonaro. Alckmin é coxinha demais para quem demarcou as terras com sangue de camponeses e de índios. Mas a devoção por Bolsonaro pode mudar se valer mais a pena. Não há setor mais pragmático do que o “agro”. Nenhum grileiro que limpou sua biografia com a ajuda de deputados virou “produtor rural” ou “fazendeiro” por lealdade.
É para agradar a esse público eleitor e fiador de candidaturas e de governos que Alckmin, o sereno, promete “flexibilizar” o uso de armas na zona rural para proteger os “produtores rurais”. Qualquer anta passeando pela floresta sabe que não faltam armas nas mãos dos que são chamados de fazendeiros ou mesmo “desbravadores”, mas que, a rigor, são grileiros. Os fazendeiros reais deveriam ser os primeiros a se esforçar para se diferenciar dos bandidos, denunciando esse tipo de prática, mas não é o que em geral tem acontecido.
A questão é que a Amazônia já está armada. Desarmá-la é mais do que urgente. A violência não é contra os proprietários rurais, mas sim contra camponeses, indígenas, quilombolas e ribeirinhos. E multiplicou-se desde o aumento do poder do PMDB no governo de Dilma Rousseff, ampliando-se quando Temer se tornou presidente com o apoio decisivo da bancada ruralista.
Mas não é contra essa violência que Alckmin está preocupado. É sua vice, Ana Amélia Lemos (PP), que mais claramente expressa quem não pode morrer no campo: “Com a migração do crime organizado da área urbana para a rural, é cada vez maior o número de assaltos nas propriedades, com roubo de gado, equipamentos, insumos e, o mais grave, o risco à vida dos produtores, suas famílias e seus trabalhadores. A situação é grave!”. Segundo Janio de Freitas, colunista da Folha de S. Paulo, Ana Amélia é conhecida por ter defendido a ditadura civil-militar como jornalista e também como funcionária fantasma do Senado em 1987. Não deve ser um problema para Alckmin, que acabou de dar um depoimento ao Ministério Público de São Paulo sobre o repasse de 10 milhões de reais pela empreiteira Odebrecht para suas campanhas de 2010 e 2014.
Geraldo Alckmin escolheu o Pará para a primeira viagem oficial como candidato para conquistar os ruralistas do Norte e do Centro-Oeste. Mas não apenas eles. Há muitos ruralistas do Sudeste e do Sul com grandes fazendas na floresta – ou na ex-floresta. Ao desembarcar na região do Tapajós, que promete transformar num “canteiro de obras”, Alckmin estava desembarcando no estado mais letal para defensores da terra e do meio ambiente do planeta. Segundo a organização Global Witness, não há nenhum lugar hoje mais perigoso que o Brasil – e, no Brasil, nenhum lugar mais perigoso do que o Pará. O setor que lidera os assassinatos, segundo a organização britânica, é o agronegócio. O “agro” superou a mineração no uso da violência como método de invasão das florestas e outros biomas.
Em Anapu, pelo menos 16 trabalhadores rurais foram mortos desde 2015 por conflitos por terra. Mais de uma década depois do assassinato da missionária Dorothy Stang, a situação atual de tensão e violência no município é ainda mais explosiva. É fácil imaginar como soa, nessa região de interpretações literais, uma promessa de “flexibilização” de armas para que os “produtores rurais” possam se defender. Quando Alckmin acena com isso, e Bolsonaro defende abertamente a solução de conflitos pela bala, o que estão autorizando é a legalização das chacinas que já acontecem com alto grau de impunidade. Que um dia respondam pelos cadáveres. Não se brinca de vilão na Amazônia sem se tornar um vilão.
Alckmin se autoriza a pronunciar assombros com absoluta serenidade. Ele, que é apoiado pelo Centrão (DEM, PP, PR, PRB e SD), anomalia política intimamente ligada à desintegração do país, e também pelo PSD, PTB e PPS, não se cansa de reclamar em cada oportunidade do excesso do número de partidos no Brasil. Também saiu-se com essa na convenção do PSDB, em Brasília: “Precisamos da ordem democrática, que dialoga, que não exclui, que tolera as diferenças, que não busca resolver tudo na pancadaria nem usa o ódio como combustível da manipulação eleitoral”.
O governador que autorizou a Polícia Militar a descer o cacete, jogar bombas de gás lacrimogênio e disparar balas de borracha contra manifestantes em 2013 e 2014, assim como bater em adolescentes que reivindicavam escola pública de qualidade em 2015 e 2016, apregoa-se como o homem do diálogo. Nem piscou. O governador que manteve, apoiou e estimulou a prática de uma das polícias mais letais do Brasil, país com uma das polícias mais letais do mundo, mas com letalidade racialmente seletiva, já que a maioria dos executados são negros, se anuncia como o paladino da tolerância. Tranquilo, sem desarrumar a gravata.
Alckmin também não despenteia o cabelo ao afirmar: “Aqui em São Paulo tivemos uma crise hídrica muito grande. Vencemos”. Os mais pobres, que de fato sofreram o racionamento de água por meses e até anos, podem contar uma história bem diferente. Hoje, o Cantareira, apesar de abastecer menos gente, está com níveis abaixo do período anterior à crise de 2014. Não há vitória nenhuma. São Paulo pode voltar a ter uma crise de água no próximo ano. Mas, claro, isso não vai acontecer antes da eleição de outubro.
Imperturbável, Alckmin segue, dando alô aos nordestinos: “Ajudamos o Nordeste no eixo leste com a transposição do São Francisco. (...) Vamos salvar o Rio São Francisco. A revitalização do rio, dragagem, recomposição da mata ciliar....”. Não seria lindo se, durante os mais de 12 anos de Alckmin como governador, os 24 anos do PSDB no poder em São Paulo, o Tietê e vários outros rios de São Paulo convertidos em esgoto tivessem sido salvos por ele e por seu partido? Assim como as matas ciliares e os mananciais, essa sim uma medida efetiva para enfrentar a crise climática que hoje impede qualquer previsão séria sobre a quantidade de chuvas? Só que não. Alckmin vai ao Pará para prometer transformar a floresta num canteiro de obras, ignorando por completo as evidências científicas da importância da Amazônia para a regulação das chuvas também no Sudeste.
O Brasil não é mais o país do futuro. Mas, para que possa ter ao menos um futuro, é preciso que o Brasil volte a ser capaz de imaginá-lo. Não há nenhuma possibilidade de fazer isso tratando a maior floresta tropical do mundo como um corpo para a espoliação de recursos, as árvores e seus povos como um lixo que deve ser varrido para virar soja ou pasto. Não por caridade cristã, mas por sobrevivência. Não é uma escolha de modelo de desenvolvimento. Essa escolha num mundo em crise climática já não é mais possível. Nem mesmo para o agronegócio.
Qualquer um já é capaz de perceber os efeitos do aquecimento global. Não é nenhuma novidade que o planeta está a caminho de virar um forno. Mas a situação pode ser ainda pior. Um grupo de respeitados cientistas do clima publicou um artigo no Proceedings of the National Academy of Sciences, alertando que o Acordo de Paris, que busca manter o aquecimento global a no máximo 2°C acima dos níveis pré-industriais, pode não ser suficiente para “estacionar” a temperatura. O grupo pesquisa se as temperaturas mais quentes liberam novas fontes de gases de efeito estufa e destroem a capacidade da Terra de absorver carbono ou refletir o calor.
Analisando as consequências combinadas de 10 processos de mudança climática, o grupo de cientistas avalia se o aquecimento pode ser interrompido e a temperatura estabilizada ou se vai haver um processo de realimentação, com aquecimento contínuo, levando a uma “estufa terrestre”: 4°C acima e muito menos favorável à vida humana. Hoje, a temperatura média global já está a mais de 1°C acima dos níveis pré-industriais. Na atual conjuntura e com os atuais governantes do planeta, destaque para Donald Trump, dificilmente será possível parar em 2°C. Passar disso tem efeitos que já foram projetados. Dificilmente alguém vai achar bom que seus filhos e netos vivam num mundo tão ruim.
É inaceitável que a crise climática não esteja no centro do debate eleitoral. E isso no país que tem a maior parte da maior floresta tropical do mundo no seu território. É um escândalo que o tema sequer apareça ou que no máximo tangencie algumas poucas questões. Ao contrário. Aparece pelo seu avesso, como a promessa de Alckmin de transformar a floresta amazônica, na região do Tapajós, num “canteiro de obras”.
O Brasil só tem relevância no mundo hoje porque tem no seu território a maior parte da Amazônia, mas a maioria dos candidatos não chegou ao século 21. Tá rodando entre o século 19 e o século 20, antes de 1968. O “progresso” ainda é trocar a floresta por soja e boi, enchê-la de cimento, concreto e aço com obras gigantes. É constrangedor. E é perigoso. O que deveria estar se discutindo é como proteger o Cerrado, a floresta amazônica e outros biomas e como aprender com seus povos a usar os recursos sem destruir a natureza, o que eles fazem há séculos e até milênios. A riqueza da Amazônia é a sua biodiversidade, assim como o complexo conhecimento de suas populações tradicionais. Soja, boi, minério e hidrelétrica só destroem o ativo de maior valor do mundo assombrado pela mudança climática.
Geraldo Alckmin ainda está mal nas pesquisas. É provável que a lógica das eleições tenha mudado e que são as redes sociais que vão definir o vencedor. E não mais os debates e o tempo de TV e os apoios e a máquina eleitoral. Mas não dá para esquecer que apenas quatro anos atrás Alckmin ganhou no primeiro turno a reeleição para governador em plena crise da água em São Paulo, esta que ele acaba de dizer que venceu, jurando que não havia crise nenhuma. É verdade que o voto do Brasil é mais complexo do que o dos paulistas, mas é melhor prestar atenção também naqueles que têm bons modos e que falam pausadamente, os que raramente rendem os melhores memes ou vídeos curtos de grandes momentos de reality show.
A disputa por quem vai levar o apoio dos ruralistas e rifar a Amazônia nunca antes na história recente foi tão acirrada.
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O chuchu quer conquistar a soja - Instituto Humanitas Unisinos - IHU