20 Agosto 2018
“Apesar de interessante, a estratégia de Marina claramente não está pegando por ser hiper-racionalista. Para entender o que Marina quer e pensa, é necessário ter lido alguma coisa de Edgar Morin, quem sabe devanear sobre o futuro com Yuval Noah Harari ou Jeremy Rifkin, e incorporar a leitura da política em rede de um Castells ou a crítica ao autoritarismo da Hannah Arendt.
Convenhamos, é uma posição ultraelitista. Marina, como disse no outro post, às vezes parece achar que entrevistas e debates são um torneio da complexidade”, escreve Moysés Pinto Neto, graduado em Ciências Jurídicas pela UFRGS, mestre em Ciências Criminais e doutor em Filosofia pela PUCRS e professor no Programa de Pós-Graduação em Educação e no curso de Direito da ULBRA Canoas, em comentário publicado em seu Medium, 18-08-2018.
Venho historiando há tempos a trajetória solo de Marina em alguns posts e fui seu apoiador em 2014. Não vou repetir, portanto, argumentos que já estão em outros posts e podem ser sintetizados da seguinte forma:
a) Marina apareceu, em determinado momento histórico (2010–2013), como a linha minoritária do lulismo (expressão de Bruno Cava), na qual as políticas ousadas — como os Pontos de Cultura, o aumento de demarcações indígenas, a possibilidade de uma matriz energética alternativa, etc. — encontravam-se contempladas em detrimento do desenvolvimentismo majoritário para o qual o lulismo acabou se encaminhando na sua segunda fase, comandado por Dilma Rousseff. Por isso, apesar de distante do imaginário vermelho, Marina sintetizava para esses setores uma linha transversal capaz inclusive de cruzar o espectro ideológico e inventar uma nova configuração, abrindo espaços que o petismo havia considerado menos relevantes diante do projeto Brasil Grande e o imaginário industrialista;
b) em 2014, Marina sofre uma campanha difamatória que marca um padrão de duplipensar petista em relação à sua candidatura: (1) quando se trata de defender o petismo da esquerda, somos pragmáticos e a Realpolitik é único caminho; (2) quando se trata de atacar Marina, somos o socialismo e ela torna-se a imagem do neoliberalismo ou, como disse um sociólogo famoso por aí, "a nova cara da direita". Essa atitude esquizofrênica pode ser vista pelos comerciais eleitorais: de um lado, atacava-se Marina como a candidata dos bancos, colocando-a como quem retira comida do pobre; de outro, atacava-se Marina como a incapaz de uma composição política sólida no presidencialismo de coalizão, podendo cair pelo impeachment (ah, a ironia histórica…);
c) a partir de 2014, no entanto, o que vimos não foi a consolidação de Marina no vácuo da crise do establishment. Ao contrário. A construção da Rede foi um desastre, mais perdendo que ganhando adeptos, além de aliar-se a oligarquias regionais (como com o PMDB de Porto Alegre em 2016) e oportunistas (como Romário no RJ, agora).
Desde então, venho insistindo (sobretudo no Twitter, @moysespintonet0) que Marina não conseguiu encontrar o tom para se dirigir ao grande público.
O intervalo foi construído com um reposicionamento do campo político e uma tripla fratura da direita, dividindo-se em um campo propriamente "neoliberal progressista" (sobretudo no ativismo da rede Globo e na burocracia jurídica), patrimonialista (o agora assumido "Centrão") e, finalmente, o populismo autoritário (de MBL a Bolsonaro). Bolsonaro foi o mais beneficiado por essa cesura, que coloca a extrema direita como alternativa ao establishment a partir da combinação entre punitivismo ("bandido bom…"), conservadorismo moral (Escola sem Partido, contrariedade à "ideologia de gênero"), luta contra a corrupção e cinismo generalizado (já explico melhor). A contrabando, entra um liberalismo gaiato, pinochetista, com vistas a conseguir uma coalizão com o empresariado. E, com isso, o campo de Marina (os "independentes") foi minguando.
Marina segue impopular na esquerda devido a vários fatos, que vão de preconceitos iniciais (desde 2010 a esquerda considera Marina fundamentalista religiosa, como se não houve nuances entre neopentecostais), aliança com bancos (devido à participação de Neca Setubal — que curiosamente foi convidada para trabalhar com Haddad), neoliberalismo (devido à influência econômica de Gianetti e Lara Resende) e, finalmente, o apoio a Aécio e ausência de contraposição ao impeachment.
Com isso, ela optou por uma estratégia de recolher os fragmentos e se situar como uma Emmanuel Macron brasileira. Apostando que será possível um confronto com algum dos extremos e a tendência do senso comum à moderação, procura equilibrar sua pauta entre o neoliberalismo progressista (combinação entre políticas de austeridade fiscal e movimentos de identidade, segundo Nancy Fraser), um ambientalismo de inovação (que combina o empreendedorismo popular com sustentabilidade, como no caso da proposta de empregos gerado pela renovação energética com placas solares) e, finalmente, a luta intransigente contra a corrupção via apoio irrestrito à burocracia jurídica.
Apesar de interessante, a estratégia de Marina claramente não está pegando por ser hiper-racionalista. Para entender o que Marina quer e pensa, é necessário ter lido alguma coisa de Edgar Morin, quem sabe devanear sobre o futuro com Yuval Noah Harari ou Jeremy Rifkin, e incorporar a leitura da política em rede de um Castells ou a crítica ao autoritarismo da Hannah Arendt.
Convenhamos, é uma posição ultraelitista. Marina, como disse no outro post, às vezes parece achar que entrevistas e debates são um torneio da complexidade.
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Não estou ganhando nada com isso, mas vou dar duas direções (possíveis de ser exploradas simultaneamente) que poderiam alavancar a campanha de Marina na direção do contato afetivo com os eleitores — que é o que está faltando.
Na era da política das identidades, Marina é uma arquissíntese de todos os "lugares de fala" brasileiros. Nortista, mulher, negra, evangélica, vítima de contaminação ambiental, ex-empregada doméstica, professora, ambientalista e militante dos direitos indígenas e quilombolas, Marina carrega todas as credenciais para reivindicar ser o rosto do Brasil real.
É incrível que o marketing eleitoral ainda não tenha explorado esse aspecto, ainda mais considerando que Marina é a principal legatária dos votos lulistas das mulheres nordestinas.
E mais: Marina não faz parte da cultura da lacração. Tudo que depôs contra Hillary Clinton na campanha de Trump não precisa ser repetido. Afinal, Trump favoreceu-se de antipatia elitista que a cultura liberal que Hillary representava estava causando na população em geral. O combate ao "politicamente correto" era também uma expressão do mal-estar diante de uma cultura baseada em eufemismos, na hiperproteção (que os conservadores chamam "permissividade") e na incorporação muito veloz e extremamente self-righteous da diversidade, sem o trabalho de esclarecimento correspondente. A atitude lacradora ("check your privilege!", por exemplo) acabou desencadeando uma antipatia que se juntou aos ímpetos racistas, misóginos e islamofóbicos no contexto dos EUA. Mas Marina não vem desse caldo cultural. Por isso o ponto seguinte:
O populismo autoritário que flerta, quando não simplesmente expõe, o fascismo contemporâneo se alastra por meio do discurso cínico. Esse discurso — que Mbembe chama "lumpenradical" — baseia-se numa atitude puramente performativa. O grande segredo da alavancagem de Trump e, por aqui, Bolsonaro, é a indecidibilidade sobre o caráter sério ou jocoso do que está falando. Quando Bolsonaro diz que irá permitir que policiais matem em serviço, muitos não sabem se é sério e pra valer o que está sendo dito. Ele brinca com quem o cobra: "então joguem flores para os criminosos!", e saímos sem saber qual é exatamente sua posição. Com isso, ele captura os dois públicos: fascistas que acham que a sociedade é um Westworld bárbaro, ansiosos por recolocar na roda uma masculinidade tóxica (ferida pela ascensão do feminismo) e identificados, por aqui, com o militarismo reacionário e, ao mesmo tempo, indecisos que não suportam o tom moralista que muitas vezes os militantes da justiça social adotam e preferem suplantá-lo com alguém que "seja autêntico", capaz de "dizer o que pensa" num contexto em que a cultura da humilhação e das desculpas fajutas proliferam nos meios publicitários e midiáticos em geral.
Marina tem condições, com todas as credenciais que dispõe, de ocupar o papel de um superego que chame de volta as pessoas à decência, acabando com o tom de deboche que as redes sociais — vejam The Waldo Moment — legaram à política. Marina é, nesse sentido, o inverso de Manuela D'Ávila. Ou melhor, Manu e Bolsonaro — Manu tomando o lugar que foi outrora de Jean Willys — ocupam os exatos polos simétricos que se retroalimentam. Marina, por outro lado, pode ser a linha de fuga da equação, traçando uma diagonal que permite escapar das guerras culturais pelo fundo de legitimidade que dispõe (uma evangélica legítima. Quanto mais Bolsonaro contestar isso, melhor para ela) e por não habitar a cultura do lacre.
O enfrentamento no último debate é a síntese realizada do que estou falando. Bolsonaro foi desmoralizado, como a criança troll que é a descoberta por um adulto consciente pregando peripécia nas redes sociais, e chamada atenção sobre a impertinência da sua conduta sem lacre, apenas com base no critério do razoável e da correção moral. Marina pode explorar isso de múltiplas formas, pois Bolsonaro tem múltiplos flancos abertos pela cultura de redes sociais. Dois exemplos: a questão negra, cuja posição de Bolsonaro é baseada em revisionismo histórico comprado apenas pela parte lunática da população, e sua condição evangélica, na qual Marina poderia chamar atenção não apenas para os evangélicos progressistas, mas para todos os evangélicos que são contrários à instrumentalização da sua fé para fins políticos. Enquanto os jornalistas, quando fazem isso, figuram como os liberais-permissivos que os bolsonaristas combatem, Marina consegue falar desde um lugar autêntico, que é exatamente o que boa parte do eleitorado procura.
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