11 Setembro 2017
Muitas vezes me pergunto: mas os pobres, sempre existirão? Parece que sim, aliás, parece até que aumentaram, em sintonia com o aumento da população. Mas o poder não se dá bem com a pobreza.
O artigo é de Eugenio Scalfari, jornalista, fundador do jornal italiano La Repubblica, publicado por Repubblica, 10-09-2017. A tradução é de Luisa Rabolini.
O Papa Francisco chegou há quatro dias à Colômbia, país que se livrou da tirania e de uma espécie de guerra civil. Atravessou o país de lado a lado e, em todo lugar onde ele parou para celebrar a missa e para falar com as pessoas, o seu discurso chegava a um milhão de pessoas. Ele falava e novamente partia. Provavelmente percorreu, no mínimo, oito mil quilômetros para exortar quem o ouvia - isto é, somando todos, o país inteiro. Ele confrontou a realidade da Colômbia e a história do Evangelho, quando Jesus pregava na costa do Mar da Galileia para "multidões encantadas por uma palavra de vida diante das águas que encerram em si a esperança dos pescadores e dos seus seguidores, mas também as trevas que ameaçam a existência humana".
Vocês veem? Nas palavras de Francisco é o próprio Jesus, que agora se tornou de fato homem, que vê ao mesmo tempo as esperanças e as trevas. sabe qual é o comportamento que o seu Deus, que se tornou homem, vê como remédio para dissipar as trevas e conquistar a luz: "Construir pontes, derrubar os muros, integrar as diversidades promover a cultura do encontro mútuo, do diálogo e da escuta, educar ao perdão e à misericórdia, ao senso de justiça, à rejeição da violência e à coragem da paz".
Ele encerrou seu discurso citando o grande escritor Gabriel García Márquez, que não era católico, mas uma grande alma: "Diante da opressão, do saque e do abandono, a nossa resposta é a vida".
"Pode-se também pensar em uma nova e arrebatadora utopia da vida, onde seja verdadeiramente certo o amor e seja possível a felicidade". Francisco já considera plenamente entendida a sua oração do Deus único e do encontro da Igreja com a modernidade e não podia demonstrá-lo de forma melhor do que fechando o seu discurso com a notícia da felicidade depois de cem anos de guerra, de perseguições e de solidão.
García Márquez foi um dos grandes modernos, falando especialmente daquela região do mundo que chamamos de América do Sul, onde em grande medida a "miscigenação" desejada pelo Papa Francisco, de fato, já ocorreu: na Argentina, Uruguai, Equador, Brasil, Venezuela, Chile, Bolívia, México e no Caribe, começando por Cuba. Os povos se misturaram, rebelaram-se contra a pobreza, o populismo, o soberanismo. No entanto, quanto à democracia, ainda não é possível declarar sua plena realização. Mas existem as bases para um progresso. Mas, para onde?
Essa pergunta não se aplica apenas à América Central e do Sul, mas ao mundo inteiro. Há crises diplomáticas, crises quase militares, crises quase atômicas, crises climáticas, crises econômicas. E os grandes países, em uma sociedade global modernizada por tecnologias de primeira grandeza, oferecem a possibilidade de cultura a bilhões de pessoas, mas não conseguem realizar o progresso e a paz. Consegue isso a América de Trump? A Rússia de Putin? A Turquia de Erdogan? Conseguem a China e as duas Coreias? A Síria? O Iraque? Os Emirados? Conseguem os 27 países de uma Europa diversa, soberanista, populista? O Irã? O Egito? A Cirenaica? A Líbia tripolitânia? O Sudão? A Índia? O Paquistão? A Oceania?
Citei quase o mundo inteiro e não acredito estar errado. Pode parecer uma insossa aula de geografia, mas não é. Atrás dessa geografia existem problemas, uma multiplicidade de problemas, um diferente do outro, mas de alguma forma em combinação entre si, contrapostos, mas ao mesmo tempo ligados. Sua solução, pelo menos parcial, depende da política? Ou da economia? Da vontade dos poderosos ou a resistência e rebelião dos pobres?
Muitas vezes me pergunto: mas os pobres, sempre existirão? Parece que sim, aliás, parece até que aumentaram, em sintonia com o aumento da população. No curso dos milênios estamos chegando a oito bilhões de pessoas no planeta em que vivemos e os pobres também crescem, talvez em proporção ligeiramente inferior à população em geral, da qual, no entanto, representam a maioria se, por pobres, considerarmos não apenas os mendigos e indigentes, mas mesmo a classe média inferior, aquelas pessoas que em um país como o nosso possuem uma renda de 25.000 euros por ano. Acima desse nível, a classe média supera o limiar da indigência.
Aqueles abaixo do limiar são numericamente mais numerosos? Depende de país para país, mas a classe pobre é muito grande e aquela só um pouco acima, muitas vezes apenas consegue suprir às necessidades básicas de toda uma família. Essa é a situação em muitos países. Em outros, é pior ou melhor. Mas, em um ponto, o planeta inteiro é uniforme: não são os pobres que mandam. O poder não se dá bem com a pobreza. Os pobres (já escrevi isso outras vezes) têm o poder de se rebelar e obter uma espécie de poder provisório, mas não de eliminar a própria classe. A menos que... A menos que toda a sociedade cresça, a renda coletiva aumente de forma estável e beneficie tanto as camadas pobres como as ricas. Ou seja, diminuam as desigualdades, porém sem que essa mudança positiva deva ser paga com uma diminuição da liberdade. Pequenas mudanças nesse sentido também podem ser aceitáveis, mas, além de certos limites, tornam-se intoleráveis.
Esses questionamentos ao longo do tempo foram abordados por muitas pessoas, começando em épocas bem antigas até hoje. São perguntas que, mesmo usando experiências concretas, inevitavelmente invadem a filosofia. Hoje quero mencionar dois pensadores, ambos muito significativos. O primeiro é Giambattista Vico, que viveu quase três séculos atrás (nascido em 1668 e morreu em 1744). O outro é Zygmunt Bauman que morreu há poucos meses. Há poucos dias foi publicado um dos seus últimos livros na edição italiana (Laterza), intitulado Retrotopia. Laterza, seu amigo e editor italiano, comentou assim essa obra: "Bauman estava interessado na condição humana Depois da idade das utopias do futuro e depois daquela que negava toda utopia, hoje vivemos a era da utopia do passado".
Mas vamos nos aproximar dessas duas personalidades, de épocas e pensamentos profundamente diferentes e ainda assim com uma visão profunda e bastante similar da vida que se perfila e acontece em cada um de nós.
Giambattista Vico escreveu muitos livros e também orientou, conforme era uso no século XVIII, alguns jovens estudantes que se dedicaram ao ensino. Algo similar ao que fez, um século atrás, o nosso Francesco De Sanctis, que foi por seu turno estudante, professor, historiador literário e filósofo. De fato, ele apreciava imensamente a filosofia literária de Vico, que muitas vezes citava. Eu também vou citar um trecho da Scienza Nuova que se presta a algumas considerações bastante atuais.
“A filosofia, para beneficiar o gênero humano, deve salvar e sustentar o homem caído e fraco, e não pode abandoná-lo em sua corrupção. A filosofia considera o homem como deve ser e se tal posição não servir senão a poucos, melhor seria viver na República de Platão e não se revolver na imundice de Rômulo. O homem foi plasmado por Prometeu que amassou as paixões de outros animais. No ser humano coexistem portanto a ira do leão, o ferocidade do tigre, a astúcia da raposa, a libido do cão e do bode e a prudência do elefante. Por causa dessa fábula, muitos dizem que não existe animal mais feio do que o homem, ao qual porém Deus deu todas essas naturezas tornando-o o rei dos animais e a mais perfeita de suas criaturas. Porém, quando com a prudência que é a natureza principal da qual foi dotado, o homem não domina todas essas paixões, pode-se dizer não apenas que ele é o mais feio e feroz dos animais, mas o próprio demônio".
Prudência para lidar com paixões: essa é a visão de Vico. Para ter uma natureza consistente e verdadeira, o homem (ou mulher) não pode e não deve ser uma criatura quase angelical. Os seus impulsos pessoais fazem parte da sua (nossa) natureza, caso contrário, seríamos um recipiente vazio, sem alma, sem sentimentos, sem vontades. O homem deve, ao contrário, ser capaz de gerir a si mesmo, adaptando uma visão que leva em consideração também, e principalmente, a existência dos outros.
Vico disse explicitamente como era essa sua visão. Ele detestava César, muito voluntarioso; amava Alexandre e também Otaviano Augusto: ambos animados por paixões intensas, mas cientes também do pensamento sobre os outros e o futuro. É uma versão notável, mas é preciso pensar ao futuro tendo em mente o passado, ou essas duas diferentes temporalidades não se combinam e o homem fica desprovido de uma ou da outra ou de ambas, contando apenas com o presente? Muitas vezes nos questionamos sobre isso e o próprio Bauman também refletiu a respeito com muita sabedoria. Vamos ver como.
O tema que fascina este que foi um dos mais importantes pensadores do nosso tempo, de quem Ezio Mauro foi um dos mais próximos amigos, compartilhando com ele muitas reflexões filosóficas, sociais e políticos, foi uma análise sobre o tempo. Muitos pensaram o tempo como o elemento principal da nossa vida, ou melhor: da nossa visão da vida e, portanto, das concretas ações que cada um de nós realiza na medida em que quer implementá-la.
Bauman fala, em determinado ponto, da nostalgia como uma das emoções básicas: a saudade da nostalgia. Mas, escreve Bauman em seu novo e, infelizmente, último livro: "A nostalgia é apenas uma dentro da vasta família das relações afetivas com um ‘outro lugar’. Relações desse tipo são indispensáveis para a condição humana O mundo aqui e agora não é que um do número indefinível de mundos pensáveis".
E quais seriam esses mundos pensáveis? Basicamente, existem três, mas com diferentes combinações entre si. Existe quem que é dominado pela memória do passado. Um determinado passado, devido aos textos que ele conhece ou por seu estudo ou mesmo por sua experiência pessoal (neste caso, um passado próximo).
Aquele passado dominante inspira também certo tipo de futuro a ser construído. Quando? Imediatamente. Portanto, operando no presente. Essa é a principal e mais harmoniosa combinação: o passado te guia a almejar e construir um futuro, do qual tu começas no presente a preparar o terreno.
Mas há quem que é dominado por uma visão do futuro e, dessa forma, por uma ideologia que o projeta e propõe. Nesse caso, o passado é ignorado, mesmo que se possam procurar nele as raízes da ideologia.
Por fim, há quem vive o presente, e só este. Não conhece o passado e só pensa em um "futuro próximo", o que na verdade é um presente ligeiramente estendido. Eu diria que a maioria das pessoas vive o tempo dessa forma. Principalmente os pobres e menos abastados. Nenhuma forma de temporalidade: pensam ao hoje, e a um amanhã de poucos dias ou mesmo poucas horas. E isso é tudo: a grande maioria das pessoas vive dessa maneira.
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As paixões humanas na eterna luta contra a pobreza - Instituto Humanitas Unisinos - IHU