04 Agosto 2016
Babel: Entre a incerteza e a esperança Zygmunt Bauman e Ezio Mauro Editora Zahar, 152 páginas |
Sob a forma de diálogo, Zygmunt Bauman e Ezio Mauro discutem os impasses do capitalismo globalizado e os perigos do enfraquecimento da democracia.
Nexo, 04-08-2016, reproduz os seguintes trechos do livro.
Zygmunt Bauman é o grande pensador da modernidade, a qual qualificou tão bem com o célebre conceito de “liquidez”. Perspicaz analista dos atos cotidianos, o sociólogo tem vasta obra sobre temas contemporâneos, com destaque para o best-seller Amor líquido. Bauman nasceu na Polônia e mora na Inglaterra desde 1971. Professor emérito das universidades de Varsóvia e Leeds, tem mais de trinta livros publicados no Brasil pela Zahar, com enorme sucesso de público.
Ezio Mauro é jornalista e escritor. Nascido na Itália, trabalhou por mais de 40 anos nas principais redações de seu país, foi correspondente internacional e dirigiu os importantes periódicos La Stampa e la Repubblica.
Eis os trechos do livro.
Ezio Mauro: Como um exército invasor num reino adormecido, a crise marcha com facilidade desconcertante por sobre a totalidade do sistema material, institucional e intelectual das estruturas democráticas que o Ocidente erigiu depois da guerra: governos, parlamentos, órgãos intermediários, sujeitos sociais, antagonismos, o Estado de bem-estar social, partidos e movimentos nacionais, internacionais e continentais – vale dizer, tudo o que criamos para desenvolver e aperfeiçoar o mecanismo da democracia, tendo em vista nos proteger nas nossas vidas em conjunto.
Nós agora sabemos que esse mecanismo não é capaz, por si mesmo, de nos proteger. Que a crise o penetra e deforma à medida que avança, esvaziando-o. Na verdade, estamos descobrindo que acreditar nas formas e instituições da democracia não é o bastante. A democracia não é autossuficiente.
Nós não temos alternativa, portanto, exceto nos perguntarmos até que ponto a crise atual vai levar as transformações que ela ocasionou. Essa crise é econômica e financeira, se olharmos para o que a desencadeou. No entanto, é também política, institucional e, consequentemente, cultural, se avaliarmos seu impacto cotidiano, que pode ser resumido da seguinte maneira: governos democráticos são instáveis porque tudo está fora de controle.
Todos nós sabíamos desde o começo que não seria uma mera sacudidela, mas uma transformação profunda, e que as transformações que se originaram em primeiro lugar na esfera da economia financeira, depois naquelas da indústria e do emprego, logo se tornariam dinâmica social e política cujas consequências afetariam o capitalismo e a governança sistêmica tal como os conhecemos, as formas de organização espontânea da sociedade, em outras palavras, a própria democracia.
O que me impressiona hoje, porém, é outra coisa, algo para que eu gostaria de chamar sua atenção. Algo que denominarei autonomia da crise. Vejamos. A crise é indiferente ao processo democrático, ela atua sob sua linha de sombra projetada, por assim dizer, tirando vantagem das fraquezas desse processo e exagerando-as.
Devemos reconhecer, portanto, que a crise é uma força, mas uma força desprovida de todo e qualquer pensamento. Isso não significa, claro, que não haja causas, interesses, culpas, responsabilidades em sua origem e em seu desenvolvimento, e que não haja quem colha seus benefícios até hoje. Todavia, assim como a bola de demolição destrói tudo no fim de Ensaio de orquestra, de Fellini, o mesmo se dá com a crise: trata-se de uma força que afirma sua autonomia sem qualquer teoria perceptível de si mesma e de sua ação, sem projeto, mas com uma força de ação cujas consequências são dolorosamente visíveis.
Por essa razão, eu fico me perguntando se meu país – e com toda probabilidade também o seu –, se esse grande país que a Europa é hoje seria capaz de pensar a si mesmo (se com “pensar a si mesmo” queremos dizer refletir em conjunto sobre seu futuro, atentos ao passado e esquadrinhando os horizontes em busca de alguma perspectiva, agora que toda grande Esperança se dissipou num ocaso). É como se agora, sem as ideologias que felizmente enterramos e deixamos para trás, nós já não fôssemos mais capazes de examinar em conjunto nossos corações e cuidar do que está à frente. No próprio momento em que tudo aquilo que nos ajudou a criar este “juntos” desabou – os partidos, a grande cultura política, os modos de expressão –, o espaço para o debate e a reflexão encolheu subitamente, e o discurso público vigente se atrofiou. Talvez já não sejamos mais capazes de formar uma opinião pública, mesmo que tenhamos a liberdade de apregoar livremente as opiniões privadas, reduzidas a pílulas e lançadas globo afora em milhares de tuítes diários; e mesmo que estejamos até o pescoço num mar de comentários e estilhaços de percepções urdidos em brincadeiras, trocadilhos, invectivas e aforismos.
Você testemunhou o desmoronamento de tudo o que deveria dar forma e substância a pensamentos genuínos e bem organizados que se agregam e desenvolvem pelo debate. Você deu um nome a esse fenômeno. Agora, temos que nos fazer a pergunta conclusiva radical: devemos nos perguntar se o próprio pensamento que se encarregou de pensar o mundo líquido não acabará desmoronando.
Depois, temos de indagar como seremos capazes de viver sob a ameaça de ondas persistentes, sem qualquer ponto ou instrumento para medir o peso e a distância das coisas, completamente sós, em mar aberto. Como a democracia está sob ataque – pois esta é a questão em jogo hoje –, nós devemos indagar se ela ainda é capaz de pensar sobre si mesma, se ainda é capaz de se repensar, de modo a imaginar de novo e recuperar o poder de governar de fato.
Zygmunt Bauman: Você acertou na mosca destacando que a presente crise, que afeta todos os aspectos da nossa condição, atinge profundamente “tudo o que criamos para desenvolver e aperfeiçoar o mecanismo da democracia, tendo em vista nos proteger nas nossas vidas em conjunto”. Na verdade, atinge. De súbito, todos nós nos sentimos vulneráveis – individual, grave e simultaneamente, como nação ou como espécie humana. No entanto, como Thomas Paine advertiu nossos ancestrais em Senso comum (1776), um dos documentos mais seminais da era moderna, quando sofremos, ou somos expostos por um governo às mesmas misérias que poderíamos esperar de um país sem governo, nossa calamidade é ampliada pela reflexão de que nós mesmos suprimos os meios pelos quais sofremos. Governos, como o vestuário, são o emblema da inocência perdida; os palácios dos reis são construídos sobre as ruínas das choupanas do paraíso. Fossem os impulsos da consciência obedecidos de modo claro, uniforme e irresistível, o homem não precisaria de nenhum outro legislador. Mas, como esse não é o caso, ele julga necessário ceder uma parte de sua propriedade a fim de prover os meios para a proteção dos demais; e é induzido a fazê-lo pela mesma prudência que, em todos os demais casos, o aconselha, dentre dois males, a escolher o menor. Consequentemente, sendo a segurança o verdadeiro propósito e fim do governo, decorre irretorquivelmente que qualquer forma de governo que nos pareça mais capaz de garanti-la, com o mínimo de aventura e o máximo de benefício, é preferível a todas as demais.
Essas palavras foram rabiscadas por Paine mais de um século depois de Thomas Hobbes ter proclamado – em seu Leviatã, outro documento fundador da modernidade – que a garantia e o provimento de segurança são a razão primordial, a tarefa suprema e a obrigação inegável do Estado, portanto, sua raison d’être. Nós não podemos viver sem governos adequadamente armados de meios de coerção, sugeriu Hobbes, pois na ausência de tais governos as pessoas sofreriam de “medo contínuo”; e a vida do homem seria “solitária, pobre, torpe, bestial e curta”. O propósito de ter governo é estar seguro. Como observou Sigmund Freud, em nome de maior segurança, nós tendemos a estar prontos para sacrificar e ceder grande parte de outro valor que exaltamos, a liberdade. Contudo, como esses dois valores não são na prática plenamente conciliáveis (para qualquer aumento da segurança é preciso pagar com uma parte de liberdade, e vice-versa!), a vida humana está fadada a continuar um compromisso lamentado mas inevitável entre segurança para sempre incompleta e liberdade para sempre incompleta. É da natureza desse compromisso, por conseguinte, que ele não seja plenamente satisfatório; qualquer arranjo específico induz os dois lados a negociar ou a impor um equilíbrio diferente de ganhos e perdas.
De maneira pendular, nós vamos da ânsia por mais liberdade à angústia por mais segurança. Mas não podemos ter ambos em quantidade suficiente. Como a sabedoria popular inglesa conclui tristemente, “Não dá para ter o bolo e comê-lo também”. Conforme nos preveniu Paine, hoje nós estamos “expostos por um governo às mesmas misérias que esperaríamos de um país sem governo”. Essa miséria angustiante, que entregamos ao cuidado dos governos para nos aliviar, mas que hoje nos assombra pela iniciativa dos governos, com a assistência ativa ou a indiferença resignada dos mesmos, está na essência do sentido existencial da insegurança.
Como você corretamente enfatiza, é pelo sistema democrático como tal, essa densa rede de instituições que nossos pais projetaram com engenho e teceram com lavor, que um grande número de seus sucessores e nossos contemporâneos se sentem traídos e desapontados.
A mais horrenda manifestação dessa frustração é a distância crescente entre os que votam e os que são postos no poder pelo seu voto. Cada vez menos os eleitores confiam nas promessas feitas pelas pessoas que elegem para governar; amargamente descrentes por causa das promessas não cumpridas do passado, os eleitores não chegam a esperar que desta vez as promessas sejam cumpridas.
Com frequência cada vez maior, os eleitores apenas procedem mecanicamente – mais guiados por seus hábitos adquiridos que por alguma esperança de mudança para melhor ensejada pelo seu voto. Na melhor das hipóteses, eles vão às cabines eleitorais para escolher males menores. A ampla maioria dos cidadãos raramente acredita, se é que acredita, que a perspectiva de mudar o curso dos acontecimentos na direção certa – possibilidade que no passado tornava a democracia tão atraente e a participação ativa nos procedimentos democráticos tão desejável – está hoje entre as cartas do baralho e ao alcance da mão. Como observou J.M. Coetzee em seu Diário de um ano ruim:
Confrontada à escolha entre A e B, considerando o tipo de A e o tipo de B que geralmente consegue colocar seus nomes na cédula eleitoral, a maior parte das pessoas, das pessoas comuns, se inclina no fundo a não escolher nenhum. Mas trata-se apenas de uma propensão, e o Estado não lida com propensões. ... O Estado balança a cabeça. Você tem de escolher, diz o Estado: A ou B.
Hoje nós testemunhamos que a escolha tradicional entre “servidão plácida, por um lado, e revolta contra a servidão, por outro”, está caindo em desuso, deixando de compreender a atitude atual da maior parte do eleitorado em relação àqueles que elege para governar.
Uma terceira atitude cresce rapidamente em popularidade e agora é “adotada por milhões de pessoas todos os dias” – postura que Coetzee descreve como marcada por “quietismo, obscuridade voluntária ou emigração interior”. Colapso da comunicação entre a elite política e os demais?
Tenhamos em mente o Ensaio sobre a lucidez, de José Saramago, alegoria brilhantemente sagaz, de 2004, ou, antes, sugestão premonitória escrita há mais de dez anos, do lugar onde o presente fracasso gradual mas persistente dos poderes integrativos da democracia pode finalmente nos levar.
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"Babel: entre a incerteza e a esperança". Zygmunt Bauman e Ezio Mauro - Instituto Humanitas Unisinos - IHU