28 Março 2017
"A guinada de Francisco para o social é o imperativo evangélico". Jim Keenan, S.J., professor da Universidade de Boston e criador de uma rede mundial de teólogos moralistas que acaba de ser recebida pelo papa e por diversos dicastérios romanos. O renomado moralista americano acredita que "Francisco é um farol em meio a escuridão", defende o 'Amoris laetitia' e a moral enriquecida pelas boas ações dos leigos neste âmbito.
A entrevista é de José Manuel Vidal, publicada por Religión Digital, 27 -03- 2017. A tradução é de Henrique Denis Lucas.
Eis a entrevista.
Há pouco você esteve em Roma com alguns outros membros da Catholic Theological Ethics in the World Church, onde foram recebidos por vários dicastérios e pelo próprio papa. Esse é um reconhecimento explícito para a rede que você fundou?
Eu e os membros da comissão organizadora da nossa rede fomos à Roma para nos apresentarmos aos cardeais e ao pessoal de seis congregações, disponibilizando-nos para contato. Fomos recebidos calorosamente e nossos anfitriões dedicaram-se a nós por um grande período de tempo.
A sensação que tivemos foi, acima de tudo, de apoio. Depois de quatorze anos do desenvolvimento desta rede viva de mil teólogos moralistas católicos de oitenta países, fomos muito bem recebidos em cada uma das reuniões com os cardeais e com o papa, apoiados e fraternalmente respaldados.
Podemos saber o que o Papa Francisco lhes disse?
Nós nos encontramos com ele por 45 minutos. Nos apresentamos e comentei-lhe que havíamos perdido um integrante do nosso grupo, Lucas Chan, S.J., que faleceu repentinamente em maio passado de uma parada cardíaca.
Dei ao Papa o seu santinho. Nós o amávamos muito e, ao dar a imagem ao Papa, muitos de nós choramos. O papa viu o quão próximos nós sete somos e agradeceu por termos lhe entregue o cartão. "Um gesto muito bonito", disse ele. Creio que naquele momento ele percebeu que o que mais nos importa em nossa rede é o carinho mútuo tangível.
Demos a ele alguns livros que havíamos acabado de publicar. Um que se chama Just Sustainability e outro sobre a migração, e explicamos que estes livros traçam um percurso entre os trabalhos de 25 autores diferentes de todos os continentes. No total, entregamos cinco de nossos livros que abarcam uma série de questões éticas, e com isso o papa pôde contemplar o quão extensa é a rede que nós estabelecemos.
Conversamos sobre como nossas reuniões em Trento, Pádua, Manila, Bangalore, Berlim, Cracóvia, Bogotá e Nairóbi têm sido encontros de teólogos moralistas de diversos contextos, mas que são capazes de discutir esta diversidade sem cair na polarização. Construímos nossa unidade sobre essa capacidade de discutir, não sobre um consenso uniforme.
Sua Santidade também nos falou sobre a verdadeira unidade, que não se encontra na uniformidade, mas na diversidade, que considera o contexto sem perder de vista o que temos em comum. Unidade na diversidade. Foi um tema recorrente em nossa conversa.
Também falamos sobre o Amoris laetitia: acerca do fato de que muitos de nós têm escrito sobre a exortação, e sobre como algumas igrejas - da Alemanha, Áustria, Itália, França, Argentina e África do Sul, em particular - estão muito adiantadas no que diz respeito às questões de acolhimento, em comparação aos Estados Unidos.
Discutimos especificamente sobre o livro alemão editado por Stephan Goertz, Wendepunkt für die Moraltheologie? Kontext, Rezeption und Hermeneutik von Amoris laetitia. A questão de Amoris Laetitia claramente interessou muito ao papa como um "ponto de inflexão".
A vertente moral é um dos 'carros-chefe' do pontificado do Papa Bergoglio?
O aprendizado da moral é uma das fortalezas centrais do papado de Francisco. Mas ele a ensina de uma forma muito inovadora. Ele traz para a discussão as questões morais propriamente ditas. Por exemplo, para abordar as questões sobre o matrimônio e o divórcio, ele as abordou no Sínodo e deixou que os membros discutissem por quase dois dias! E, além disso, quanto à Amoris laetitia, ele aguarda que as Igrejas locais trabalhem-na e a recebam, esperando que os casamentos a internalizem de modo que, depois de refletir em sã consciência, tragam suas vidas à Igreja. O papa respeita o modo pelo qual a iluminação moral funciona: através das percepções compartilhadas, a confiança mútua, a honestidade plena e a atenção às nossas tradições e às Escrituras.
A vertente moral, portanto, é peça fundamental para o papa, mas a forma em que ele a abarca é muito sugestiva para muitos de nós que trabalhamos no campo da ética. Na nossa rede existem centenas de moralistas refletindo e escrevendo sobre seu modo de proceder.
Muitos leigos costumam perguntar por que razões uma hierarquia de celibato continua metida em seus dormitórios. O que dizer-lhes?
No que diz respeito à ética sexual e conjugal, creio que temos de reconhecer duas novidades muito significativas que são percebidas na Igreja de hoje.
Em primeiro lugar, Amoris laetitia não é uma invasão desses dormitórios. Pelo contrário, é um convite para retornar à Igreja: a repensar o nosso acesso a Sacramento. Não se trata de controle de natalidade: trata-se de entender melhor os desejos dos leigos que querem ser parte de uma igreja que os acolhe. Portanto, a abordagem é diferente, certo? A exortação é um convite para uma relação mais plena com a Igreja.
Em segundo lugar, cada vez mais enxergamos que o trabalho sobre a ética sexual e o matrimônio casam leigos, não sacerdotes. Posso dizer que no meu país os maiores nomes da ética teológica matrimonial não são os padres, mas leigos como Lisa Cahill, Flossie Bourg, Julie Hanlon Rubio e David Matzko McCarthy.
O que escrevem é mais abrangente, mais profundo e mais significativo do que o que vimos os clérigos moralistas escreverem no passado. O novo enfoque não tem sido nos dormitórios, mas nos lares e nas comunidades.
Você tem medo de que, como dizem os conservadores, todo o edifício possa vir abaixo caso algum conteúdo moral seja abordado?
Estou surpreso com a pergunta e me pergunto o que é que as pessoas acham que não está balançando ou vindo abaixo! Será que acreditam realmente que as coisas não se desintegram? Estamos vivendo um momento de grande inquietude: o auge do populismo, a falta de compaixão, as massas de imigrantes e refugiados e alterações climáticas sem precedentes. Se estamos conseguindo manter tudo em pé? Acredito que não.
As questões morais são extremamente urgentes hoje em dia. Elas vão diretamente a uma ordem social que tem sido questionada, mas mais do que isso nos desafiam a enxergar os marginalizados que hoje estão mais ameaçados do que nunca.
Este não é um momento para se preocupar com a perda de credibilidade. Em vez disso, devemos nos preocupar com os que são abandonados dia após dia, pelo nacionalismo cruel, pela desigualdade crescente entre ricos e pobres e a incapacidade da ordem social de definir suas prioridades.
É possível reconectar a Igreja com os jovens de hoje, mantendo inalterado o ensinamento sobre relação sexual antes do casamento, preservativos, etc.?
Acho que temos de levar esses milhões de jovens que acreditam na espiritualidade, mas estão relutantes, a se comprometerem com a comunidade eclesial. O que eles procuram é um espírito acolhedor e acredito que uma Igreja acolhedora é a chave para todos nós, ao que a Amoris Laetitianos guia. A Igreja primitiva certamente foi acolhedora com os pagãos e com os muitos imigrantes que chegavam às cidades romanas. Precisamos de uma Igreja ainda mais acolhedora.
Em um momento de confusão, obscuridade e total desinteresse pelo bem comum, precisamos de uma Igreja que seja como um farol na escuridão. Acredito que o Papa Francisco represente este farol, mas as igrejas locais também precisam fazê-lo. Muitas fazem, mas muitas não.
Precisamos de mais líderes locais visionários, proféticos e criativos que saibam escutar, que saibam ler os sinais dos tempos, saibam acolher e defender os vulneráveis e os que não têm estabilidade vital nestes tempos turbulentos.
Não precisamos de líderes singulares, mas de líderes que saibam trabalhar em rede, trabalhar em equipe e convidar os outros às grandes oportunidades atuais para responder à crise. Não é momento (se é que já houve algum) para figuras míticas solitárias: é momento para lideranças solidárias. Penso que esta é a liderança que o Papa Francisco quer. É por isso que ele confia tanto nos
Sínodos e se cerca de seu grupo de nove.
Penso, também, que os jovens precisam ser incluídos nesta liderança.
Parece que, com Francisco, a moral eclesial se concentra mais na moralidade social (corrupção e assim por diante) do que na moralidade sexual. Você compartilha dessa mudança de perspectiva?
A guinada do Papa Francisco para o social é o imperativo evangélico! Para dar um exemplo: é importante considerar a Laudato Si ' como uma encíclica social. A liderança do Papa nos desperta novamente ao compromisso do catolicismo com o bem comum.
O bem comum não é uma ideia: é a humanidade, a interconexão das pessoas. É isto o que Francisco defende repetidamente: que estejamos todos interconectados.
Em nossa rede, estamos tentando nos conectar uns aos outros para que possamos enxergar como o que acontece em Kampala ou Manila afeta o que fazemos em Nova Iorque, Madrid ou Bangalore.
Acreditamos que devemos ser pessoas cujas vidas reflitam suas crenças: a de que como moralistas precisamos ler os sinais dos tempos com os olhos da fé voltados à Escritura e à tradição, sempre conscientes de que levamos esses recursos conosco enquanto caminhamos adiante como discípulos de Cristo.
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"Neste momento de confusão, o Papa está erguendo uma igreja como se fosse um farol em meio a escuridão". Entrevista com Jim Keenan - Instituto Humanitas Unisinos - IHU